quinta-feira, novembro 14, 2024
22.1 C
Vitória
quinta-feira, novembro 14, 2024
quinta-feira, novembro 14, 2024

Leia Também:

Gregório de Matos Guerra e a Bahia

Gregório de Matos Guerra e todo o Barroco brasileiro são, de certo modo, principalmente no estilo de poesia, herdeiros do estro gongórico, também denominado de cultista, que era um jogo de palavras refinado, descrevendo a realidade através do aparato sensorial e tudo num caudal de versos rebuscados. De outro lado, tínhamos o estilo quevedista, também denominado de conceptista, este que, por sua vez, parte de conceitos lógicos e que versifica através de uma habilidade retórica, tudo isto num discurso que se fundamenta com requinte e beleza.

Os recursos estilísticos, portanto, podem ser exemplificados pela antítese, em que ideias contrárias ficam juntas, causando o que conhecemos por paradoxo. Temos também o oximoro, que é o choque entre ideias que causa a sensação de absurdo, pois tal é nada mais que a junção de sentidos que se excluem entre si. E temos, por fim, o hipérbato, que é uma inversão na ordem direta dos termos que compõem a oração, recurso este bem empregado e de cepa hispânica por excelência.

Historicamente, tivemos o auge do Barroco lusitano, por sua vez, após a Restauração da Independência de Portugal em 1640, na qual a dinastia de Bragança começa. O destaque que temos neste momento da História é a figura emblemática de Padre Antônio Vieira, cuja obra inclui cerca de 200 sermões, obra sacra, mas de valor literário canônico na literatura de língua portuguesa.

No Brasil, o Barroco ganha ares de estro religioso de forma patente. Gregório de Matos Guerra é um dos destaques na poesia nacional, sendo um representante do contexto social baiano, jogando com a realidade soteropolitana e construindo uma obra que figura forte no cenário literário brasileiro. Aqui, com Gregório, temos uma poesia ferina que lhe deu a alcunha de “Boca do Inferno”.

Todo o século XVII, como a Bahia colonial deste mesmo tempo, devem a Gregório um retrato fiel, cujo estro poético ia da sátira, humor este que vinha desde a trova antiga, como também temos Gregório transitando em temas religiosos, amorosos e políticos, e com um leitmotiv sempre bem estruturado na realidade de sua Bahia, mais especificamente a vida citadina no contexto de Salvador.

POEMAS 

PERTENDE AGORA (POSTO QUE EM VÃO) DESENGANAR AOS SEBASTIANISTAS, QUE APLICAVÃO O DITO COMETA À VINDA DO ENCUBERTO. : Aqui temos o Gregório satírico, no que vem : “Estamos em noventa era esperada/De todo o Portugal, e mais conquistas,/Bom ano para tantos Bestianistas,/Melhor para iludir tanta burrada./Vê-se uma estrela pálida, e barbada,/E deduzem agora astrologistas/A vinda de um Rei morto pelas listas,”. O culto sebastianista devidamente ridicularizado, e aqui conhecemos o Boca do inferno e sua pena mordaz, no que vem : “Oh quem a um Bestianista pergunta,/Com que razão, ou fundamento, espera/Um Rei, que em guerra d`África acabara?/E se com Deus me dá; eu lhe dissera,/Se o quis restituir, não o matara,/E se o não quis matar, não o escondera.”. Como Deus poderia ocultar um rei de promessas? O culto a Dom Sebastião aqui é contradito na lógica, posto que em Gregório, e em seu poema, a ideia ganha seu contorno justamente absurdo e utópico.

 

EMBARCADO JA O POETA PARA O SEU DEGREDO, E POSTOS OS OLHOS NA SUA INGRATA PATRIA LHE CANTA DESDE O MAR AS DESPEDIDAS. : O poema é uma crítica social, os maganos portugueses que são cumulados de riquezas, e os brasileiros que trabalham para sustentar o ócio destes fidalgos sem sangue azul, montados em dinheiro, no que temos : “Adeus praia, adeus Cidade,/e agora me deverás,/Velhaca, dar eu adeus,/a quem devo ao demo dar.” (…) “Adeus Povo, adeus Bahia,/digo, Canalha infernal,” (…) “E tu, Cidade, és tão vil,/que o que em ti quiser campar,/não tem mais do que meter-se/a magano, e campará.” (…) “Compre tudo, e pague nada,/deva aqui, deva acolá/perca o pejo, e a vergonha,/e se casar, case mal.” (…) “Porfiar em ser fidalgo,/que com tanto se achará;/se tiver mulher formosa,/gabe-a por esses poiaes./De virtuosa talvez,/E de entendida outro tal,/introduza-se ao burlesco/nas casas, onde se achar.” (…) “Arrime-se a um poderoso,/que lhe alimente o gargaz,” (…) “A estes faça alguns mandados/a título de agradar,”. E segue aqui a tese baiana e nacional de que não é a virtude que faz rico o Homem, mas a esperteza e a ganância, podemos perceber que este ímpeto ladino que é uma parte de nossa cultura até os dias atuais vem de longe, e neste século XVII de Gregório são os maganos que se fazem de fidalgos, os portugueses que ficam no ócio e no luxo, no que temos : “Vá visitar os amigos/no engenho de cada qual,/e comendo-os por um pé,/nunca tire o pé de lá./Que os Brasileiros são bestas,/e estarão a trabalhar/toda a vida por manter/maganos de Portugal.” (…) “No Brasil a fidalguia/no bom sangue nunca está,” (…) “Consiste em muito dinheiro,/e consiste em o guardar,/cada um o guarde bem,/para ter que gastar mal./Consiste em dá-lo a maganos,/que o saibam lisonjear,/dizendo, que é descendente/da casa do Vila Real./Se guardar o seu dinheiro,/onde quiser, casará :/os sogros não querem homens,/querem caixas de guardar.” (…) “Oh assolada veja eu/Cidade tão suja, e tal,/avesso de todo o mundo,/só direita em se entortar./Terra, que não parece/neste mapa universal/com outra, ou são ruins todas,/ou ela somente é má.”. E, ao fim, mais uma vez, maldiz sua cidade e sua origem.

DÉCIMAS [Aos sebastianistas] : Aqui o poema também tematiza o sebastianismo, mas já numa alegoria bíblica e não mais de troça satírica, no que temos : “Ouçam os sebastianistas/ao profeta da Bahia/a mais alta astrologia/dos sábios gimnosofistas :/ouçam os anabatistas/da evangélica verdade,/que eu com pura claridade/digo em literal sentido/que o rei por Deus prometido/é quem? Sua Majestade./Quando no campo de Ourique/na cruz de um raio abrasado/viu Cristo crucificado/el-rei Dom Afonso Henrique :/para que lhe certifique/afetos mais que fiéis,/Senhor, disse aos infiéis/mostrai a face divina,”. E o poeta enumera a geração real do colonialismo lusitano, no que temos então tal sucessão, e que culmina numa imagem apocalíptica da fera inumana que tinha na testa tirana dez pontas, no que temos :  “Na tua prole novel,/lhe disse, hei de estabelecer/um império a meu prazer,/e crê que na atenuação/da dezesseis geração/então hei de olhar, e ver.” (…) “Diz o profeta sagrado/que a quarta fera inumana/tinha na testa tirana/dez pontas, e que entre as dez/uma de grã pequenez/surgiu com potência insana./Que esta ponta tão pequena,/mas tão potente, e tão forte,/a três das grandes deu morte/cruel, afrontosa e obscena :/quer dizer que a sarracena/potência, ou poder tirano/do pequeno maometano/tirara o seu desprazer/as três partes do poder/do grande Império Otomano.”. A guerra das nações, e o intento lusitano vai do oriente ao mundo maometano, no que aqui temos como que a profecia do rei cristão, do império prometido, no que temos : “a chamou Deus a juízo;/e a condenou de improviso/ao fogo voraz que a coma :/e daqui o profeta toma/(pois Deus assim a condena)/o fim da gente agarena/e seita do vil Mafoma.” (…) “chamou Deus um rei cristão/e lhe entregou na mão/o império prometido :” (…) “E pois a gente otomana,/vendo esta sua ruína/à luz da espada divina/de tanta armada austriana,/pode a nação lusitana/confiada neste agouro/preparar a palma e louro/para o príncipe cristão,/que há de empunhar o bastão/do império do Deus vindouro.” (…) “Estes secretos primores/não são de ideia sonhada,/são da escritura sagrada/e de santos escritores :/se não alego doutores/e poupo esses aparatos,/é porque basta a insensatos/por rudeza ou por cegueira,/que em prosa os compôs Vieira,/traduziu em versos Matos.”. E a coda então revela a fonte literária da inspiração bíblica, a mestria de Padre Antônio Vieira.

POEMAS :

PERTENDE AGORA (POSTO QUE EM VÃO) DESENGANAR AOS SEBASTIANISTAS, QUE APLICAVÃO O DITO COMETA À VINDA DO ENCUBERTO.

Estamos em noventa era esperada

De todo o Portugal, e mais conquistas,

Bom ano para tantos Bestianistas,

Melhor para iludir tanta burrada.

 

Vê-se uma estrela pálida, e barbada,

E deduzem agora astrologistas

A vinda de um Rei morto pelas listas,

Que não sendo dos Magos é estrelada.

 

Oh quem a um Bestianista pergunta,

Com que razão, ou fundamento, espera

Um Rei, que em guerra d`África acabara?

 

E se com Deus me dá; eu lhe dissera,

Se o quis restituir, não o matara,

E se o não quis matar, não o escondera.

 

EMBARCADO JA O POETA PARA O SEU DEGREDO, E POSTOS OS OLHOS NA SUA INGRATA PATRIA LHE CANTA DESDE O MAR AS DESPEDIDAS.

Adeus praia, adeus Cidade,

e agora me deverás,

Velhaca, dar eu adeus,

a quem devo ao demo dar.

Que agora, que me devas

dar-te adeus, como quem cai,

sendo que estás tão caída,

que nem Deus te quererá.

Adeus Povo, adeus Bahia,

digo, Canalha infernal,

e não falo na nobreza

tábula, em que se não dá,

Porque o nobre enfim é nobre,

quem honra tem, honra dá,

pícaros dão picardias,

e inda lhes fica, que dar.

E tu, Cidade, és tão vil,

que o que em ti quiser campar,

não tem mais do que meter-se

a magano, e campará.

Seja ladrão descoberto

qual águia imperial,

tenha na unha o rapante,

e na vista o perspicaz.

A uns compre, a outros venda,

que eu lhe seguro o medrar,

seja velhaco notório,

e tramoeiro fatal.

Compre tudo, e pague nada,

deva aqui, deva acolá

perca o pejo, e a vergonha,

e se casar, case mal.

Com branca não, que é pobreza,

trate de se mascavar;

vendo-se já mascavado,

arrime-se a um bom solar.

Porfiar em ser fidalgo,

que com tanto se achará;

se tiver mulher formosa,

gabe-a por esses poiaes.

De virtuosa talvez,

E de entendida outro tal,

introduza-se ao burlesco

nas casas, onde se achar.

Que há Donzela de belisco,

que aos punhos se gastará,

trate-lhes um galanteio,

e um frete, que é principal.

Arrime-se a um poderoso,

que lhe alimente o gargaz,

que há pagadores na terra,

tão duros como no mar.

A estes faça alguns mandados

a título de agradar,

e conserve-se o afetuoso,

confessando o desigual.

Intime-lhe a fidalguia,

que eu creio, que crerá,

porque fique ela por ela,

quando lhe ouvir outro tal.

Vá visitar os amigos

no engenho de cada qual,

e comendo-os por um pé,

nunca tire o pé de lá.

Que os Brasileiros são bestas,

e estarão a trabalhar

toda a vida por manter

maganos de Portugal.

Como se vir homem rico,

tenha cuidado em guardar,

que aqui honram os mofinos,

e mofam dos liberais.

No Brasil a fidalguia

no bom sangue nunca está,

nem no bom procedimento,

pois logo em que pode estar?

Consiste em muito dinheiro,

e consiste em o guardar,

cada um o guarde bem,

para ter que gastar mal.

Consiste em dá-lo a maganos,

que o saibam lisonjear,

dizendo, que é descendente

da casa do Vila Real.

Se guardar o seu dinheiro,

onde quiser, casará :

os sogros não querem homens,

querem caixas de guardar.

Não coma o Genro, nem vista

que esse é genro universal;

todos o querem por genro,

genro de todos será.

Oh assolada veja eu

Cidade tão suja, e tal,

avesso de todo o mundo,

só direita em se entortar.

Terra, que não parece

neste mapa universal

com outra, ou são ruins todas,

ou ela somente é má.

DÉCIMAS

[Aos sebastianistas]

Ouçam os sebastianistas

ao profeta da Bahia

a mais alta astrologia

dos sábios gimnosofistas :

ouçam os anabatistas

da evangélica verdade,

que eu com pura claridade

digo em literal sentido

que o rei por Deus prometido

é quem? Sua Majestade.

 

Quando no campo de Ourique

na cruz de um raio abrasado

viu Cristo crucificado

el-rei Dom Afonso Henrique :

para que lhe certifique

afetos mais que fiéis,

Senhor, disse aos infiéis

mostrai a face divina,

não a quem a Igreja ensina

a crer tudo o que podeis.

 

E Deu, vendo tão fiel

aquele peito real

auspicando a Portugal,

quis ser o seu Samuel.

Na tua prole novel,

lhe disse, hei de estabelecer

um império a meu prazer,

e crê que na atenuação

da dezesseis geração

então hei de olhar, e ver.

 

A dezesseis geração,

por cômputo verdadeiro,

assevera o reino inteiro,

ser o quarto rei D.João :

e da prole a atenuação

(conforme a mesma verdade)

se vê em Sua Majestade;

pois sendo de três varões,

com duas atenuações

se tem posto na unidade.

 

Logo, em boa consequência,

na pessoa realçada

de Pedro, está atenuada

desta prole a descendência :

logo, com toda a evidência,

e à luz da divina Luz,

se vê que a Pedro conduz

o olhar, e ver de Deus,

que ao primeiro rei e aos seus

prometeu na ardente cruz.

 

E, se o tempo é já chegado,

perguntai-o a Daniel,

que no sétimo aranzel

o traz bem delineado.

Diz o profeta sagrado

que a quarta fera inumana

tinha na testa tirana

dez pontas, e que entre as dez

uma de grã pequenez

surgiu com potência insana.

 

Que esta ponta tão pequena,

mas tão potente, e tão forte,

a três das grandes deu morte

cruel, afrontosa e obscena :

quer dizer que a sarracena

potência, ou poder tirano

do pequeno maometano

tirara o seu desprazer

as três partes do poder

do grande Império Otomano.

 

E que pelo prejuízo

que a pequena ponta fez

das dez maiores às três,

a chamou Deus a juízo;

e a condenou de improviso

ao fogo voraz que a coma :

e daqui o profeta toma

(pois Deus assim a condena)

o fim da gente agarena

e seita do vil Mafoma.

 

Continuando a visão,

refere a história sagrada

que esta audiência acabada

chamou Deus um rei cristão

e lhe entregou na mão

o império prometido :

logo, bem tenho inferido,

que o sarraceno acabado,

é o tempo deputado

de ser este império erguido.

 

E pois a gente otomana,

vendo esta sua ruína

à luz da espada divina

de tanta armada austriana,

pode a nação lusitana

confiada neste agouro

preparar a palma e louro

para o príncipe cristão,

que há de empunhar o bastão

do império do Deus vindouro.

 

Pode a nação lusitana,

que foi terror do Oriente,

confiar que no Ocidente

o será da maometana;

pode cortar a espadana

em tal número e tal soma

que, quando o tempo a carcoma,

digamos com este exemplo

que abriu e fechou seu templo

o bifronte deus em Roma.

 

Estes secretos primores

não são de ideia sonhada,

são da escritura sagrada

e de santos escritores :

se não alego doutores

e poupo esses aparatos,

é porque basta a insensatos

por rudeza ou por cegueira,

que em prosa os compôs Vieira,

traduziu em versos Matos.

(OBS: Caros leitores, aqui se encerra  a série sobre Gregório de Matos Guerra. Estarei de férias no próximo mês. Retorno no início de fevereiro de 2019 com muitas novidades. Boas festas, e até a volta.)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

Mais Lidas