Gregório de Matos Guerra e todo o Barroco brasileiro são, de certo modo, principalmente no estilo de poesia, herdeiros do estro gongórico, também denominado de cultista, que era um jogo de palavras refinado, descrevendo a realidade através do aparato sensorial e tudo num caudal de versos rebuscados. De outro lado, tínhamos o estilo quevedista, também denominado de conceptista, este que, por sua vez, parte de conceitos lógicos e que versifica através de uma habilidade retórica, tudo isto num discurso que se fundamenta com requinte e beleza.
Os recursos estilísticos, portanto, podem ser exemplificados pela antítese, em que ideias contrárias ficam juntas, causando o que conhecemos por paradoxo. Temos também o oximoro, que é o choque entre ideias que causa a sensação de absurdo, pois tal é nada mais que a junção de sentidos que se excluem entre si. E temos, por fim, o hipérbato, que é uma inversão na ordem direta dos termos que compõem a oração, recurso este bem empregado e de cepa hispânica por excelência.
Historicamente, tivemos o auge do Barroco lusitano, por sua vez, após a Restauração da Independência de Portugal em 1640, na qual a dinastia de Bragança começa. O destaque que temos neste momento da História é a figura emblemática de Padre Antônio Vieira, cuja obra inclui cerca de 200 sermões, obra sacra, mas de valor literário canônico na literatura de língua portuguesa.
No Brasil, o Barroco ganha ares de estro religioso de forma patente. Gregório de Matos Guerra é um dos destaques na poesia nacional, sendo um representante do contexto social baiano, jogando com a realidade soteropolitana e construindo uma obra que figura forte no cenário literário brasileiro. Aqui, com Gregório, temos uma poesia ferina que lhe deu a alcunha de “Boca do Inferno”.
Todo o século XVII, como a Bahia colonial deste mesmo tempo, devem a Gregório um retrato fiel, cujo estro poético ia da sátira, humor este que vinha desde a trova antiga, como também temos Gregório transitando em temas religiosos, amorosos e políticos, e com um leitmotiv sempre bem estruturado na realidade de sua Bahia, mais especificamente a vida citadina no contexto de Salvador.
POEMAS
PERTENDE AGORA (POSTO QUE EM VÃO) DESENGANAR AOS SEBASTIANISTAS, QUE APLICAVÃO O DITO COMETA À VINDA DO ENCUBERTO. : Aqui temos o Gregório satírico, no que vem : “Estamos em noventa era esperada/De todo o Portugal, e mais conquistas,/Bom ano para tantos Bestianistas,/Melhor para iludir tanta burrada./Vê-se uma estrela pálida, e barbada,/E deduzem agora astrologistas/A vinda de um Rei morto pelas listas,”. O culto sebastianista devidamente ridicularizado, e aqui conhecemos o Boca do inferno e sua pena mordaz, no que vem : “Oh quem a um Bestianista pergunta,/Com que razão, ou fundamento, espera/Um Rei, que em guerra d`África acabara?/E se com Deus me dá; eu lhe dissera,/Se o quis restituir, não o matara,/E se o não quis matar, não o escondera.”. Como Deus poderia ocultar um rei de promessas? O culto a Dom Sebastião aqui é contradito na lógica, posto que em Gregório, e em seu poema, a ideia ganha seu contorno justamente absurdo e utópico.
EMBARCADO JA O POETA PARA O SEU DEGREDO, E POSTOS OS OLHOS NA SUA INGRATA PATRIA LHE CANTA DESDE O MAR AS DESPEDIDAS. : O poema é uma crítica social, os maganos portugueses que são cumulados de riquezas, e os brasileiros que trabalham para sustentar o ócio destes fidalgos sem sangue azul, montados em dinheiro, no que temos : “Adeus praia, adeus Cidade,/e agora me deverás,/Velhaca, dar eu adeus,/a quem devo ao demo dar.” (…) “Adeus Povo, adeus Bahia,/digo, Canalha infernal,” (…) “E tu, Cidade, és tão vil,/que o que em ti quiser campar,/não tem mais do que meter-se/a magano, e campará.” (…) “Compre tudo, e pague nada,/deva aqui, deva acolá/perca o pejo, e a vergonha,/e se casar, case mal.” (…) “Porfiar em ser fidalgo,/que com tanto se achará;/se tiver mulher formosa,/gabe-a por esses poiaes./De virtuosa talvez,/E de entendida outro tal,/introduza-se ao burlesco/nas casas, onde se achar.” (…) “Arrime-se a um poderoso,/que lhe alimente o gargaz,” (…) “A estes faça alguns mandados/a título de agradar,”. E segue aqui a tese baiana e nacional de que não é a virtude que faz rico o Homem, mas a esperteza e a ganância, podemos perceber que este ímpeto ladino que é uma parte de nossa cultura até os dias atuais vem de longe, e neste século XVII de Gregório são os maganos que se fazem de fidalgos, os portugueses que ficam no ócio e no luxo, no que temos : “Vá visitar os amigos/no engenho de cada qual,/e comendo-os por um pé,/nunca tire o pé de lá./Que os Brasileiros são bestas,/e estarão a trabalhar/toda a vida por manter/maganos de Portugal.” (…) “No Brasil a fidalguia/no bom sangue nunca está,” (…) “Consiste em muito dinheiro,/e consiste em o guardar,/cada um o guarde bem,/para ter que gastar mal./Consiste em dá-lo a maganos,/que o saibam lisonjear,/dizendo, que é descendente/da casa do Vila Real./Se guardar o seu dinheiro,/onde quiser, casará :/os sogros não querem homens,/querem caixas de guardar.” (…) “Oh assolada veja eu/Cidade tão suja, e tal,/avesso de todo o mundo,/só direita em se entortar./Terra, que não parece/neste mapa universal/com outra, ou são ruins todas,/ou ela somente é má.”. E, ao fim, mais uma vez, maldiz sua cidade e sua origem.
DÉCIMAS [Aos sebastianistas] : Aqui o poema também tematiza o sebastianismo, mas já numa alegoria bíblica e não mais de troça satírica, no que temos : “Ouçam os sebastianistas/ao profeta da Bahia/a mais alta astrologia/dos sábios gimnosofistas :/ouçam os anabatistas/da evangélica verdade,/que eu com pura claridade/digo em literal sentido/que o rei por Deus prometido/é quem? Sua Majestade./Quando no campo de Ourique/na cruz de um raio abrasado/viu Cristo crucificado/el-rei Dom Afonso Henrique :/para que lhe certifique/afetos mais que fiéis,/Senhor, disse aos infiéis/mostrai a face divina,”. E o poeta enumera a geração real do colonialismo lusitano, no que temos então tal sucessão, e que culmina numa imagem apocalíptica da fera inumana que tinha na testa tirana dez pontas, no que temos : “Na tua prole novel,/lhe disse, hei de estabelecer/um império a meu prazer,/e crê que na atenuação/da dezesseis geração/então hei de olhar, e ver.” (…) “Diz o profeta sagrado/que a quarta fera inumana/tinha na testa tirana/dez pontas, e que entre as dez/uma de grã pequenez/surgiu com potência insana./Que esta ponta tão pequena,/mas tão potente, e tão forte,/a três das grandes deu morte/cruel, afrontosa e obscena :/quer dizer que a sarracena/potência, ou poder tirano/do pequeno maometano/tirara o seu desprazer/as três partes do poder/do grande Império Otomano.”. A guerra das nações, e o intento lusitano vai do oriente ao mundo maometano, no que aqui temos como que a profecia do rei cristão, do império prometido, no que temos : “a chamou Deus a juízo;/e a condenou de improviso/ao fogo voraz que a coma :/e daqui o profeta toma/(pois Deus assim a condena)/o fim da gente agarena/e seita do vil Mafoma.” (…) “chamou Deus um rei cristão/e lhe entregou na mão/o império prometido :” (…) “E pois a gente otomana,/vendo esta sua ruína/à luz da espada divina/de tanta armada austriana,/pode a nação lusitana/confiada neste agouro/preparar a palma e louro/para o príncipe cristão,/que há de empunhar o bastão/do império do Deus vindouro.” (…) “Estes secretos primores/não são de ideia sonhada,/são da escritura sagrada/e de santos escritores :/se não alego doutores/e poupo esses aparatos,/é porque basta a insensatos/por rudeza ou por cegueira,/que em prosa os compôs Vieira,/traduziu em versos Matos.”. E a coda então revela a fonte literária da inspiração bíblica, a mestria de Padre Antônio Vieira.
POEMAS :
PERTENDE AGORA (POSTO QUE EM VÃO) DESENGANAR AOS SEBASTIANISTAS, QUE APLICAVÃO O DITO COMETA À VINDA DO ENCUBERTO.
Estamos em noventa era esperada
De todo o Portugal, e mais conquistas,
Bom ano para tantos Bestianistas,
Melhor para iludir tanta burrada.
Vê-se uma estrela pálida, e barbada,
E deduzem agora astrologistas
A vinda de um Rei morto pelas listas,
Que não sendo dos Magos é estrelada.
Oh quem a um Bestianista pergunta,
Com que razão, ou fundamento, espera
Um Rei, que em guerra d`África acabara?
E se com Deus me dá; eu lhe dissera,
Se o quis restituir, não o matara,
E se o não quis matar, não o escondera.
EMBARCADO JA O POETA PARA O SEU DEGREDO, E POSTOS OS OLHOS NA SUA INGRATA PATRIA LHE CANTA DESDE O MAR AS DESPEDIDAS.
Adeus praia, adeus Cidade,
e agora me deverás,
Velhaca, dar eu adeus,
a quem devo ao demo dar.
Que agora, que me devas
dar-te adeus, como quem cai,
sendo que estás tão caída,
que nem Deus te quererá.
Adeus Povo, adeus Bahia,
digo, Canalha infernal,
e não falo na nobreza
tábula, em que se não dá,
Porque o nobre enfim é nobre,
quem honra tem, honra dá,
pícaros dão picardias,
e inda lhes fica, que dar.
E tu, Cidade, és tão vil,
que o que em ti quiser campar,
não tem mais do que meter-se
a magano, e campará.
Seja ladrão descoberto
qual águia imperial,
tenha na unha o rapante,
e na vista o perspicaz.
A uns compre, a outros venda,
que eu lhe seguro o medrar,
seja velhaco notório,
e tramoeiro fatal.
Compre tudo, e pague nada,
deva aqui, deva acolá
perca o pejo, e a vergonha,
e se casar, case mal.
Com branca não, que é pobreza,
trate de se mascavar;
vendo-se já mascavado,
arrime-se a um bom solar.
Porfiar em ser fidalgo,
que com tanto se achará;
se tiver mulher formosa,
gabe-a por esses poiaes.
De virtuosa talvez,
E de entendida outro tal,
introduza-se ao burlesco
nas casas, onde se achar.
Que há Donzela de belisco,
que aos punhos se gastará,
trate-lhes um galanteio,
e um frete, que é principal.
Arrime-se a um poderoso,
que lhe alimente o gargaz,
que há pagadores na terra,
tão duros como no mar.
A estes faça alguns mandados
a título de agradar,
e conserve-se o afetuoso,
confessando o desigual.
Intime-lhe a fidalguia,
que eu creio, que crerá,
porque fique ela por ela,
quando lhe ouvir outro tal.
Vá visitar os amigos
no engenho de cada qual,
e comendo-os por um pé,
nunca tire o pé de lá.
Que os Brasileiros são bestas,
e estarão a trabalhar
toda a vida por manter
maganos de Portugal.
Como se vir homem rico,
tenha cuidado em guardar,
que aqui honram os mofinos,
e mofam dos liberais.
No Brasil a fidalguia
no bom sangue nunca está,
nem no bom procedimento,
pois logo em que pode estar?
Consiste em muito dinheiro,
e consiste em o guardar,
cada um o guarde bem,
para ter que gastar mal.
Consiste em dá-lo a maganos,
que o saibam lisonjear,
dizendo, que é descendente
da casa do Vila Real.
Se guardar o seu dinheiro,
onde quiser, casará :
os sogros não querem homens,
querem caixas de guardar.
Não coma o Genro, nem vista
que esse é genro universal;
todos o querem por genro,
genro de todos será.
Oh assolada veja eu
Cidade tão suja, e tal,
avesso de todo o mundo,
só direita em se entortar.
Terra, que não parece
neste mapa universal
com outra, ou são ruins todas,
ou ela somente é má.
DÉCIMAS
[Aos sebastianistas]
Ouçam os sebastianistas
ao profeta da Bahia
a mais alta astrologia
dos sábios gimnosofistas :
ouçam os anabatistas
da evangélica verdade,
que eu com pura claridade
digo em literal sentido
que o rei por Deus prometido
é quem? Sua Majestade.
Quando no campo de Ourique
na cruz de um raio abrasado
viu Cristo crucificado
el-rei Dom Afonso Henrique :
para que lhe certifique
afetos mais que fiéis,
Senhor, disse aos infiéis
mostrai a face divina,
não a quem a Igreja ensina
a crer tudo o que podeis.
E Deu, vendo tão fiel
aquele peito real
auspicando a Portugal,
quis ser o seu Samuel.
Na tua prole novel,
lhe disse, hei de estabelecer
um império a meu prazer,
e crê que na atenuação
da dezesseis geração
então hei de olhar, e ver.
A dezesseis geração,
por cômputo verdadeiro,
assevera o reino inteiro,
ser o quarto rei D.João :
e da prole a atenuação
(conforme a mesma verdade)
se vê em Sua Majestade;
pois sendo de três varões,
com duas atenuações
se tem posto na unidade.
Logo, em boa consequência,
na pessoa realçada
de Pedro, está atenuada
desta prole a descendência :
logo, com toda a evidência,
e à luz da divina Luz,
se vê que a Pedro conduz
o olhar, e ver de Deus,
que ao primeiro rei e aos seus
prometeu na ardente cruz.
E, se o tempo é já chegado,
perguntai-o a Daniel,
que no sétimo aranzel
o traz bem delineado.
Diz o profeta sagrado
que a quarta fera inumana
tinha na testa tirana
dez pontas, e que entre as dez
uma de grã pequenez
surgiu com potência insana.
Que esta ponta tão pequena,
mas tão potente, e tão forte,
a três das grandes deu morte
cruel, afrontosa e obscena :
quer dizer que a sarracena
potência, ou poder tirano
do pequeno maometano
tirara o seu desprazer
as três partes do poder
do grande Império Otomano.
E que pelo prejuízo
que a pequena ponta fez
das dez maiores às três,
a chamou Deus a juízo;
e a condenou de improviso
ao fogo voraz que a coma :
e daqui o profeta toma
(pois Deus assim a condena)
o fim da gente agarena
e seita do vil Mafoma.
Continuando a visão,
refere a história sagrada
que esta audiência acabada
chamou Deus um rei cristão
e lhe entregou na mão
o império prometido :
logo, bem tenho inferido,
que o sarraceno acabado,
é o tempo deputado
de ser este império erguido.
E pois a gente otomana,
vendo esta sua ruína
à luz da espada divina
de tanta armada austriana,
pode a nação lusitana
confiada neste agouro
preparar a palma e louro
para o príncipe cristão,
que há de empunhar o bastão
do império do Deus vindouro.
Pode a nação lusitana,
que foi terror do Oriente,
confiar que no Ocidente
o será da maometana;
pode cortar a espadana
em tal número e tal soma
que, quando o tempo a carcoma,
digamos com este exemplo
que abriu e fechou seu templo
o bifronte deus em Roma.
Estes secretos primores
não são de ideia sonhada,
são da escritura sagrada
e de santos escritores :
se não alego doutores
e poupo esses aparatos,
é porque basta a insensatos
por rudeza ou por cegueira,
que em prosa os compôs Vieira,
traduziu em versos Matos.
(OBS: Caros leitores, aqui se encerra a série sobre Gregório de Matos Guerra. Estarei de férias no próximo mês. Retorno no início de fevereiro de 2019 com muitas novidades. Boas festas, e até a volta.)
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.