Gregório de Matos Guerra tem a sua poesia bem compreendida dentro de certas fronteiras históricas, isto é, temos como depreender seu sentido mais correto quando nos voltamos para os códigos culturais em que o poeta se estabeleceu como tal.
No que se refere ao contexto da escrita de Gregório, lembrada aqui a sua relação com outros textos produzidos na mesma época em que o poeta viveu, nem sempre a crítica se voltou para este aspecto, pois muito da lenda sobre o poeta veio de uma visão pejorativa que negligenciava o fato de que os gêneros em que os poetas brasileiros se fiavam por volta daquele século XVII eram relacionados com modelos pré-existentes, e tais relações se estabeleciam, sobretudo, com a poesia espanhola de Gôngora e Quevedo.
E, por sinal, temos uma regra de imitação poética que irá vigorar pelos séculos XVI, XVII e por fim no século XVIII, embora tal forma de mimética não fosse uma coisa necessariamente negativa, mas parte da natureza da escrita nesses períodos citados, ou seja, temos um ambiente literário em que o empréstimo e assimilação eram correntes, no que até mesmo a reação barroca em face do Renascimento, ainda tinha esta imitação como uma regra normal de produção poética.
Quanto ao apelido “boca de inferno” do poeta Gregório, por sua vez, temos esta expressão retirada de um soneto do espanhol Lope de Vega, soneto este que tomava por alvo o arquiteto e escritor Trajano Boccalini, que era o satírico “Boca del Infierno”.
Uma vez que sabemos da faculdade de imitação poética como prática e regra natural na época em que viveu Gregório de Matos, podemos entender que neste contexto não temos a nossa hoje validada valoração positiva da originalidade como sinal de distinção literária e o plágio como crime ou apropriação indevida, a questão da poesia e da escrita criativa no século XVII tem cepa diversa e própria de um processo em que o diálogo entre escritores ia além da mera influência, pois era feita de intercâmbios e empréstimos que faziam uma unidade bem rígida de composição.
Os versos de Gregório possuem temática ampla, ou seja, podemos transitar pela máquina mercante e as condições sociais e políticas da Bahia em perspectiva de humor e crítica, indo a uma multiplicidade de etnias em Pernambuco ou passearmos em sonetos com artifícios afetando certa fidalguia. Temos versos e poemas que tomam alvos diversos, pois eles variam entre acusações de maricas, críticas contra a bazófia de pretensos fidalgos, passando por epítetos desrespeitosos para algumas mulheres, e indo de encontro a ricos que eram sistematicamente ridicularizados pela pena ferina de Gregório, passando, por fim, ao ataque contra certos aspectos da vida clerical, e temos Gregório então definido como um crítico político e social, e que era poeta e fazia esta crítica com poesia.
A obra de Gregório, por fim, tem uma significação importante para o contexto do que era o Brasil colonial. A composição de versos ferinos desvelam toda uma realidade da época com uma agudeza crítica que nos facilita a compreensão do que era a vida do século XVII, pois Gregório nos fornece uma obra notável que serve como um documento fiel ao que é importante saber de uma vida social e política que somente é discernível por meio de certo humor e senso crítico que nos resume muita coisa que, fora isto, demandariam um tempo e uma pesquisa maior e mais maçante do que tais versos de Gregório.
O contexto histórico dos versos de Gregório, por fim, não lhe impedem de ser uma poesia de cepa universal, pois seu alcance é suficiente para situarmos esta obra tanto como documento fiel do Brasil colonial como peça indispensável da literatura universal.
POEMAS
DISCRIÇÃO, ENTRADA, E PROCEDIMENTO DO BRAÇO DE PRATA ANTONIO DE SOUZA DE MENEZES GOVERNADOR DESTE ESTADO. : O poema se volta ao plectro esguio da Bahia, no esforço aqui de Dom Antônio, e é uma Bahia já com a ressaca de seus velhos poetas ditos elegantes, e já com o poeta Gregório em certa ironia de si mesmo que, no entanto, tem uma boa composição de humor e crítica, no que vem : “Oh não te espantes não, Dom Antonio,/Que se atreva a Bahia/Com oprimida voz, com plectro esguio/Cantar ao mundo teu rico feitio,/Que é já velho em Poetas elegantes/O cair em torpezas semelhantes./Da Pulga acho, que Ovídio tem escrito,/Lucano do Mosquito,/Das Rãs Homero, e destes não desprezo,/Que escreveram matérias de mais peso/Do que eu, que canto cousa mais delgada/Mais chata, mais sutil, mais esmagada./Quando desembarcaste de fragata,/Meu Dom Braço de Prata,”. O poema parte então para a desconstrução crítica de personagens da vida da Bahia, no que vem : “O rosto de azarcão afogueado,/E em partes mal untado,/Tão cheio o corpanzil de godolhões,/Que o julguei por um saco de melões;” (…) “Olhos cagões, que cagam sempre à porta,/Me tem esta alma torta,/Principalmente vendo-lhe as vidraças/No grosseiro caixilho das couraças :”. A crítica se torna destrutiva, forte, e impiedosa, no que temos, portanto : “De muito cego, e não de malquerer/A ninguém podes ver;/Tão cego és, que não vês teu prejuízo/Sendo cousa, que se olha com juízo :” (…) “Pernas, e pés defendem tua cara :/Valha-te; e quem cuidara,/Tomando-te a medida das cavernas/Se movesse tal corpo com tais pernas!”. A descrição aqui é terrível, o poeta se volta com grande brio e a pena queima e arrasa o que lhe cerca, no que vem : “Um casaquim trazias sobre o couro,/Qual odre, a quem o Touro/Uma, e outra cornada deu traidora,/E lhe deitou de todo o vento fora;/Tal vinha o teu vestido de enrugado,/Que o tive por um odre esfuracado.”. E vem o agouro severo de um poeta potente e senhor de seus versos como poucos, no que temos : “Livre-te Deus de um Sapateiro, ou Sastre,/Que te temo um desastre,/E é, que por sovela, ou por agulha/Arme sobre levar-te alguma bulha :/Porque depositando-te à justiça/Será num agulheiro, ou em cortiça.” (…) “Fundia-se a cidade em carcajadas,/Vendo as duas entradas,/Que fizeste do Mar a Santo Inácio,/E depois do colégio a teu palácio :/O Rabo erguido em cortesias mudas,/Como quem pelo cu tomava ajudas./Ao teu palácio te acolheste, e logo/Casa armaste de jogo,/Ordenando as merendas por tal jeito,/Que a cada jogador cabe um confeito :/Dos Tafuis em confeito era um bocado,/Sendo tu pela cara o enforcado./Depois deste em fazer tanta parvoíce,/Que inda que o povo risse/Ao princípio, cresceu depois a tanto,/Que chegou a chorar com triste pranto :”. E o poema então arremata seu trajeto com o rigor da crítica ferina, no que temos : “Xinga-te o negro, o branco te pragueja,/E a ti nada te aleija,/E por teu sensabor, e pouca graça/És fábula do lar, riso da praça,/Té que a bala, que o braço te levara,/Venha segunda vez levar-te a cara.”. A coda então fecha como um soco.
A CERTO PROVINCIAL DE CERTA RELIGIÃO QUE PREGOU O MANDATO EM TERMOS TAM RIDICULOS QUE MAIS SERVIO DE MOTIVO DE RIZO, DO QUE DE COMPAIXÃO. : O poema parte para o ridículo clerical, no que vem : “Inda está por decidir,/meu Padre Provincial,/se aquele sermão fatal/foi de chorar, se de rir :/cada qual pode inferir,/o que melhor lhe estiver,/porque aquela má mulher/da preversa sinagoga/fez no sermão tal chinoga,/que o não deixou entender.”. E o poema continua, já pondo o pregador em maus lençóis, no que vem : “eu lhe quero dar das três/a outro qualquer Pregador,/seja ele quem quer que for,/já filósofo, ou já letrado,/e quero perder dobrado,/se fizer outro pior./E vossa Paternidade,/pelo que deve à virtude,/de tais pensamentos mude,/que prega mal na verdade :/faça atos de caridade,/e trate de se emendar,/não nos venha mais pregar,/que jurou o Mestre Escola,/que por pregar para Angola/o haviam de degradar.”. O poeta cobra uma postura mais firme e honesta, a virtude aqui é lembrada, e a degradação condenada. O poeta cita o letrado e o filósofo como exemplos, mas está certo de que todos devem pregar a verdade, não importa a cepa da pessoa, a virtude deve dar lugar à frouxidão moral ou à tibieza dos falsos crentes.
DESCREVE COM MAIS INDIVIDUAÇÃO A FIDUCIA, COM QUE OS ESTRANHOS SOBEM A ARRUINAR SUA REPUBLICA : O poema exalta e critica a Bahia, no que vem : “Senhora Dona Bahia,/nobre, e opulenta cidade,/madrasta dos Naturais,/e dos Estrangeiros madre./Dizei-me por vida vossa,/em que fundais o ditame/de exaltar, os que aí vêm,/e abater, os que ali nascem?”. O poema então se faz em grande estro de descrição de costumes em forma de poesia, e é uma descrição de intenções e de reconstituição histórica, o poema é muito bem estruturado, e considero um dos melhores de Gregório, dos que eu li, no que temos : “E suposto que os louvores/em boca própria não cabem,/se tem força terá a verdade./O certo é, Pátria minha,/que fostes terra de alarves,” (…) “que éreis uma aldeia pobre,/e hoje sois rica cidade./Então vos pisavam Índios,/e vos habitavam cafres,/hoje chispais fidalguias,/arrojando personagens.”. E temos um certo ar decadente e de crime que o poema aqui enumera, no que temos : “Sai um pobrete de Cristo/de Portugal, ou do Algarve/cheio de drogas alheias/para daí tirar gages :” (…) “Entra pela barra dentro,/dá fundo, e logo a entonar-se/começa a bordo da Nau/cum vestidinho flamante./Salta em terra, toma casas,/arma a botica dos trastes,/em casa come Baleia,/na rua entoja manjares.”. O poema ganha corpo e potência inauditas, é uma obra-prima, no que vem : “Entra logo nos pilouros,/e sai do primeiro lance/Vereador da Bahia,/que é notável dignidade.” (…) “Fica em terra resoluto/a entrar na ordem mercante,/troca por côvado, e vara/timão, balhestilha, e mares.”. O poema então descreve um personagem perdido, deambulante, hesitante, como é próprio de uma hipocrisia e também caráter fundante da infâmia : “Vende o cabedal alheio,/e dá com ele em Levante,/vai, e vem, e ao dar das contas/diminui, e não reparte./Prende aqui, prende acolá,/nunca falta um bom Compadre,/que entretenha o acredor,/ou faça esperar o Alcaide.”. A política e todos os seus ardis são aqui destituídos de substância, no que vem : “O que ele fez, foi furtar,/que isso faz qualquer bribante,/tudo o mais lhe fez a terra/sempre propícia aos infames/e eis aqui a personagem./Vem um Clérigo idiota,/Desmaiado com um jalde,/os vícios com seu bioco,/com seu rebuço as maldades :”. E a crítica se volta aqui, novamente, ao mundinho clerical, no que vem : “Ontem simples Sacerdote,/hoje uma grã dignidade,/ontem salvage notório,/hoje encoberto ignorante./Ao tal Beato fingido/é força, que o povo aclame,/e os do governo se obriguem,/pois edifica a cidade.”. E a enumeração continua, com forma impiedosa, ferina, própria do boca de inferno, no que vem : “Vêm outros zotes de Réquiem,/que indo tomar o caráter/todo o Reino inteiro cruzam/sobre a chanca viandante./De uma província para outra/como Dromedários partem,/caminham como camelos,/e comem como salvages :” (…) “Não se gasta, antes se embolsa,/porque o Reverendo Padre/é do Santo Nicomedes/meritíssimo confrade;/e eis aqui a personagem./Veem isto os Filhos da terra,/e entre tanta iniquidade/são tais, que nem inda tomam/licença para queixar-se./Sempre veem, e sempre falam,/Até que Deus lhes depare,/Quem lhes faça de justiça/está sátira à cidade,/Tão queimada, e destruída/te vejas, torpe cidade,/como Sodoma, e Gomorra/duas cidades infames./Que eu zombo dos teus vizinhos,/sejam pequenos, ou grandes/gozos, que por natureza/nunca mordem, sempre latem./Que eu espero entre Paulistas/na divina Majestade,/Que a ti São Marçal te queime,/E São Pedro assim me guarde.”. O poema então se encerra com mestria, poema magistral de crítica e estética impecáveis.
POEMAS
DISCRIÇÃO, ENTRADA, E PROCEDIMENTO DO BRAÇO DE PRATA ANTONIO DE SOUZA DE MENEZES GOVERNADOR DESTE ESTADO.
Oh não te espantes não, Dom Antonio,
Que se atreva a Bahia
Com oprimida voz, com plectro esguio
Cantar ao mundo teu rico feitio,
Que é já velho em Poetas elegantes
O cair em torpezas semelhantes.
Da Pulga acho, que Ovídio tem escrito,
Lucano do Mosquito,
Das Rãs Homero, e destes não desprezo,
Que escreveram matérias de mais peso
Do que eu, que canto cousa mais delgada
Mais chata, mais sutil, mais esmagada.
Quando desembarcaste de fragata,
Meu Dom Braço de Prata,
Cuidei, que a esta cidade tonta, e fátua
Mandava a Inquisição alguma estátua
Vendo tão espremida salvajola
Visão de palha sobre um Mariola.
O rosto de azarcão afogueado,
E em partes mal untado,
Tão cheio o corpanzil de godolhões,
Que o julguei por um saco de melões;
Vi-te o braço pendente da garganta,
E nunca prata vi com liga tanta.
O bigode fanado feito ao ferro
Está ali num desterro,
E cada pelo em solidão tão rara,
Que parece ermitão da sua cara :
Da cabeceira pois afirmam cegos,
Que a mandaste comprar no arco dos pregos.
Olhos cagões, que cagam sempre à porta,
Me tem esta alma torta,
Principalmente vendo-lhe as vidraças
No grosseiro caixilho das couraças :
Cangalhas, que formaram luminosas
Sobre arcos de pipa duas ventosas.
De muito cego, e não de malquerer
A ninguém podes ver;
Tão cego és, que não vês teu prejuízo
Sendo cousa, que se olha com juízo :
Tu és mais cego, que eu, que te sussurro,
Que em te olhando, não vejo mais que um burro.
Chato o nariz de cocras sempre posto :
Te cobre todo o rosto,
De gatinhas buscando algum jazigo
Adonde o desconheçam por embigo :
Até que se esconde, onde mal o vejo
Por fugir do fedor do teu bocejo.
Faz-lhe tal vizinhança a tua boca,
Que com razão não pouca
O nariz se recolhe para o centro
Mudado para os baixos lá de dentro :
Surge outra vez, e vendo a bafarada
Lhe fica a ponta um dia ali engasgada.
Pernas, e pés defendem tua cara :
Valha-te; e quem cuidara,
Tomando-te a medida das cavernas
Se movesse tal corpo com tais pernas!
Cuidei, que eras rocim das alpujarras,
E já frisão te digo pelas garras.
Um casaquim trazias sobre o couro,
Qual odre, a quem o Touro
Uma, e outra cornada deu traidora,
E lhe deitou de todo o vento fora;
Tal vinha o teu vestido de enrugado,
Que o tive por um odre esfuracado.
O que te vir ser todo rabadinha
Dirá, que te perfilha
Uma quaresma (chato percevejo)
Por Arenque de fumo, ou por Badejo :
Sem carne, e osso, quem há ali, que creia,
Senão que és descendente de Lampreia.
Livre-te Deus de um Sapateiro, ou Sastre,
Que te temo um desastre,
E é, que por sovela, ou por agulha
Arme sobre levar-te alguma bulha :
Porque depositando-te à justiça
Será num agulheiro, ou em cortiça.
Na esquerda mão trazias a bengala
ou por força, ou por gala :
No sovaco por vezes a metias,
Só por fazer enfim descortesias,
Tirando ao povo, quando te destapas,
Entonces o chapéu, agora as capas.
Fundia-se a cidade em carcajadas,
Vendo as duas entradas,
Que fizeste do Mar a Santo Inácio,
E depois do colégio a teu palácio :
O Rabo erguido em cortesias mudas,
Como quem pelo cu tomava ajudas.
Ao teu palácio te acolheste, e logo
Casa armaste de jogo,
Ordenando as merendas por tal jeito,
Que a cada jogador cabe um confeito :
Dos Tafuis em confeito era um bocado,
Sendo tu pela cara o enforcado.
Depois deste em fazer tanta parvoíce,
Que inda que o povo risse
Ao princípio, cresceu depois a tanto,
Que chegou a chorar com triste pranto :
Chora-te o nu de um roubador de falso,
E vendo-te eu direito, me descalço.
Xinga-te o negro, o branco te pragueja,
E a ti nada te aleija,
E por teu sensabor, e pouca graça
És fábula do lar, riso da praça,
Té que a bala, que o braço te levara,
Venha segunda vez levar-te a cara.
A CERTO PROVINCIAL DE CERTA RELIGIÃO QUE PREGOU O MANDATO EM TERMOS TAM RIDICULOS QUE MAIS SERVIO DE MOTIVO DE RIZO, DO QUE DE COMPAIXÃO.
Inda está por decidir,
meu Padre Provincial,
se aquele sermão fatal
foi de chorar, se de rir :
cada qual pode inferir,
o que melhor lhe estiver,
porque aquela má mulher
da preversa sinagoga
fez no sermão tal chinoga,
que o não deixou entender.
Certo, que este lava-pés
me deixou escangalhado,
e quanto a mim foi traçado
para risonho entremez :
eu lhe quero dar das três
a outro qualquer Pregador,
seja ele quem quer que for,
já filósofo, ou já letrado,
e quero perder dobrado,
se fizer outro pior.
E vossa Paternidade,
pelo que deve à virtude,
de tais pensamentos mude,
que prega mal na verdade :
faça atos de caridade,
e trate de se emendar,
não nos venha mais pregar,
que jurou o Mestre Escola,
que por pregar para Angola
o haviam de degradar.
DESCREVE COM MAIS INDIVIDUAÇÃO A FIDUCIA, COM QUE OS ESTRANHOS SOBEM A ARRUINAR SUA REPUBLICA
Senhora Dona Bahia,
nobre, e opulenta cidade,
madrasta dos Naturais,
e dos Estrangeiros madre.
Dizei-me por vida vossa,
em que fundais o ditame
de exaltar, os que aí vêm,
e abater, os que ali nascem?
Se o fazeis pelo interesse,
de que os estranhos vos gabem,
isso os Paisanos fariam
com duplicadas vantagens.
E suposto que os louvores
em boca própria não cabem,
se tem força terá a verdade.
O certo é, Pátria minha,
que fostes terra de alarves,
e inda os ressábios vos duram
desse tempo, e dessa idade.
Haverá duzentos anos,
(nem tantos podem contar-se)
que éreis uma aldeia pobre,
e hoje sois rica cidade.
Então vos pisavam Índios,
e vos habitavam cafres,
hoje chispais fidalguias,
arrojando personagens.
A essas personagens vamos,
sobre elas será o debate,
e queira Deus, que o vencer-vos
para envergonhar-vos baste.
Sai um pobrete de Cristo
de Portugal, ou do Algarve
cheio de drogas alheias
para daí tirar gages :
O tal foi sota-tendeiro
de um cristão-novo em tal parte,
que por aqueles serviços
o despachou a embarcar-se.
Fez-lhe uma carregação
entre amigos, e comprades :
e ei-lo comissário feito
de linhas, lonas, beirames.
Entra pela barra dentro,
dá fundo, e logo a entonar-se
começa a bordo da Nau
cum vestidinho flamante.
Salta em terra, toma casas,
arma a botica dos trastes,
em casa come Baleia,
na rua entoja manjares.
Vendendo gato por lebre,
antes que quatro anos passem,
já tem tantos mil cruzados,
segundo afirmam Pasguates.
Começam a olhar para ele
Os Pais, que já querem dar-lhe
Filha, e dote, porque querem
homem, que coma, e não gaste.
Que essa mal há nos mazombos,
têm tão pouca habilidade,
que o seu dinheiro despendem
para haver de sustentar-se.
Casa-se o meu matachim,
Põe duas Negras, e um Pajem,
uma rede com dous Minas,
chapéu-de-sol, casas-grandes.
Entra logo nos pilouros,
e sai do primeiro lance
Vereador da Bahia,
que é notável dignidade.
Já temos o Canastreiro,
que inda fede a seus beirames,
metamorfórsis da terra
transformado em homem grande :
e eis aqui a personagem.
Vem outro do mesmo lote
tão pobre, e tão miserável
vende os retalhos, e tira
comissão com couro, e carne.
Co principal se levanta,
e tudo emprega no Iguape,
que um engenho, e três fazendas
o têm feito homem grande;
e eis aqui a personagem.
Dentre a chusma e a canalha
da marítima bagagem
fica às vezes um cristão,
que apenas benzer-se sabe :
Fica em terra resoluto
a entrar na ordem mercante,
troca por côvado, e vara
timão, balhestilha, e mares.
Arma-lhe a tenda um ricaço,
que a terra chama Magnate
com pacto de parceria,
que em direito é sociedade :
Com isto a Marinheiraz
do primeiro jacto, ou lance
bota fora o cu breado,
as mãos dissimula em guantes.
Vende o cabedal alheio,
e dá com ele em Levante,
vai, e vem, e ao dar das contas
diminui, e não reparte.
Prende aqui, prende acolá,
nunca falta um bom Compadre,
que entretenha o acredor,
ou faça esperar o Alcaide.
Passa um ano, e outro ano,
esperando, que ele pague,
que uns lhe dão, para que junte,
e outros mais, para que engane.
Nunca paga, e sempre come,
e quer o triste Mascate,
que em fazer a sua estrela
o tenham por homem grande.
O que ele fez, foi furtar,
que isso faz qualquer bribante,
tudo o mais lhe fez a terra
sempre propícia aos infames
e eis aqui a personagem.
Vem um Clérigo idiota,
Desmaiado com um jalde,
os vícios com seu bioco,
com seu rebuço as maldades :
Mais Santo do que Mafoma
Na crença dos seus Arabes,
Letrado como um Matulo,
e velhaco como um Frade :
Ontem simples Sacerdote,
hoje uma grã dignidade,
ontem salvage notório,
hoje encoberto ignorante.
Ao tal Beato fingido
é força, que o povo aclame,
e os do governo se obriguem,
pois edifica a cidade.
Chovem uns, e chovem outros
com ofícios, e lugares,
e o Beato tudo apanha
por sua muita humildade.
Cresce em dinheiro, e respeito,
vai remetendo as fundagens,
compra toda a sua terra,
com que fica homem grande,
e eis aqui a personagem.
Vêm outros zotes de Réquiem,
que indo tomar o caráter
todo o Reino inteiro cruzam
sobre a chanca viandante.
De uma província para outra
como Dromedários partem,
caminham como camelos,
e comem como salvages :
Mariolas de missal,
lacaios missa-cantante
sacerdotes ao burlesco,
ao sério ganhões de altares.
Chega um destes, toma amo,
que as capelas dos Magnates
são rendas, que Deus criou
para estes Orate frates.
Fazem-lhe certo ordenado,
que é dinheiro na verdade,
que o Papa reserva sempre
das ceias, e dos jantares.
Não se gasta, antes se embolsa,
porque o Reverendo Padre
é do Santo Nicomedes
meritíssimo confrade;
e eis aqui a personagem.
Veem isto os Filhos da terra,
e entre tanta iniquidade
são tais, que nem inda tomam
licença para queixar-se.
Sempre veem, e sempre falam,
Até que Deus lhes depare,
Quem lhes faça de justiça
está sátira à cidade,
Tão queimada, e destruída
te vejas, torpe cidade,
como Sodoma, e Gomorra
duas cidades infames.
Que eu zombo dos teus vizinhos,
sejam pequenos, ou grandes
gozos, que por natureza
nunca mordem, sempre latem.
Que eu espero entre Paulistas
na divina Majestade,
Que a ti São Marçal te queime,
E São Pedro assim me guarde.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.