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Joyce considerava ‘Dublinenses’ uma espécie de história moral da Irlanda

Dublinenses é um livro que reúne quinze contos de James Joyce, escritos a partir de 1904 e publicados em 1914. Tais contos, escritos concomitantemente à produção do romance de Joyce, Retrato do Artista Quando Jovem, são uma revelação de Dublin, de seu cotidiano, da vida irlandesa nos seus aspectos mais concretos, é a vida vivida de que fala os contos de Joyce, mais do que um exercício artístico per se. Junta-se, neste escopo, a infância, relacionamentos conjugais, e uma ponte para algo mais metafísico, somente no caso das epifanias, que são, neste caso, a descoberta de essências de situações inicialmente ocultadas, o que não leva a uma dedução errônea de que haja algo místico nisso, sendo puramente decorrência de uma trama calcada na realidade cotidiana dos habitantes de Dublin, da vida irlandesa e seu sentido real.
 
O conto mais conhecido de Dublinenses é The Dead (Os mortos), que é o último da sequência de 15 contos, e os outros são, na ordem: As Irmãs (The Sisters), Um Encontro (An Encounter), Arábia (Araby), Eveline, Após a corrida (After the Race), Dois galantes (Two Gallants), A pensão (The Boarding House), Uma pequena nuvem (A Little Cloud), Contrapartida (Counterparts), Argila (Clay), Um caso doloroso (A Painful Case), Dia de hera na lapela (Ivy Day in the Committee Room), Mãe (A Mother), Graça (Grace).
 
Joyce, nas suas palavras, quanto a Dublinenses, dizia que seus escritos tinham a intenção de ser: “um capítulo da história moral de meu país”. O que leva, na leitura de tais contos, a entender que Joyce pretendia produzir, para o habitante da Irlanda e de Dublin, uma visão de si mesmo, numa espécie de espelho bem polido do cotidiano e das normas e dilemas morais destes habitantes reais que moravam nestes contos. Portanto, o que se pode dizer, sem dúvida, é que tais contos fazem parte de uma abordagem realista, pois não há fantasia nestes contos, nem mesmo quando se trata das citadas epifanias que são o desvelo da trama e não pensamento mágico.
 
O estilo de narrativa nos contos contidos em Dublinenses é o de apresentar um narrador neutro, de realismo também neutro, não colocando o narrador em contato com interpelações ao leitor ou tentando suscitar-lhe opiniões ou o que deve pensar na trama, pois, dito isto, os contos se apresentam, por fim, como estórias que não caem no apelo emocional. Ao mesmo tempo que este realismo dos contos de Joyce primam pela verossimilhança, também vemos, neles, contudo, alguns aspectos simbólicos, o que não se trata de uma alegoria da fantasia, mas que tem no conteúdo destes contos um serviço de prolongamento de seu sentido, o que se vê em Eveline e As irmãs, que são tramas que têm chaves simbólicas sem se perder, no entanto, num puro simbolismo, com estas chaves servindo à trama mais do que sendo alegorias de profundidades abissais, o que deporia contra uma abordagem de realismo e verossimilhança que são as características principais destes 15 contos de Dublinenses.
 
E o recurso principal que Joyce utiliza em Dublinenses é o do discurso indireto livre, tendo como um dos efeitos curiosos o fato de, por vezes, a fala do narrador se confundir com os pensamentos dos personagens, o que leva estes contos ao ápice do que se chama de intenção interpretativa, mantendo o realismo e a verossimilhança, independente de uma possível onisciência ou onipotência do narrador, pois o comando da narrativa, como dito, não faz propostas ao leitor, sendo isto o que coloca a narrativa a serviço de si mesma, mais do que de uma trama possivelmente onisciente do ente que narra. Ou seja, o narrador “lê” os pensamentos dos personagens, mas não os “manda” fazer nada, sendo até um narrador onisciente, mas mantendo sua onipotência nos limites que a abordagem realista impõe.
 
Portanto, na devida preservação de verossimilhança, na riqueza de detalhes que são a narrativa destes contos, podemos nos deparar, sim, com o aspecto simbólico, pois em Eveline, por exemplo, a exploração simbólica de imagens e palavras está presente, tal como quando a jovem Eveline conhece o seu amante de pé, diante da porta de seu alojamento, o que é uma intenção de fazer parecer tal imagem como uma espécie de portal para outro lugar, uma nova vida, estando aí o fato de isso não ter ocorrido em qualquer outro lugar de Dublin, mas sim numa entrada, sendo tal entrada uma via para algo novo para Eveline. Outro simbolismo também está presente no conto As Irmãs, que tem na data de morte do padre Flynn, por exemplo, o dia primeiro de julho de 1895, e que não tem em mera coincidência ser este dia o da festa do preciosíssimo sangue de nosso Senhor e também 1895 o centenário do mais destacado seminário Católico da Irlanda.
 
Nos Dublinenses, também, quando se fala da epifania, que é a súbita percepção ou revelação acerca da essência de algo, Joyce, seguindo seu realismo e pautado nas regras de verossimilhança, tem como tema, diante da epifania, seu contrapeso, que é a paralisia, pois dada a revelação, isto pode libertar ou paralisar, e o que Joyce nos apresenta é quando, na trama, o ímpeto de liberdade de um dado personagem se vê diante de uma situação paralisante, em que tal ímpeto de liberdade se depara com a impossibilidade de sua consecução ou realização, e isto se dando sempre numa hora crucial da trama, em que a importância da liberdade se choca com o limite da própria realidade, o que coloca, novamente, o conteúdo pretendido de realidade à baila na obediência às regras de verossimilhança.
 
Nos Dublinenses, portanto, o cotidiano dos irlandeses é tratado por um narrador invisível, ainda que onisciente, pois é produto, ainda, do discurso indireto livre, e que faz com que tal invisibilidade tenha como efeito a própria epifania, meio que numa maiêutica narrativa, na qual tal cotidiano adquire um sentido de experimentar a realidade na sua essência, tal como ela é e se dá em cada momento, ficando aqui o serviço de verossimilhança mais do que preservado, pois quando isto se dá, o fenômeno da paralisia nos dá, com efeito, o conhecimento inescusável de todos os estágios da vida e de suas demandas específicas.
 
 “Eis aqui a vida verdadeiramente desfilando sob nossos próprios olhos.” – The Guardian. É o que nos revela Dublinenses. Estes contos são a vida de Dublin na virada do Século XX, do mundo que se depararia, logo adiante, com a eclosão da primeira guerra mundial, uma realidade econômica e moral em conflito, em que as gradações destes contos vão da infância, adolescência e vida adulta, sendo, então, tal cronologia uma dose do realismo em seu sentido de estágios da vida, e isto nas figuras dos habitantes de Dublin, da Irlanda, sendo Dublinenses uma ótima iniciação do que viria a ser a obra de James Joyce para a literatura mundial, e que resultaria em outros feitos como Retrato do Artista Quando Jovem, e os monumentos Ulisses e Finnegans Wake.
 
E aqui é bom citar o fato de os contos de Joyce em Dublinenses terem a exata medida da narrativa, pois nada falta ou sobra em suas descrições, em seus detalhes, sendo Joyce aqui um realista por excelência, com pleno domínio do que quer tratar, com a medida de régua em dia aos conselhos e demandas da verossimilhança. Joyce, em Dublinenses, consegue realizar a aventura de seus contos tanto na cronologia de idade de seus personagens como na exata noção do domínio narrativo, pois ele é crível neste dois aspectos, e que resulta no cotidiano dublinense com seu retrato real em mãos. O narrador vai pelo discurso indireto livre sim, mas tem em sua exatidão o que o realismo, nas faculdades descritivas, tem de melhor. O detalhamento, neste caso, não é precioso, é preciso.
 
A Irlanda vive nas almas dos personagens que percorrem as ruas de Dublin. Vidas comuns que personificam o declínio econômico, e sobretudo moral, com o qual o país se debate naquele momento da História, pois se trata de quinze contos, nos quais James Joyce aborda com realismo a dureza da vida dos habitantes de Dublin na sua ordem cronológica, sendo a abordagem fiel dos estágios da vida: a perda da inocência na infância, a angústia e as situações-limite da adolescência e a desilusão final dos adultos no fenômeno da epifania, único momento metafísico em que a verdadeira natureza de algo se dá a conhecer, mas que é de uma metafísica apenas na forma, pois o que se dá, sempre, nos contos de Joyce, é a realidade como ela é, sem mais. Escrito quando o autor tinha 25 anos, publicado pela primeira vez em 1914, Dublinenses é uma introdução à história da capital irlandesa, e uma abertura fundamental à própria obra de Joyce.
 
As narrativas curtas destes contos seguem uma escola que vem do século XIX, que tinham em Tchekhov e Flaubert grandes expoentes, mas que em Joyce, em seu trabalho contínuo, que ganharia sentido vasto no work in progress de Finnegans Wake, tema uma abertura em que a forma dos contos servem a um novo realismo, muito mais extremo, que é o do século XX, e a cronologia, que vai da infância até a epifania da vida adulta, é um elenco de ilusões, dilemas, e isto com a narrativa dominada de uma medida concentrada.
 
O tiro curto dos contos depõe, portanto, a importância da exatidão, uma nova demanda que Joyce consegue realizar, pois na verossimilhança, nos quinze contos, o autor mantém o distanciamento de um narrador não influente na vida dos personagens, mas autoconsciente de seus recursos como narrador, pois ele não dá os solavancos do pensamento mágico, ele mede cada situação e a coloca de acordo com a ideia condutora de Dublinenses, que são os estágios da vida na sua nudez, sem a ambição desmedida de uma narrativa que tenta comandar tudo, o que em narrativas fantasiosas é bem possível, mas que no compromisso de Joyce pela Dublin real, tem na contenção, embora com domínio dos recursos, a forma realista e o conteúdo cotidiano a serviço da forma narrativa escolhida pelo autor.
 
O fato dos contos se darem como narrativas curtas é passar ao largo do excesso, pois o pleno domínio dos recursos realistas, sobretudo na faculdade descritiva, não se excede, vencendo a tentação da ambientação extrema, no que muitos realistas podem pecar, e a contenção do narrador, que não interpela e nem coloca o personagem como massa de manobra da narrativa, tem pelo domínio de recursos e intenções, um conjunto de contos em que o realismo e a verossimilhança são sim, certamente, como leis da natureza em que tais contos podem e devem ser narrados, sem excessos.
 
A curta duração é a prova da economia necessária de um novo realismo, com toques de naturalismo, mas que é um trabalho em progresso do narrador, o que resultará, futuramente, na obra de James Joyce, na sua experiência com a linguagem e o léxico de sua cultura dublinense e irlandesa.
 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor

Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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