segunda-feira, março 31, 2025
29.9 C
Vitória
segunda-feira, março 31, 2025
segunda-feira, março 31, 2025

Leia Também:

‘Licc é importante, mas precisa ser revista’, afirma produtora cultural

Karlili Trindade aponta limitações da Lei de Incentivo à Cultura Capixaba

Vitor Taveira

A Lei de Incentivo à Cultura Capixaba (Licc) foi criada em 2022, por iniciativa da Secretaria de Estado da Cultura (Secult), como mais uma alternativa de fomento a artistas e produtores através de renúncia fiscal do Governo do Estado. Entrando em seu quarto ano de funcionamento, tem relevância, mas também contribui para o aumento de desigualdades, de acordo com representantes do setor cultural no Estado.

“A Licc é importante, mas precisa ser revista. É necessário criar limitações e regras para democratizar os recursos, capacitar trabalhadores da cultura, criar linhas específicas para territórios, culturas e manifestações populares, identidades diversas, políticas afirmativas e direitos básicos e humanos, além de garantir a transversalidade, que é vocação da cultura”, afirma Karlili Trindade, produtora cultural e integrante do Grito da Cultura, movimento de trabalhadores do setor.

Em janeiro deste ano, a Secult publicou uma Instrução Normativa com novas regras para aumentar a descentralização dos recursos e contribuir para a sustentabilidade e transparência dos projetos. Entre as mudanças estão a limitação de três projetos anuais por agente cultural e possibilidade de planos plurianuais de até três anos.

Também foram criadas três faixas de reserva de recursos, com 30% do montante destinado a eventos calendarizados de até 10 edições realizadas; 10% para projetos fora da região metropolitana; e outros 10% para programas continuados, como projetos de formação, equipamentos culturais e corpos estáveis.

Além disso, foram estabelecidos novos tetos de captação para diferentes realidades, como eventos em sua primeira edição (R$ 300 mil) e filmes em longa-metragem e séries (R$ 1 milhão). Já os tetos de R$ 1 milhão para patrimônio material e R$ 500 mil para projetos em geral permaneceram.

As mudanças, porém, não parecem ter sido suficientes para atender às demandas do setor. Segundo a Secult, os projetos para cota geral e cota para fora da região metropolitana que estão em tramitação na Secretaria de Estado da Fazenda (Sefaz) já esgotaram o valor disponibilizado para 2025, que totaliza R$ 25 milhões – com menos de dois meses do início das inscrições.

Karlili, entretanto, critica a supervalorização da Licc, em detrimento de outros mecanismos de fomento direto à cultura. “Durante muito tempo, o único mecanismo de financiamento foi o Funcultura [Fundo Estadual de Cultura], que em 2025 teve um investimento de R$ 7,6 milhões. A Licc teve investimento de R$ 25 milhões em 2024, com três anos de Lei. Hoje, é o mecanismo com maior investimento, atendendo grandes projetos”, comenta.

O investimento total nos editais do Funcultura lançados entre o fim de 2024 e início de 2025 é de R$ 33,3 milhões, contemplando 558 projetos em várias áreas, mas a maior parte desses recursos é oriundo da Política Nacional Aldir Blanc (PNAB) – que teve corte de 85% do orçamento para 2025.

Funcionamento da Licc

A Licc é uma lei de incentivo à cultura semelhante à Lei Roaunet, que é federal. Os produtores precisam conseguir uma aprovação preliminar da Secult, para depois tentar a captação com a iniciativa privada. As empresas que topam participar ganham crédito presumido do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) – ou seja, 100% do dinheiro investido é abatido na hora de pagar os tributos ao Tesouro Estadual. O montante destinado para a lei no primeiro ano foi de R$ 10 milhões.

A Secult tem defendido que a Licc atende a uma demanda antiga do próprio setor, incentivando uma aproximação com a iniciativa privada e complementando os demais mecanismos de fomento. O mecanismo também é encarado como uma forma de os agentes culturais acessarem verbas bem maiores do que a dos editais, e de forma mais dinâmica, sem o processo de concorrência tradicional.

No entanto, a principal crítica a leis de incentivo como Licc e Rouanet é que os agentes culturais ficam à mercê das empresas, que não precisam arcar com nenhum prejuízo, já que o patrocínio será devolvido no abatimento de impostos. Para uma empresa como a Vale, por exemplo, responsável pelo maior crime socioambiental da história do Brasil e por décadas de poluição, investir na Licc é uma forma de lavar sua imagem sem precisar desembolsar um tostão sequer – e ainda podendo escolher os projetos que mais lhe convenham.

Além disso, esse tipo de fomento privilegia quem tem mais influência junto às empresas, e não necessariamente quem mais precisa ou apresenta projetos melhores. “A Licc é também um mecanismo que produz desigualdade, concentração de recursos na região metropolitana e nos mesmos CNPJs, promove a ‘pejotização’ do trabalho. Pela sua característica, dificulta a aplicação de uma política pública que seja do interesse dos trabalhadores e da sociedade, uma vez que quem determina os investimentos é a iniciativa privada”, defende Karlili

“Não faz sentido a empresa escolher o projeto que vai ser patrocinado. E se é um dinheiro público, por que o governo não investe logo diretamente?”, questiona Brenda Perim, atriz e produtora cultural da CIA Nós de Teatro. O grupo criou o Centro Cultural Luz del Fuego em Cachoeiro de Itapemirim, no sul do Estado, com recursos da Licc, em 2023, mas o espaço está prestes a fechar por não ter conseguido renovar o patrocínio.

Cineclube Jece Valadão

Até o ano passado, a Licc ainda não tinha tanta demanda por projetos e o caminho parecia relativamente fácil, com recursos para todo o mundo que tentava. O Centro Cultural Luz del Fuego recebeu patrocínio da ES Gás, naquele momento uma empresa pública estadual que ainda não havia sido privatizada.

“A gente ganhou um edital de montagem e circulação de espetáculo e precisávamos de um espaço. E é um pouco automático, você começa a fazer teatro e surge o desejo de ter uma sede. Também queríamos ter uma formação de público contínua, o que era mais difícil indo de um lugar a outro o tempo todo. Então inscrevemos o projeto no segundo ano da Licc, quando ainda não tinha uma fila tão grande nas inscrições”, relata.

Com o tempo, naturalmente, mais agentes culturais passaram a procurar a lei de incentivo. Em 2024, houve um anúncio de aumento do recurso, inicialmente, para R$ 15 milhões, e logo em seguida para R$ 25 milhões, o que também não foi suficiente para cobrir a explosão da demanda. Um evento tradicional como o 73º Encontro Nacional de Folia de Reis de Muqui, no sul do Estado, que seria realizado em agosto de 2024, não conseguiu captar a verba suficiente a tempo.

De 2022 a 2024, 306 projetos foram habilitados à captação de recursos, segundo dados do site oficial da Secult. O maior número foi no ano passado, 124 ao todo. Em 2025, 42 projetos já estão habilitados. Entre os maiores patrocinadores, está a EDP Espírito Santo.

Políticas perdendo fôlego

“O Funcultura financia pequenos e médios projetos. É uma política pública do governo, com a possibilidade da pressão popular e de trabalhadores da cultura para mudanças. Já a Licc, por ser uma parceria público-privada, dificulta a aplicação de uma lei mais democrática e a realização de mudanças, uma vez que o interesse da inciativa privada determina os investimentos que são realizados. Não há, hoje, mecanismos que limitem esse poder”, afirma Karlili Trindade.

A produtora cultural chama a atenção, também, para outros mecanismos de fomento que não estão sendo devidamente desenvolvidos “É preciso retomar políticas esquecidas, como o Programa Fundo a Fundo, que há dois anos não realiza repasse de recursos. O governo tem criado alguns programas e investimentos, mas que vão se perdendo pelo caminho, sendo esquecidos. O que aconteceu com os R$ 12 milhões anunciados para os CEUs [Centros de Arte e Esportes Unificados]? Não consta CEU no Espírito Santo, de acordo com o site do MinC [Ministério da Cultura]”.

“Nossa esperança são os investimentos no Programa Cultura Viva, que é a política de base comunitária que precisa constar no Sistema Estadual de Cultura. Toda política feita para o pequeno, para as cidades, para os coletivos, é a representação da democratização. É nisso que precisamos investir, na cultura que se faz nas frestas e resite a toda dificuldade, garantido direitos”, completa a produtora.

‘Significativo sucesso’

Procurada por Século Diário, a Secretaria de Estado da Cultura (Secult) defendeu, em nota, as mudanças realizadas com a instrução normativa publicada em janeiro, as quais serviram, segundo a pasta, para “garantir maior transparência e eficiência no uso dos recursos, como também promover a descentralização e a democratização da cultura no Estado”. A Secult também atribuiu o rápido esgotamento de recursos da Licc ao “sucesso” do mecanismo.

“Sabemos e acompanhamos de perto a demanda na Licc e o seu significativo sucesso, consequência do bom momento do setor cultural e criativo capixaba, da confiança do setor privado no mecanismo, tudo muito bem demonstrado em número de pesquisas recentes do Observatório da Fundação Itaú e no Boletim Trimestral publicado em parceria com o Instituto Jones do Santos Neves (IJSN)”, diz a nota.

“Isso é consequência direta da diversificação dos mecanismos de fomento à cultura implementados a partir de 2021 pelo Governo do Espírito Santo, como a criação da própria Licc, do Fundo a Fundo e uma significativa expansão nos Editais da Cultura, com coinvestimento de recursos federais. Todas ampliando acesso e número de territórios atendidos, sobretudo no interior, estabelecendo ainda, como premissa, ações afirmativas e inclusivas”, conclui o texto.

Mais Lidas