quinta-feira, novembro 21, 2024
24.4 C
Vitória
quinta-feira, novembro 21, 2024
quinta-feira, novembro 21, 2024

Leia Também:

Liderança quilombola do Sapê do Norte é finalista do prêmio Jabuti

Arquimino dos Santos é um dos autores de romance juvenil que mostra as lutas das comunidades pela sobrevivência

Rogério Medeiros

Levando as histórias das comunidades quilombolas do Sapê do Norte, território formado pelos municípios de São Mateus e Conceição da Barra, o livro A brecha: Uma reviravolta quilombola, é um dos finalistas do Prêmio Jabuti, o maior da literatura brasileira. Concorrendo na categoria juvenil, o romance tem como um dos autores o quilombola Arquimino dos Santos, conhecido como Quino, destacando os processos de luta pelos territórios tradicionais e pelo direito de existir.

Embaixador do Rei do Congo do Ticumbi, Arquimino dos Santos, da comunidade do Córrego do Alexandre, em Conceição da Barra, foi responsável por contar as histórias que ajudaram a compor o livro. A liderança está na coautoria da obra e participou de todo o processo de construção. “A gente tem um mestre quilombola no [prêmio] Jabuti, provavelmente é a primeira vez que isso acontece na história”, declara Deborah Goldemberg, escritora e co-autora da obra juntamente com o antropólogo Jefferson Gonçalves Correia.

Arquivo Pessoal

O livro conta a história do menino Fred, da Capital, que, ao passar férias no sítio do avô, tem a oportunidade de conhecer a cultura quilombola. Apesar de se tratar de um romance voltado para o público juvenil, também é um relato histórico, explica Jefferson. “Apresenta toda a cultura das comunidades, o conflito de terras, inclusive as que os quilombolas perderam. Então é um romance pensando no público jovem, mas que expõe quais são as práticas culturais, o Ticumbi, a farinha de mandioca, o samba de São Benedito, destaca.

Com 66 anos, cinco filhos e 13 netos, Arquimino conta que essa foi a primeira vez que colaborou na construção de uma obra literária. “Eu nunca tinha escrito, mas sempre tive vontade. Dizia que gostaria de falar de um bocado de coisa, na verdade, mas eu pensava que não tinha valor as coisas que eu sabia. Mesmo assim, eu queria escrever uma história minha, para ficar gravado”, relata a liderança.

Além de incluir essa sabedoria tradicional, a obra também denuncia a ausência de políticas públicas para os quilombolas no Espírito Santo. “Qual é a maior política pública do Governo do Estado pelas comunidades quilombolas? São as ações policiais de reintegração de posse para empresas de celulose. Então, um livro como esse denuncia, ao mesmo tempo em que joga luz naquilo que é belo”, ressalta.

Lançado no final de 2020, o livro começou a ser escrito em 2017 e contou com um trabalho colaborativo das próprias comunidades, que auxiliou no processo criativo. “A gente escrevia as versões da história e apresentava em forma de teatro em um fórum e as pessoas podiam intervir”, afirma Jefferson. “São vários mundos dicotômicos: o mundo do branco e o do preto, a pobreza e a riqueza, o que é sagrado e profano”, acrescenta.

Emocionado, Jefferson destaca a importância da obra ser reconhecida por um prêmio nacional, chegando a ser finalista. “Eu trabalho com comunidades quilombolas já tem mais de 20 anos, não só pesquisando, mas vivendo, e há uma invisibilidade muito grande da cultura negra, especificamente sobre a quilombola”, aponta.

Deborah, que por muito tempo também trabalhou nas comunidades quilombolas do Sapê do Norte, explica que a ideia de produção do livro surgiu da percepção de uma falta de literaturas infanto-juvenis com introdução ao mundo quilombola no Brasil. “As nossas crianças crescem e não têm esse contato, então eu falava com o Jefferson que a gente tinha que produzir”, destaca.

Nesse processo criativo, que contou com participação ativa das comunidades, até o final da história foi decidido por moradores do Sapê do Norte. “A trajetória do livro é muito orgânica e verdadeira. Não é um livro de turista, oportunista, ele brota de uma paixão por esse território, por relações verdadeiras de amor de amizade, que se construíram ao longo do tempo”, enfatiza Deborah.

História e tradição oral

Um dos pedidos dos moradores durante o desenvolvimento do livro foi que a pronúncia das palavras fosse mantida integralmente, sem correção, mais uma forma de dar valor à oralidade, que por muito tempo foi considerada inferior à escrita. “Onde nascem as histórias? As histórias todas nascem na oralidade. A gente ouve as histórias e transpassa para o papel. O Quino é o dono da história. Ele que trouxe as histórias todas da comunidade, levou a gente para ouvir a família dele”, conta a escritora.

Arquimino não consegue definir qual foi a melhor parte desse processo de construção do livro. “Todas foram”, brinca. Entretanto, um dos pontos importantes para a liderança foi conseguir colocar em prática algo que o pai, Arcelino Joaquim dos Santos, não conseguiu fazer. “Meu pai sabia de muita coisa, mas não tem nada gravado, tá só na memória mesmo de quem sabia, por isso eu queria deixar uma coisa escrita”, explica.

Foi do pai que Arquimino herdou o cargo de embaixador do Rei do Congo, título que ele carrega com muito orgulho. “No começo ninguém acreditava muito em mim. Mas toda vida, desde criança, eu o acompanhava porque gostava de ver a brincadeira. Quando o mestre me chamou, eu já era casado, meu pai já estava ficando deficiente das vistas, e ele me chamou para entrar no lugar do meu pai”, conta.

Ao falar do pai, Arquimino afirma que a maior qualidade era a sabedoria, a mesma que permitiu que seu Arcelino não vendesse as terras para os interesses de quem chegava da cidade. “Todo mundo sofria muito, porque não tinha energia elétrica, água encanada, então veio um pessoal da cidade iludindo a cabeça das pessoas, falando para vender a terra que na cidade tinha luz, aí o pessoal foi tudo se iludindo, mas meu pai não. Ele era uma pessoa muito boa. Tenho grande arrependimento de não ter aprendido mais coisas com ele”, confessa.

Assim como seu Arquimino, a intenção dos escritores era de que essas histórias não ficassem restritas às comunidades, mas ganhassem destaque nacional, o que tem dado certo. Além de ser um dos finalistas do Prêmio Jabuti, o livro foi aprovado no edital do Programa Minha Biblioteca, da Prefeitura de São Paulo, e também concorre a um edital do Ministério da Educação (MEC), para distribuição da obra em escolas públicas. “A gente tem que apostar nas novas gerações, porque ninguém nasce racista, por exemplo, são construções”, destaca Deborah. 

Mais Lidas