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Lorca e seu ‘Romanceiro Gitano’ é a essência da sensibilidade

O Romanceiro Gitano (1928) transita entre o cerebral e o popular, essência da sensibilidade hispânica, Lorca vai com sua alma andaluza ao ápice da experiência da poesia hispânica. Lorca atua em sua poesia como o grande reflexo da Granada trágica, a Espanha moura, a veia cigana de sua origem. Lorca é o intérprete ideal da alma popular de sua terra. Romanceiro Gitano é o clímax da criação poética de Lorca. Aqui, animais, naturais e mitológicos, fornecem esta identidade cigana dos escritos de Lorca, é uma escrita frutífera e de guerra, seu jogo metafórico é riquíssimo e repleto de uma alma barroca de brocado multifacetado.
 
   Com resíduos barrocos, com incursões pelo romantismo e o simbolismo, tirou proveito das lições da lírica popular, contra a poesia fria e descritiva do ultraísmo, colocou sua veia poética com o calor da metáfora viva, com muita base nos cancioneiros do século XV, numa união de vida e obra marcada pelo trágico. Na poesia lorquiana juntam-se todos os elementos da poesia e da alma espanhola, é o poeta da imagem plena de originalidade, de um verso musical e cheio de luzes interiores, apreendeu os motivos populares e deu a eles tratamento lírico em sua identidade peninsular (hispânica). Lorca, com esta identidade fortíssima, se junta, em tamanho e tradição, na História, ao romanceiro que tem ainda Góngora e sobretudo, seu padrinho mais evidente, Juan Ramón Jiménez, como um dos que elevaram os valores da moderna poesia espanhola, a partir da alma deste povo.
 
   E neste poema, Romance da Guarda Civil Espanhola,  lembrando de seu destino trágico no fuzilamento em plena guerra civil, nós temos, aqui, o quadro dramático de sua Andaluzia natal, com os ciganos caçados pela polícia, e o tumulto das ruas em oposição à calma plácida das estátuas dos santos à porta das catedrais. A seguir temos este poema na íntegra, em todo o seu esplendor, que é, para mim, um dos pontos altos da poesia de Lorca:
 
ROMANCE DA GUARDA CIVIL ESPANHOLA
 
    (A Juan Guerrero,
 
   Cônsul-geral da Poesia)
 
 
 
Os cavalos negros são.
 
As ferraduras são negras.
 
Nas capas reluzem
 
Manchas de tinta e de cera.
 
Têm, por isso não choram,
 
De chumbo as caveiras.
 
Com a alma de charão
 
Vêm pela estrada.
 
Corcovados e noturnos,
 
Por onde animam, ordenam
 
Silêncios de goma escura
 
E medos de fina areia.
 
Passam, se querem passar,
 
E ocultam na cabeça
 
Uma vaga astronomia
 
De pistolas inconcretas.
 
 
 
Oh! Cidade dos gitanos!
 
Nas esquinas bandeiras.
 
A lua e a calabaça
 
Com as ginjas em conserva.
 
Oh! Cidade dos gitanos!
 
Quem te viu e não se recorda de ti?
 
Cidade de dor e almíscar,
 
Com as torres de canela.
 
 
 
Quando caía a noite,
 
Noite que noite noiteira,
 
Os gitanos com suas fráguas
 
Forjavam sóis e flechas.
 
Um cavalo malferido
 
Chamava a todas as portas.
 
Galos de vidro cantavam
 
Por Jerez de la Frontera.
 
O vento dobra desnudo
 
A esquina da surpresa,
 
Na noite prata-noite,
 
Noite, que noite noiteira.
 
 
 
A Virgem e São José
 
Perderam suas castanholas,
 
E procuram os gitanos
 
Para ver se as encontram.
 
A Virgem vem vestida
 
Com um traje de alcaidessa
 
De papel de chocolate
 
Com colares de amêndoas.
 
São José move os braços
 
Sob uma capa de seda.
 
Atrás vai Pedro Domecq
 
Com três sultões da Pérsia.
 
A meia-lua sonhava
 
Um êxtase de ceginha.
 
Estandartes e faróis
 
Invadem as açoteias.
 
Pelos espelhos soluçam
 
Bailarinas sem quadris.
 
Água e sombra, sombra e água
 
Por Jerez de la Frontera.
 
 
 
Oh! Cidade dos gitanos!
 
Nas esquinas bandeiras.
 
Apaga as tuas verdes luzes
 
Porque vem a benemérita.
 
Oh! Cidade dos gitanos!
 
Quem te viu e não se recorda de ti?
 
Deixai-a longe do mar
 
Sem pente para suas riscas.
 
 
 
Avançam de dois no fundo
 
Para a cidade da festa.
 
Um rumor de sempre-vivas
 
Invade as cartucheiras.
 
Avançam de dois no fundo.
 
Duplo noturno de tela.
 
O céu parece a eles
 
Uma vitrina de esporas.
 
 
 
A cidade livre do medo,
 
Multiplicava as suas portas.
 
Quarenta guardas-civis
 
Entram nelas para o saque.
 
Os relógios pararam,
 
E o conhaque das garrafas
 
Se disfarçou de novembro
 
Para não infundir suspeitas.
 
Um voo de gritos longos
 
Se levantou nos cata-ventos.
 
Os sabres cortam as brisas
 
Que os cascos atropelam.
 
Pelas ruas de penumbra
 
Fogem as gitanas velhas
 
Com os cavalos dormidos
 
E os vasos de moedas.
 
Pelas ruas empinadas
 
Sobem as capas sinistras,
 
Deixando para trás fugazes
 
Remoinhos de tesouras.
 
 
 
No portal de Belém
 
Os gitanos se congregam.
 
São José, cheio de feridas,
 
Amortalha uma donzela.
 
Teimosos fuzis agudos
 
A noite toda soam.
 
A Virgem cura os meninos
 
Com salivinha de estrela.
 
Mas a Guarda Civil
 
Avança semeando fogueiras,
 
Onde jovem e desnuda
 
a imaginação se queima.
 
Rosa, a dos Cambórios,
 
Geme sentada à sua porta
 
Com seus dois peitos cortados
 
Postos numa bandeja.
 
E outras moças corriam
 
Perseguidas por suas tranças,
 
Num ar onde estalam
 
Rosas de pólvora negra.
 
Quando todos os telhados
 
Eram sulcos na terra,
 
A aurora mexeu seus ombros
 
Em longo perfil de pedra.
 
 
 
Oh! Cidade dos gitanos!
 
A Guarda Civil se afasta
 
Por um túnel de silêncio
 
Enquanto as chamas te cercam.
 
 
 
Oh! Cidade dos gitanos!
 
Quem te viu e não se recorda de ti?
 
Que te busquem em minha frente.
 
Jogo de lua e de areia.
 
(Poema do livro “Romanceiro Gitano” de Federico García Lorca)
 
 
 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

 
Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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