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Lords of Chaos – A sangrenta história do metal satânico underground – Parte 1

“Lords of Chaos ainda é o primeiro livro a ser lembrado quando pensa-se no true norwegian black metal”

Reprodução/Instagram via Uol

No prefácio à tradução brasileira do livro Lords of Chaos, que trata das origens e evolução do black metal na Europa, temos a descrição de um fenômeno brasileiro, isto é, a provável influência da banda brasileira Sarcófago sobre estas bandas que surgiram pela Europa nos anos oitenta e noventa do século vinte, esta banda que vem de Belo Horizonte, Minas Gerais, berço do metal brasileiro, só comparável ao surto punk paulista, esta divisão geográfica clássica do mapa do rock brasileiro.

Em 1985, o jovem Wagner Lamounier, que usava o codinome “Antichrist”, sai de uma banda de amigos e vai montar a lendária banda do underground do metal brasileiro, Sarcófago, os primeiros registros da banda saem no split Warfare Noise I, da gravadora Cogumelo Produções. A banda Sarcófago permanece no underground, ao passo que a banda anterior de Lamounier, o Sepultura, consegue se tornar uma referência internacional de uma banda brasileira de metal.


Por sua vez, o álbum I.N.R.I., de 1987, da banda Sarcófago, teria impacto de influência que pode ser comparado a referências do black metal como as bandas Mayhem e Bathory, sendo que o corpse paint, jaqueta de couro e cinto de balas, que aparecem na estampa dos integrantes da banda na capa deste álbum, virariam um protótipo do visual que seria adotado pela cena black metal.

D.D.Crazy, o baterista da banda, usa grooves de bateria alucinantes neste álbum, que foi chamado de metranca no Brasil, mas lá fora foi chamado de blasting beats, definindo um padrão rítmico de bateria para todo o cenário extremo subsequente. Aqui o livro Lords of Chaos vai tratar sobretudo, no entanto, da ascensão do black metal norueguês, com suas raízes na cultura nórdica e germânica antiga, e a expansão do black metal por países como Suécia, Alemanha, Finlândia, Rússia, Inglaterra e Estados Unidos.

A edição mais recente de Lords of Chaos é de 2003, e deste ano para cá alguns fatos já ocorreram, o idiota do Varg Vikernes já saiu da cadeia, foi para a França, mudou seu nome para Louis Cachet, que teve um canal do youtube recentemente excluído da plataforma, numa ação contra canais supremacistas brancos e de teorias da conspiração. Agora teve o lançamento do filme Lords Of Chaos, baseado neste livro, com direção de Jonas Akerlund, com Rory Culkin como Oystein “Euronymous” Aarseth e Emory Cohen no papel de Varg “Count Grishnackh” Vikernes.

E aqui cito parte do prefácio como um aviso prévio de esclarecimento: “Uma última dificuldade de natureza geral da tradução de Lords of Chaos é, talvez, uma dificuldade compartilhada pelos próprios autores: o caráter questionável da maior parte dos entrevistados do livro. Como o leitor testemunhará, as figuras principais do black metal norueguês não hesitam em destilar doses cavalares de racismo, misoginia, xenofobia, sadismo, LGBTfobia e todo tipo de perversão cada vez que abrem a boca.

Isso implica, naturalmente, um repertório vocabular particularmente odioso. Nós optamos por tentar comunicar da forma mais fiel possível toda a toxicidade do discurso original, o que implicou incluirmos, em diversos momentos, inúmeras palavras e expressões idiomáticas de cunho extremamente pejorativo contra minorias étnicas e sociais que nós mesmos nunca usaríamos. A equipe da edição brasileira de Lords of Chaos não endossa nem compartilha de nenhum dos discursos de ódio apresentados no livro, mas também considera que é importante expor sem eufemismos ou disfarces suas ocorrências entre os entrevistados.”

E cito aqui também o caráter de influência deste livro, do prefácio: “Lords of Chaos ainda é o primeiro livro a ser lembrado quando pensa-se no true norwegian black metal. Ele oferece o título para o longa-metragem de 2019, e ele é o alvo constante de vídeos e artigos mal-humorados de Varg Vikernes. A verdade é que Lords of Chaos é um raro exemplo de registro analítico que se verte em fenômeno, observação historiográfica que se transforma em fato histórico.

Lords of Chaos é, hoje, um marco inescapável da história do black metal, tanto quanto o De Mysteriis Dom Sathanas, do Mayhem, a queima da igreja de Fantoft ou aquela foto do Varg com uma clava viking. Qualquer estudo sério do black metal em 2020 precisa passar por Lords of Chaos, seja em afirmação ou negação, e qualquer um que se interesse pelo gênero certamente tem muito a aprender com o impressionante volume de entrevistas, fotos, documentos e matérias jornalísticas acumulado por Moynihan e Soderlind. Por isso, temos muito orgulho e alegria de poder oferecer pela primeira vez ao público brasileiro este estudo seminal sobre os ruídos aterrorizantes que saíram das gélidas florestas escandinavas para tomar o mundo de assalto”.

Lords of Chaos foi pesquisado e escrito entre 1994 e 1997, e foi publicado em 1998. O livro, em geral, não tece juízos ou comentários sobre as declarações de seus entrevistados, mas a alegação de Varg Vikernes e alguns de seus companheiros de viagem de que a Noruega é controlada por uma conspiração judaica, uma cabala judaica estilo “Protocolos do Priorado de Sião” soa absurda para um país que quase não tem judeus.

Por sua vez, de tempos para cá, os eventos extramusicais da cena black metal, como as famigeradas queimas de igrejas, deram uma arrefecida, e a Noruega viu uma fonte de ouro na sua cena black metal, que ficou mundialmente conhecida no nível underground, os grupos maiores da cena tem boas vendas de discos, e têm grande público em turnês mundiais. Hoje não vemos mais histórias de crimes, por exemplo, pois as bandas atuais estão ligadas a um trabalho comercial para criar um produto artístico viável e vendável, com suas carreiras musicais sendo levadas a sério pelos próprios. Uma vez que estar preso, por exemplo, não ajuda a ter um ganha-pão para gravar e tocar música, só ganhando um status mórbido em um certo submundo de polêmicas.

E aqui cito dois parágrafos do prefácio à nova edição americana de 2003: “Mas uma coisa havia mudado ao longo da década desde que o black metal chocou a Noruega pela primeira vez. Depois do ultraje inicial, o gênero se tornou sucesso de crítica e um apelo comercial – a vantagem disso é que a subcultura hoje tem pessoas na mídia mainstream prontas para defendê-la. “Ninguém nessa cena ganharia status por decepar a cabeça de um cadáver”, disse um importante DJ de rádio que toca muito black metal. Embora isso possa oferecer um ótimo recorte de entrevista, não é uma afirmação mais verdadeira que os resmungos dos tabloides que pintam todos os fãs de metal como violadores de cadáver em potencial.

Um grau significativo do apelo e da estatura do black metal não deriva de grandes feitos musicais e da originalidade dos artistas que tocam a música. Os horrendos crimes contribuíram tanto quanto, e talvez até mais, para o seu apelo. E embora a maior parte das pessoas do black metal sejam cidadãos que respeitam as leis, eles dificilmente podem alegar que o elemento criminoso representa só uma turma confusa de agregados. Os responsáveis pelos assassinatos, queimas de igreja e demais crimes eram, com frequência, os principais mobilizadores e agitadores da cena. Subjacente a isso há o fato de que importantes revistas de black metal publicam matérias que tratam assassinos reais como celebridades amenas, ou os proclamam verdadeiros heróis.”


Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

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