Maiakóvski, o grande poeta panfletário, o que leu Marx e absorveu a luta no meio político de sua arte engajada, que de súbito anuncia suas palavras, começa num gesto inocente de escrita, mas se dá bem quando decide pela literatura e recebe a palavra mágica de Burliuk ao ler para ele o poema Noite (o que Maiakovski pensou que não se publicaria em parte alguma): “Mas foi você mesmo quem escreveu isto! Você é um poeta genial!” Logo depois deste incentivo, no decorrer da produção de Maiakóvski, este elege um norte, seguiria a trilha de seu herói, o poeta Khliébnikov, com suas soluções formais inovadoras, inaugurando um novo poema russo, de ímpeto revolucionário, poesia moderna, já rompendo com o simbolismo anterior, já numa linguagem mais coloquial, ainda rica de sons, como no caso de Maiakóvski, mas comprometida com a realidade, já bem depois de tradições seculares e canônicas como de Pushkin.
Nos poemas “De Rua” e “De Rua em Rua” fornecem um pouco do início do trabalho poético de Maiakóvski, já num comprometimento do poeta com a realidade urbana, sobretudo, guardando ainda a sonoridade e o ritmo, que foram bem traduzidos para o português no trabalho conjunto de Boris Schnaiderman e dos irmãos e também poetas Augusto e Haroldo de Campos, tendo neste caso o tom destes poemas bem respeitados e conservados, numa linguagem adequada ao russo do poeta Maiakóvski, que tinha sido vítima, anteriormente, de traduções retóricas e gritadas que não condiziam com ele, embora este tenha sempre sido hiperbólico na própria língua russa.
Nestes dois poemas, portanto, aparece o poeta urbano que foi Maiakóvski, já para além de um simples leitor de Marx e alma revolucionária, o que nos versos de “De Rua”, podemos ver: “Cravo as estacas dos meus passos,/O tamborim das ruas sente.” Ou ainda: “Alçando à mão o olho arisco,/A praça oblíqua põe-se a salvo.” Aqui temos as ruas e a praça oblíqua, mesmo numa linguagem bem sonora, e que tem o pé fincado na cidade, neste caso a imagem da rua e seu tamborim (burburinho, azáfama), e a praça que se põe a salvo, com o olho atento (arisco) do poeta russo. E nos versos de “De Rua em Rua”: “dos/anos/sona-/dos.” E também em: “Nos cavalos de ferro/das janelas das casas que correm/saltaram os primeiros cubos.” Aqui vemos o ritmo, o som e a rua, o urbano com o som da poesia, dos anos sonados em tradução fidedigna, e resultando na mestria imagética, também, com os cavalos de ferro que das janelas das casas saltam, e velozes dão o ritmo da cidade, azáfama do poema, meio em que vive o poeta, rua que o poeta escreve.
No último poema “A Mãe e o Crepúsculo Morto Pelos Alemães”, que tem versos como: ““Fechem, fechem os olhos dos jornais!” e “Veja – o ar se pavimenta/de balas como pedras ribombantes!”, os ais das mães brancas nos caminhos negros, a guerra, elas pedem para fechar os jornais, lá estão, nos jornais, o que a mancha da batalha faz chorar ao desamparo, e pedem, fechem os jornais, o filho grita com a mãe neste poema, Varsóvia está lá, o crepúsculo morto pelos alemães, e o ar é pavimentado pelas balas, estas que ricocheteiam como pedras ribombantes, o som das balas são o som do poema, a guerra sua forma, e Maiakóvski seu mensageiro, o poema que tem o drama das mães na guerra, e os jornais devem ser fechados, para que parem com a dor, mas as balas correm no poema, e os jornais são o poema como a notícia da guerra.
DE RUA
Barracas – entre imagens gastas,
Bandejas sangram framboesas.
Num arenque lunar se arrasta
Sobre mim uma letra acesa.
Cravo as estacas dos meus passos,
O tamborim das ruas sente.
Lentamente os bondes-cansaços
Cruzam com lanças fluorescentes.
Alçando à mão o olho arisco,
A praça oblíqua põe-se a salvo.
O céu esgazeia ao gás alvo
O olhar sem-ver do basilisco.
(1913)
DE RUA EM RUA
Ru-
As.
As
ru-
gas dos
dogues
dos
anos
sona-
dos.
Nos cavalos de ferro
das janelas das casas que correm
saltaram os primeiros cubos.
Cisnes de pescoços-campanários,
Torcei-vos nos fios do telégrafo!
No céu se grava o guache das girafas,
desaviva a ferrugem dos penachos.
Brilhante com truta
o filho
da leiva sem lavra.
O mágico
puxa
Da goela do bonde os trilhos,
oculto pelo mostrador da torre.
Estamos ganhos.
Banhos.
Duchas.
Elevador.
A dor leva o corpete da alma.
Ao corpo queimam os dedos.
Grites ou não grites
“Eu não queria!” __
ao corte
queimam
os medos.
O vento farpado
Arranca
da chaminé
um farrapo de lã esfumaçada.
O lampião calvo
Despe voluptuosamente
da rua
uma meia preta.
(1913)
A MÃE E O CREPÚSCULO MORTO PELOS ALEMÃES
Mães brancas nos caminhos negros
Estendem-se – brocados convulsos sobre féretros
O inimigo derrotado, e elas lançam seus ais:
“Fechem, fechem os olhos dos jornais!”
Uma carta.
Seja forte, mãe!
Fumaça.
Fumaça.
Mais
fumaça!
Tua voz que lamenta
distante?
Veja – o ar se pavimenta
de balas como pedras ribombantes!
Ma-m-mãe!
Arrastam agora o crepúsculo ferido.
Resistiu quanto pôde,
duro,
troncudo,
mas de súbito, _
abalando as espáduas sólidas,
o pobre
caiu chorando no colo de Varsóvia.
Estrelas estridulam
em lenços de chita azul:
“Morreu,
Morreu
o meu amado!”
E o olho turvo do novilúnio
fita de soslaio
o padioleiro soturno, de inertes punhos.
As aldeias lituanas acodem numa chusma:
embutida na sombra, firme sobre os cotos,
marejando de lágrimas igrejas de olhos de ouro,
Kovno decepa os dedos de suas ruas.
O crepúsculo urra
_ sem pernas, sem braços: _
“Não é verdade!
Ainda sou capaz
de retinindo as esporas numa doida mazurca
torcer as minhas felpas ruivas!”
Tilinta.
Mãe,
Quem chama?
Branca, branca, brocado em funeral.
“É ele _ ânimo!” _
o morto do telegrama.
Ah fechem, fechem os olhos do jornal!”
(1914)
Gustavo Bastos, filósofo e escritor
Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com