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Maiakóvski, os poemas de som e fúria (parte II)

Vladimir Maiakóvski (1893-1930) é o maior poeta russo moderno, expressão em poesia do que foi a Revolução de Outubro, colocando sua poesia a serviço de seu próprio tempo (época), mergulhando nas contradições da guerra, expressando, nos caminhos de Velimir Khlébnikov, o “Colombo de novos continentes poéticos”, as novas formas que este tempo (época) demandavam. A invenção é seu norte, da pesquisa de seus primeiros poemas, aos largos haustos de seus últimos poemas, o brilho de sua caminhada pode ser dita por ele mesmo: “Sem forma revolucionária não há arte revolucionária”.
 
No poema “A Vocês!”, que abre esta segunda parte de seus poemas que coloco aqui, a crítica se dirige a Sievieriânin e aos czaristas, a chamada arte em forma revolucionária, de acordo com Maiakóvski, não larga para trás, contudo, o fervor do conteúdo crítico, também, e que tem vezes na poesia que não quer ser apenas um jogo de linguagem, mas também um processo histórico das demandas de seu tempo, como uma inscrição ou marca ou até cicatriz das representações possíveis e impossíveis (pois o poeta também faz coisas impossíveis) que encarnam os corpos e espíritos que fazem a História, e a literatura tem muito com o que ver nisso, pois não há nada mais relevante que a poesia crítica que não se preocupa o tempo todo em ser agradável, forma de adequação que eu julgo, muitas vezes, como um suicídio literário deliberado, por inocência, e neste poema temos o inverso: a relevância que expressa seu tempo e suas contradições.
 
Em “Hino ao Juiz”, poema seguinte, o norte é o mesmo, ter relevância para além de uma expressão agradável, coisa que os grandes poetas sabem, por sinal, de ser um incômodo antes de ser standards. Poema de crítica, incômodo, que se autodenuncia, positivamente, por sinal: “Nem os meus versos escapam à censura:/São interditos, sob pena de tortura./Classificaram-nos como bebida/Espirituosa: “venda proibida”.” Pois o poeta conflita com o interdito, e combate a censura com suas letras livres, não há limite ao sonho humano, e ao poeta cabe elencar este grande cabedal de anseios do qual os interditos tentam escapar. O poeta está em guerra na sua expressão, está em guerra também para além de sua expressão, na sua responsabilidade de denúncia, na sua ironia e crítica que enfrenta o mundo decifrando-o.
 
No poema “Nossa Marcha”, por sua vez: “Troa na praça o tumulto!” e vemos versos como: “Que metal será mais santo?/Balas-vespas nos atingem?/Nosso arsenal é o canto.” E que podem voltar aos versos iniciais, ainda: “Águas de um novo dilúvio/lavando os confins da terra.” O poeta, e seu poema, neste caso, como forma revolucionária, muito além de uma mera expressão política, põe o mundo no seu laço, em que, diante do tumulto, que é o dilúvio, em que, contra o metal das balas-vespas, temos o metal do canto, nosso arsenal contra as balas que tentam lavar os confins da terra, esta terra que de tumulto e dilúvio tem seu salvamento na letra metálica do poeta, seu arsenal do canto que fura a bala, e não pede beneplácito nenhum, pois o poema é livre, e é combate, sobretudo. A marcha, pois.
 
Em “A extraordinária aventura vivida por Vladimir Maiakovski no verão na datcha”, este poema é um dos clássicos do poeta, em que o cânon aparece, em todo o seu esplendor, nestes versos: “Brilhar pra sempre,/brilhar como um farol,/brilhar com brilho eterno,/gente é pra brilhar,/que tudo o mais vá pro inferno,/este é o meu slogan/e o do sol.” Aqui temos Maiakóvski cumprindo o seu destino, quando ele diz que gente é pra brilhar, a sua chave de ouro de toda a sua obra está posta, sem mais, o brilho vira palavra de ordem, e ai de quem ficar no caminho, a marcha passará, Maiakovski brilha, pra sempre, e sua marcha do poema anterior se cumpre aqui neste poema com a palavra brilho como o sentido da marcha e da revolução, a política e o panfleto se colocam agora, no sonho humano, no desejo ilustre da poesia de brilhar, tanto como slogan, assim como gente, e este espírito concreto é o do sol, e quem ficar entre a marcha e o destino, que vá para o inferno!
 
A VOCÊS!
 
Vocês que vão de orgia em orgia, vocês
 
Que têm mornos bidês e W.C.s,
 
Não se envergonham ao ler os noticiários
 
Sobre a cruz de São Jorge nos diários?
 
 
Sabem vocês, inúteis, diletantes
 
Que só pensam encher a pança e o cofre,
 
Que talvez uma bomba neste instante
 
Arranca as pernas ao tenente Pietrov? …
 
 
 
E se ele, conduzido ao matadouro,
 
Pudesse vislumbrar, banhado em sangue,
 
Como vocês, lábios untados de gordura,
 
Lúbricos trauteiam Sievieriânin!
 
 
Vocês, gozadores de fêmeas e de pratos,
 
Dar a vida por suas bacanais?
 
Mil vezes antes no bar às putas
 
Ficar servindo suco de ananás.
 
 
1915
 
(Tradução de Augusto de Campos)
 
1 – cruz de São Jorge: condecoração da Rússia czarista, concedida unicamente por ato de bravura em campo de batalha.
 
2 – Sievieriânin: (1887-1942) representava o chamado “ego-futurismo”, combatido por Maiakóvski e seus companheiros “cubo-futuristas” como uma espécie de futurismo de salão.
 
 
 
HINO AO JUIZ
 
 
 
Pelo Mar Vermelho vão, contra a maré,
 
Na galera a gemer os galés, um por um,
 
Com um rugido abafam o relincho dos ferros:
 
Clamam pela pátria perdida – o Peru.
 
 
 
Por um Peru-Paraíso clamam os peruanos,
 
Onde havia mulheres, pássaros, danças,
 
E, sobre guirlandas de flores de laranja,
 
Baobás – até onde a vista alcança.
 
 
 
Bananas, ananás! Pencas felizes.
 
Vinho nas vasilhas seladas …
 
Mais eis que de repente como praga
 
No Peru imperam os juízes!
 
 
 
Encerraram num círculo de incisos
 
Os pássaros, as mulheres e o riso.
 
Boiões de lata, os olhos dos juízes
 
São faíscas num monte de lixo.
 
 
 
Sob o olhar de um juiz, duro como um jejum,
 
Caiu, por acaso, um pavão laranja-azul:
 
Na mesma hora virou cor de carvão
 
A espaventosa cauda do pavão.
 
 
 
No Peru voavam pelas campinas
 
Livres os pequeninos colibris;
 
Os juízes apreenderam-lhes as penas
 
E aos pobres colibris coibiram.
 
 
 
Já não há mais vulcões em parte alguma,
 
A todo monte ordenam que se cale.
 
Há um tabuleta em cada vale:
 
“Só vale para quem não fuma.”
 
 
 
Nem os meus versos escapam à censura:
 
São interditos, sob pena de tortura.
 
Classificaram-nos como bebida
 
Espirituosa: “venda proibida”.
 
 
 
O equador estremece sob o som dos ferros.
 
Sem pássaros, sem homens, o Peru está a zero.
 
Somente, acocorados com rancor sob os livros,
 
Ali jazem, deprimidos, os juízes.
 
 
 
Pobres peruanos sem esperança,
 
Levados sem razão à galera, um por um.
 
Os juízes cassam os pássaros, a dança,
 
A mim e a vocês e ao Peru.
 
195
 
(Tradução de Augusto de Campos)
 
 
 
NOSSA MARCHA
 
 
 
Troa na praça o tumulto!
 
Altivos píncaros – testas!
 
Águas de um novo dilúvio
 
lavando os confins da terra.
 
 
 
Touro mouro dos meus dias.
 
Lenta carreta dos anos.
 
Deus? Adeus. Uma corrida.
 
Coração? Tambor rufando.
 
 
 
Que metal será mais santo?
 
Balas-vespas nos atingem?
 
Nosso arsenal é o canto.
 
Metal? São timbres que tinem.
 
 
 
Desdobra o lençol dos dias
 
cama verde, campo escampo.
 
Arco-íris arcoirisa
 
o corcel veloz do tempo.
 
O céu tem tédio de estrelas!
 
Sem ele, tecemos hinos.
 
Ursa-Maior, anda, ordena
 
para nós um céu de vivos.
 
 
 
Bebe e celebra! Desata
 
nas veias a primavera!
 
Coração, bate a combate!
 
O peito – bronze de guerra.
 
 
1917
 
(Tradução de Haroldo de Campos)
 
 
 
A EXTRAORDINÁRIA AVENTURA VIVIDA POR VLADIMIR MAIAKOVSKI NO VERÃO NA DATCHA
 
(Púchkino, monte Akula, datcha de Rumiántzev, a 27 verstas pela estrada de ferro de Iaroslávl)
 
 
 
A tarde ardia com cem sóis.
 
O verão rolava em julho.
 
O calor se enrolava
 
no ar e nos lençóis
 
da datcha onde eu estava.
 
Na colina de Púchkino, corcunda,
 
o monte Akula,
 
e ao pé do monte
 
a aldeia enruga
 
a casca dos telhados.
 
E atrás da aldeia,
 
um buraco
 
e no buraco, todo dia,
 
o mesmo ato:
 
o sol descia
 
lento e exato>
 
E de manhã
 
outra vez
 
por toda a parte
 
lá estava o sol
 
escarlate.
 
Dia após dia
 
isto
 
começou a irritar-me
 
terrivelmente.
 
 
 
Um dia me enfureço a tal ponto
 
que, de pavor, tudo empalidece.
 
E grito ao sol, de pronto:
 
“Desce!
 
Chega de vadiar nessa fornalha!”
 
E grito ao aol:
 
“Parasita!
 
Você, aí, a flanar pelos ares,
 
e eu, aqui, cheio de tinta,
 
com a cara nos cartazes!”
 
E grito ao sol:
 
“Espere!
 
Ouça, topete de ouro,
 
e se em lugar
 
desse ocaso
 
de paxá
 
você baixar em casa
 
para um chá?”
 
Que mosca me mordeu!
 
É o meu fim!
 
Para mim
 
sem perder tempo
 
o sol
 
alargando os raios-passos
 
avança pelo campo.
 
Não quero mostrar medo.
 
Recuo para o quarto.
 
Seus olhos brilham no jardim.
 
Avançam mais.
 
Pelas janelas,
 
pelas portas,
 
pelas frestas,
 
a massa
 
solar vem abaixo
 
e invade a minha casa.
 
Recobrando o fôlego,
 
me diz o sol com voz de baixo:
 
“Pela primeira vez recolho o fogo,
 
desde que o mundo foi criado.
 
Você me chamou?
 
Apanhe o chá,
 
pegue a compota, poeta!”  
 
Lágrimas na ponta dos olhos
 
– o calor me fazia desvairar –
 
eu lhe mostro
 
o samovar:
 
“Pois bem,
 
sente-se, astro!”
 
Quem me mandou berrar ao sol
 
insolências sem conta?
 
Contrafeito
 
me sento numa ponta
 
do banco e espero a conta
 
com um frio no peito.
 
Mas uma estranha claridade
 
fluía sobre o quarto
 
e esquecendo os cuidados
 
começo
 
pouco a pouco
 
a palestrar com o astro.
 
Falo
 
disso e daquilo,
 
como me cansa a Rosta,
 
etc.
 
E o sol:
 
“Está certo,
 
mas não se desgoste,
 
não pinte as coisas tão pretas.
 
E eu? Você pensa
 
que brilhar
 
é fácil?
 
Prove, pra ver!
 
Mas quando se começa
 
é preciso prosseguir
 
e a gente vai e brilha pra valer!”
 
Conversamos até a noite
 
ou até o que, antes, eram trevas.
 
Como falar, ali, de sombras?
 
Ficamos íntimos,
 
os dois.
 
Logo,
 
com desassombro,
 
estou batendo no seu ombro.
 
E o sol, por fim:
 
“Somos amigos
 
pra sempre, eu de você,
 
você de mim.
 
Vamos, poeta,
 
cantar,
 
luzir
 
no lixo cinza do universo.
 
Eu verterei o meu sol
 
e você o seu
 
com seus versos.”
 
O muro das sombras,
 
prisão das trevas,
 
desaba sob o obus
 
dos nossos sóis de duas bocas.
 
Confusão de poesia e luz,
 
chamas por toda a parte.
 
Se o sol se cansa
 
e a noite lenta
 
quer ir pra cama,
 
marmota sonolenta,
 
eu, de repente,
 
inflamo a minha flama
 
e o dia fulge novamente.
 
Brilhar pra sempre,
 
brilhar como um farol,
 
brilhar com brilho eterno,
 
gente é pra brilhar,
 
que tudo o mais vá pro inferno,
 
este é o meu slogan
 
e o do sol.
 
 
 
1920
 
(Tradução de Augusto de Campos)
 
1 – Datcha – casa de veraneio.
 
2 – Versta – medida itinerária equivalente a 1067 m.
 
3 – Rosta – A Agência Telegráfica Russa, para a qual Maiakóvski executou cartazes satíricos de notícias – as “janelas” Rosta -, de 1919 a 1922.
 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor

Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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