Sem seu mestre, adoecido, manifestação do povo negro percorreu Conceição da Barra, falou da pandemia e criticou Bolsonaro
Num relato sobre a apresentação anual do Baile de Congo (Ticumbi) de São Benedito em Conceição da Barra, em 1 de janeiro de 2016, o jornalista Rogério Medeiros intitulou seu texto como O Ticumbi da superação, devido às dificuldades de visão que enfrentava Tertolino Balbino, o Mestre Terto, que comandava este grupo de cultura popular há mais de 60 anos.
Seis anos depois, a situação da vista e da saúde de Mestre Terto, hoje com 88 anos, se agravaram, sendo que em 2018 ele passou o comando do grupo a Berto Florentino, tornando-se Mestre Emérito. Já sob o comando de Berto, veio o baque da pandemia, que impediu que os festejos que ocorrem há séculos na região acontecessem no ano passado, o que também trouxe grande tristeza para os festeiros. Para piorar seguiram meses muito difíceis para esse grupo, que teve diversos membros adoecidos, não só os mais idosos como outros mais jovens.
A situação ficou ainda mais crítica quando semanas antes do festejo o Mestre Berto teve gripe e logo depois um quadro que seria de “sopro no coração”, tendo grandes dificuldades de conseguir consultas e exames na região norte capixaba para um diagnóstico preciso. A festa passou então foi se aproximando da data permeada de incertezas.
A tradição do Ticumbi de São Benedito inclui a realização do Ensaio Geral na noite do dia 30 de dezembro, quando os festeiros realizam todo o baile, que inclui música, dança, versos e encenação, e acertam os últimos detalhes para a apresentação final. Este último ensaio vira a madrugada, acompanhada também do tradicional Forró de Sapezeiro.
Ocorre sempre em algum lugar próximo às margens do Rio Cricaré, de onde no início da manhã seguinte os brincantes saem de barco para buscar a pequena imagem de São Benedito do Córrego das Piabas e seguir novamente pelo rio até o cais de Conceição da Barra e depois em procissão até a Igreja de São Benedito, onde na manhã de 1° de janeiro, após a missa, realizam apresentação oficial de cada ano.
Diante da situação do mestre, no último dia 30 não houve o Ensaio Geral como tal nem a procissão de barco, mas foi mantido um encontro no mesmo local onde ocorreria, no quilombo Córrego do Alexandre. Os congos, como são chamados os 18 integrantes do Ticumbi, estiveram presentes, exceto os acometidos por doenças, como foi o caso do próprio Mestre Berto e também do mestre emérito Tertolino Balbino.
Rogério Medeiros, que acompanha a manifestação desde a década de 1960 e é um dos vassalos do festejo, papel desempenhado por pessoas de fora do baile que apoiam o grupo, formado por apenas negros quilombolas, foi outra das ausências, devido a questões de saúde, tendo assumido suas tarefas seu filho Apoena Medeiros.
Se bem as ausências são notadas como vazios difíceis de explicar ou mostrar para quem não conhece esse passado, as presenças se notam como corpos, de forma bastante visível. E ali no Córrego do Alexandre, estavam muitos deles: os congos, dois grupos de jongo, outra manifestação cultural presente na região, membros das comunidades do entorno e vários daqueles que costumam vir de outras cidades para acompanhar esse festejo único de Conceição da Barra.
Foi uma demonstração de que apesar das dificuldades, o grupo segue firme, assim como sua rede de apoio. A noite começou com uma ladainha, puxada por Juju, do Jongo de São Bartolomeu. Ali foram dedicadas as intenções sobretudo pela melhoria dos assentados, com as vozes de todos se sobrepondo em orações.
Entre os versos marcantes um que resume o sentido de toda essa devoção do povo negro ao santo preto:
“São Benedito que é tão simples como nós
Sabe quem somos, vai ouvir a nossa voz”
Logo também se apresentaram os Jongos e um toque muito reduzido do Ticumbi, de forma simbólica, e por fim o Forró de Sapezeiro.
O dia da apresentação e da superação
Com a doença de Mestre Berto Florentino, Mestre Terto, que mesmo emérito nunca deixou de estar totalmente ligado ao Ticumbi, sugeriu que fosse feito no primeiro dia do ano o tradicional cortejo que passa pela Igreja de Nossa Senhora da Conceição e termina na Igreja de São Benedito.
Na casa de Terto em Conceição da Barra, os congos se reuniram pontualmente às 8h do 1° de janeiro e se apertaram na pequena sala do imóvel para palavras finais de preparação, tal como preleção em uma partida de futebol.
Já na rua, perfilados em dois cordões com seus pandeiros, os brincantes seguiram com suas roupas brancas, com coroas de flores e fitas coloridas em cortejo por Conceição da Barra, acompanhados por um pequeno grupo de seguidores. Entoavam
“Jesus mais São Benedito saiu pra passear
Tá na porta da Igreja, esperando nós passar”
Nas casas do entorno, muitas famílias há décadas também vêm à porta de suas casa para ver o Ticumbi passar. Na padaria, turistas que tomam café da manhã para tentar superar a ressaca do reveillon olham com certo encanto e estranhamento o pequeno cortejo. Os mais ágeis sacam o celular para registrar imagens do evento para eles desconhecido.
Há aí questões interessantes. Enquanto os brancos dormiam ou ainda se curavam da ressaca da noite do ano novo, há muito tempo atrás o Ticumbi de São Benedito encontrou o momento em que os negros pudessem louvar seu santo preto com protagonismo. Há não muitas décadas, os Bailes de Congo tinham que pedir permissão para prefeito e delegado para seus festejos e ensaios.
A realidade mudou, mas o ritual persiste. A apresentação em si tem um formato que se repete a cada ano: o enredo se dá em torno de um duelo entre dois reinos africanos que pelejam entre si pelo direito de realizar a festa de São Benedito. Num duelo de versos rimados em poesia popular entre os reis e seus embaixadores, intercalados por músicas e também por um duelo de espadas, o Rei de Congo vence o Rei de Bamba.
Porém, trata-se de uma tradição nutrida a cada ano de frescor, pois embora o enredo seja o mesmo, seu conteúdo muda a cada ano em seus versos, que refletem questões que estão em evidência nas comunidades, no país ou no mundo, fazendo com que cada espetáculo seja único, reunindo muitas vezes de forma bem humorada críticas políticas e sociais.
Foi o caso da apresentação que abriu esse 2022. Embora houvesse incertezas, e a princípio se dizia que os congos apenas acompanhariam a missa, após a cerimônia religiosa, eles se perfilaram tal qual a formação tradicional e fizeram uma apresentação reduzida, cortada de muitas partes, mas que não deixou de encantar aos presentes, especialmente pelo momento tão difícil, em que a palavra para descrevê-lo não poderia ser outra que não novamente aquela de 2016: superação.
Mestre Berto Florentino não pôde ir. Terto, com corpo frágil e sem visão, sentou-se ao lado do grupo, com ouvido atento a cada verso. Silvani, o contramestre, tampouco pode estar, assim como Renan, o violeiro. Por sorte – mas não por acaso – acompanhando a missa e o festejo estava Anísio Ribeiro, prodigioso violeiro local e mestre do Ticumbi do Bongado, que de pronto aceitou o convite de última hora para substituir o violeiro ausente. Faltava, porém, a viola, que foi trazida às pressas de Itaúnas enquanto a missa corria, chegando justamente na hora da apresentação do Ticumbi.
Sem mestre e contra-mestre presentes, coube uma difícil tarefa aos contra-guias Douglas e Domingos Júlio, o Pintinho. Sem ensaio, tiveram que assumir a tarefa de lançar os versos, que antes só replicavam, à frente do cordão de pandeiristas que fazem parte do Ticumbi.
Mesmo com a versão reduzida, os congos mostraram sua destreza nos versos, que trouxeram reflexões sobre a pandemia, a falta de atendimento à saúde, críticas ao governo e ao presidente Bolsonaro e louvor aos professores.
Totonho, o secretário do Rei de Bamba, versou:
“Precisou de um vírus para unir família
E ao mesmo tempo afastar
Com saúde a gente não pode se brincar
Ainda tem polítco que teve que pegar o dinheiro para poder desviar
Com tanta gente morrendo, familiares sofrendo,
Com seus ente querido no hospital, sem ter oxigênio para respirar
E o presidente fazendo gracinha, fazendo mímica,
Como um paciente que fica com falta de ar
O vírus não escolhe raça nem quem tem vida melhor
Pegou de laço tudo de uma vez só…”
Respondendo, Jonas, que interpreta o Rei de Congo, ainda brincou com a visita de Bolsonaro a São Mateus em junho passado:
“Você volta e diz para seu presidente
Que em São Mateus ele veio
Mas que na Barra ele não vem não
Porque quando ele era candidato
Ele simulou que tomou uma facada
Agora que ele é presidente ele leva de facão”
Refletindo o momento difícil, de doença, vírus, tristeza, mas de superação, Quino, secretário do Rei de Bamba, rimou:
” O Ticumbi parou. Não foi os devoto que quis
São Benedito tá vendo como estão infeliz.
São Benedito falou, Jesus respondeu assim
Que será de seus devotos sem cantar o Ticumbi
Jesus falou para os devoto, preste bastante atenção
Que brevemente terá nossa apresentação
Itaúnas está esperando com nossa brincadeira
Primeiro canta na Barra, depois canta nas Barreiras
Vamos chegar em Itaúnas com nossa apresentação
Louvando a São Benedito e a São Sebastião”
por Autor
Segue o baile
Depois do 2020 parados, apesar dos percalços, o ano de 2022 começou com o louvor do Ticumbi, mesmo que limitado. Nas próximas semanas, porém, o grupo ainda estuda como vai atuar, já que se apresenta no dia 9 de janeiro na comunidade de Barreiras, e no dia 16 em Itaúnas, onde ocorre o fechamento do ciclo festivo celebrando São Sebastião até o dia 20, que conta com apresentações do Ticumbi do Bongado e de Itaúnas, de grupos de Reis de Boi, Alargo, Jongo, Capoeira e outras apresentações.
O cenário desejado pelo Ticumbi de São Benedito é a recuperação rápida de Mestre Berto para conduzir os trabalhos com normalidade, caso contrário o grupo vem analisando como será sua participação nas atividades.
Durante a curta apresentação deste ano, o grupo se reorganizava para a roda final de música. Diante de um silêncio que não devia acontecer, seu Terto, mestre rigoroso, que permanecia quietinho mas atento com o ouvido, perguntou talvez como sermão, em alto e bom som: “Acabou?”.
Não. Ainda havia o último verso cantado entre todos, numa alusão ao Mestre Berto, uma ausência sentida na apresentação:
“Obrigado meu senhor, minha senhora,
Seus devoto vai embora
O mestre não tá presente,
quem tiver saudade chora”
Como tradição, depois do Ticumbi, apresentou-se o Jongo de Sant’Ana. Por fim, armou-se de novo o cordão do Baile de Congo para seguir em procissão para o almoço tradicionalmente oferecido após o baile pela família Dealdina. Novamente uma saudade é muito sentida, esta definitiva, pois é o segundo festejo sem a presença de Dona Rosa, a matriarca da família, uma inesquecível festeira e incentivadora do Baile de Congo.
Com a barriga cheia, os congos ainda têm energia e devoção para seguir, acompanhados por uma meia dúzia de acompanhantes em cortejo até o cemitério, onde homenageiam os brincantes falecidos e o vassalo Hermógenes Lima Fonseca, ali enterrado, para então finalizar de onde partiram, na casa de Tertolino Balbino, cantando:
“Meu pensamento tá longe
Mas meu coração tá perto
Vamos todos reunir
Na casa do Mestre Terto”
De seu quarto, deitado, Terto manda avisar que está ouvindo as cantigas. Por fim, os congos se reúnem para pensar os próximos passos. Foi mais um Ticumbi da superação. Para quem é devoto, nada é impossível com fé em São Benedito. Pedem, na saúde e na política, que 2022 traga tempos melhores. Amém.