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Marília Garcia em seu deslocamento poético

A complexidade poética opera através de colagens, sobreposições, reiterações, criando este looping que dá voltas em si mesmo, num leitmotiv vertiginoso

Reprodução/YouTube

O trabalho poético de Marília Garcia tem um caráter híbrido de uma prática formal bem elaborada e um instinto experimental, um misto de domínio do código linguístico com um universo de colagens e transposições, como, por exemplo, colocar notícias reais em perspectiva poética e realizar um verdadeiro jogo com estes elementos tão objetivos.

Em Câmera Lenta, Marília retoma um acabamento estético presente em seu livro inaugural e mantém a pesquisa ou caminho teórico e empírico de seus livros posteriores. Neste livro, agora, Marília estabelece um diálogo intenso com referências internacionais e ainda com a escrita não criativa de Kenneth Goldsmith, e na poesia brasileira, seu diálogo evidente é com Ana Cristina César, como disse em textos anteriores, tendo também ecos de Manuel Bandeira.

Numa contemporaneidade que rompe com uma realidade constante e homogênea, agora num espaço fragmentado e em que reina a descontinuidade, o híbrido criado entre estas transições do mundo real e do mundo virtual, feita numa velocidade vertiginosa, opera uma nova percepção da realidade que, na poesia de Marília, aparece como a mediação dos dispositivos eletrônicos nesta modificação da percepção e da velocidade dos acontecimentos.

Os poemas de Marília Garcia, em seu livro Câmera Lenta, tem uma voz lírica que monta e remonta discursos próprios e de outros, operações de colagens, deslocamentos, transposições, fazem uma geografia acidentada e metódica, ao mesmo tempo, nesta construção poética deste livro, uma usina que parece o mecanismo de uma indústria, imagens duplicadas, uma percepção da realidade em modo vertiginoso e numa espécie de looping para ficar tonto.

Esta voz lírica de Câmera Lenta coloca repetições, formulações inéditas de estrutura, reiterando a liberdade de pesquisa da poesia atual, como nunca houve na História, e o mosaico criado reverbera, como uma câmara de ecos, rebatendo palavras e situações, recursos heterogêneos de composição poética operando numa complexidade que tenta espelhar de modo metódico e fragmentado, ao mesmo tempo, a realidade contemporânea.

Nesta prática poética de Marília, portanto, além do tema das máquinas e da velocidade, aparecem pequenas imagens obsedantes, como a hélice, por exemplo. A complexidade poética opera através de colagens, sobreposições, reiterações, criando este looping que dá voltas em si mesmo, num leitmotiv vertiginoso. Um cenário particular ganha densidade de percepção, e as ideias de lugar e de deslocamento também são os caminhos da obsessão temática de Marília Garcia.

POEMAS

EPÍLOGO

ESTRELAS DESCEM À TERRA (DO QUE FALAMOS QUANDO FALAMOS DE UMA HÉLICE)

1: Marília inicia este poema imenso, feito em várias partes, já colocando em evidência o tema e a obsessão particular que será demonstrada, a hélice, e tudo que isto implica, no que temos : “queria terminar falando de uma hélice/que eu vi na semana passada” (…) “era uma hélice grande demais/para o tamanho do avião e eu nunca/tinha visto na vida um avião de hélice”. Marília objetiva a sua curiosidade, no que vem : “uma hélice serve para deslocar/mas uma hélice pode paralisar” (…) “quando vi a hélice na semana passada/eu pensei nas nuvens de verdade/e num poema do carlos drummond de andrade”. A relação da hélice com a memória de Marília remete a um poema de Drummond, no que a poeta segue em sua reflexão poética : “naquele dia eu estava indo/para um festival em juiz de fora/e eu ia ler um poema chamado/”malaysia airlines”. O poema que Marília irá ler remete a uma notícia, aí é que começam as suas colagens e transposições, que vão dar o caráter de sua dicção neste poema vertiginoso, no que temos : “ao chegar na pista do aeroporto/vi a hélice e na mesma hora pensei :/”não posso entrar nesse avião”/eu congelei e não podia mais/me deslocar” (…) “e eu queria essa hélice em movimento/cruzando o céu e levando a gente/para a frente/mas nem sempre” (…) “então começo com um trecho do poema/que eu ia apresentar em juiz de fora/chamado “malaysia airlines””.

2: Marília segue, e agora enuncia o poema que é uma notícia, no que temos : “no dia 16 de julho de 2014,/um boeing 777 da malaysia Airlines/saiu de amsterdam para kuala Lumpur/com 298 pessoas a bordo./ele estava em voo cruzeiro/quando caiu na vila de grabovo/no leste da ucrânia.”. Marília segue nesta notícia fria que irá se tornar uma ideia poética, no que vem : “os enormes pedaços do boeing 777/da malaysia Airlines/se espalharam por um campo de trigo.”. O acidente aéreo não é apenas uma notícia insular, aqui logo aparece o contexto político, e a complexidade natural de todo fato, no que temos : “o leste da ucrânia estava sob controle/de separatistas pró-rússia e desde março/o espaço aéreo sobre a ucrânia estava fechado.” (…) “suspeita-se que o boeing 777/tenha sido abatido por um míssil/quando atravessava em voo cruzeiro/o espaço aéreo ucraniano.”. E, como fato, tem consequências, no que temos : “a chanceler da alemanha disse/que era necessário um cessar-fogo/no leste da ucrânia.” . E aqui entra o concurso de sua memória, Marília finaliza a enunciação do que diz ser o começo de seu poema e se transporta para juiz de fora, e o tema da hélice que aparece neste influxo do acidente aéreo, no que vem : “esse era o começo do poema/que eu ia apresentar em juiz de fora/mas na hora em que vi a hélice do avião/na pista do aeroporto viracopos” (…) “lembrei do final do poema/que dizia assim :/”um dos comissários do voo MH 17/só estava trabalhando naquele dia/porque tinha trocado de voo com um colega./a esposa deste comissário/- também comissária da malaysia airlines –/tinha feito uma troca parecida/alguns meses antes e tinha folgado/num dia em que deveria estar voando/no voo MH370, desaparecido no oceano índico.” (…) “no momento da queda do voo MH17,/um avião levava o presidente putin/do brasil para a rússia.” (…) “a aeronave presidencial/fez uma rota semelhante/à do voo da malaysia airlines/e as duas aeronaves cruzaram/o mesmo ponto e o mesmo corredor/com menos de uma hora/de diferença.”. Os mistérios do acaso, e como ele evita uma tragédia e provoca outras, eis o enigma do acontecimento, os deslocamentos particulares de corpos e vidas neste mistério que envolve um acidente do qual uns escapam e outros morrem, o jogo real do poema.

3: O poema evoca a hélice, o diálogo com um amigo, e a ideia nevrálgica da impossibilidade de se deslocar, a angústia de Marília em seu poema, no que vem : “quando vi a hélice/na semana passada/me lembrei de uma pergunta/que um amigo tinha me feito/na véspera da viagem/ele se referia a um poema em que eu contava/que não tinha conseguido embarcar num voo/porque meu passaporte estava quase vencido/ele fez a seguinte pergunta :/será que eu não estaria falando na verdade/sobre a impossibilidade de deslocar?” (…) “ao escrever eu estava preocupada/com o deslocamento”. O deslocamento evoca uma geografia, no que temos : “ao escrever é possível pensar/em termos geográficos :/a gente constrói uma cartografia/e pouco a pouco/vai desenhando e/descrevendo linhas/formas curvas montanhas acidentes/caminhos e superfícies”. O deslocamento se faz na linguagem, poesia, no que temos : “o que era de fato/deslocar/na linguagem?/será que eu estava deslocando/ou só falando em deslocar?” (…) “nesse momento de superfícies abertas/como lidar com a impossibilidade/de sair do lugar?” (…) “seria mesmo o mundo/plano? ou em vez disso/uma superfície acidentada/cheia de barreiras/muros comportas fronteiras/e linhas demarcadas/que podem conter/o fluxo?”. A impossibilidade de se deslocar aqui se confronta com linhas de demarcação, fronteiras, a tentativa de movimento e suas contingências fazendo o objeto de angústia deste poema.

4: O poema opera novamente com deslocamentos e as obra do acaso, no que vem : “na semana passada/eu ia para um festival em juiz de fora/e tinha de me deslocar :/no aeroporto de congonhas/eu tomaria um ônibus rosa/da empresa azul/para ir até o aeroporto de campinas/em campinas eu tomaria um avião/para o aeroporto zona da/mata/que fica a uma hora de juiz de fora”. As constatações, no que segue : “antes de sair de casa olhei no mapa/para ver onde tomar o ônibus em são Paulo/cheguei lá em cima da hora/e o ônibus estava vazio/depois de dez minutos nada” (…) “fui ao guichê da empresa/dentro do aeroporto/e descobri que o lugar onde eu estava/não era o ponto de ônibus/e sim o estacionamento de ônibus/e que o ônibus que eu ia pegar já tinha/saído”. O lapso de Marília, que opera aqui como um tipo de gancho poético, no que segue : “disse para o funcionário da empresa/que o mapa do site estava/errado” (…) “o funcionário abriu o mapa no site/e me mostrou que não tinha/nada errado/eu me enganara ao ler o mapa/o ponto ficava no lugar oposto/ao que eu tinha imaginado”. A desorientação, produto de um erro de percepção cartográfica, eis o jogo de Marília e tudo o que isto implica na geografia intensa deste poema, no que vem : “ele me disse/que eu estava achando/que o leste era o oeste – ou o norte era o sul/já não fazia diferença/eu tinha perdido o ônibus” (…) “porque não soube ler o mapa” (…) “mas naquele momento/eu ainda não sabia que o avião tinha hélice”. E a pergunta obsedante sobre a hélice, como o leitmotiv deste poema imenso dividido em várias partes.

5: O poema, a imagem da hélice, e novamente um poema de Drummond vem à memória da poeta Marília, no que vem : “quando vi a hélice/na semana passada/lembrei de um poema/do drummond chamado/”a morte no avião””. A ideia de movimento e sua relação direta com ação, a poeta Marília coloca a sua reflexão dentro do poema, no que vem : “eu queria falar/sobre movimento e ação :/queria pensar em como o deslocamento/da linguagem/caso da colagem e da citação/poderia nos levar a ver as coisas de forma diferente”. A colagem e a citação também como deslocamentos e transposições do poema, o movimento aqui numa operação de linguagem, no que temos : “eu queria falar aqui/sobre movimento/mas só consigo pensar na hélice que paralisa” (…) “eu queria contar/de um sonho recorrente” (…) “que era assim :/eu estava voando numa/máquina voadora/e de repente ela caía/como no poema do drummond”. A queda da máquina voadora e esta imagem evocando mais uma vez um poema de Drummond, no que temos : (…) “despencava do alto/furando as nuvens/na vertical” (…) ” a cada sonho/era capaz de uma hora/furar o chão/e provocar uma catástrofe”. A catástrofe da queda, furando em vertical o ar, eis o encerramento desta parte do poema sobre a hélice.

6: Marília fala de seu poema sobre a empresa de aviação novamente, e a notícia aciona de novo o leitmotiv, o deslocamento todo do poema se dando pela hélice, tema obsedante deste poema imenso, e a colagem de uma notícia de acidente aéreo e suas inúmeras relações temporais e de lugares com todos os seus enigmas, no que temos : “o poema “malaysia airlines voo MH 17″/tinha sido escrito a partir de notícias/tiradas do site G1/assim recortei o texto do site/inseri quebras de verso/excluí informações/trocando algumas coisas de lugar” (…) “durante o processo/tentava entender o acidente/a partir do tom frio das notícias” (…) “também queria ver algo/que para mim/não estava claro/queria olhar de outro lugar/mudar o foco”. As colagens da notícia, feitas por Marília, agora a levam à reflexão do próprio poema e sobre a linguagem, no que vem : “seria possível deslocar as palavras/de modo a produzir alguma coisa/que eu não estava vendo?”. Este deslocamento da linguagem como um deslocamento da própria percepção, no que temos : “eu tentava reaprender a ver :/recortar e colar selecionar/uma palavra para colar em outro ponto/como numa ilha de edição”. E a poeta Marília se debruça sobre o poema, e se coloca a escrever, no que vem : “ao escrever o poema/tentava repetir os gestos que fazemos/ao escrever nas várias telas hoje :/deslocar com a mão” (…) “e eu fiquei tentando escrever um poema/com a mão e eu fiquei tentando pensar/no que vai acontecer” (…) “com esses deslocamentos de agora/entre tantas telas”. O deslocamento aparecendo em seu caráter obsedante aqui para Marília, produto de toda a sua reflexão poética.

7: A poeta Marília evoca agora um livro sobre a poesia, e este coloca o tema da fala-aventura, aqui, para Marília, mais um mote dela para seu grande poema sobre o deslocamento, sobre a hélice e o movimento, encarado aqui no mundo real e no mundo da linguagem, isto é, como tema poético, no que temos : “lendo um livro da silvina rodrigues Lopes/anotei uma citação que dizia o seguinte : “para a poesia continuar/é preciso construir falas-aventuras/que abram caminho através do desconhecido”. Tais modos da fala-aventura serve para abrir caminhos, a respiração aqui se dá como poesia e ação, no que vem : “um dia fui falar este texto que vocês estão lendo/em um evento chamado/poesia e ação/depois fui falar este mesmo texto/em um evento chamado/cinema-ao-vivo/e depois em outro evento chamado/em obras”. Os eventos se sucedem e seus temas estão interligados numa mesma ideia, a ideia de Marília para o seu grande poema, no que segue : “e eu não sabia como desenvolver a tópica da aventura/esqueci de dizer que quando apresento/este texto ao vivo vou projetando/várias imagens enquanto leio” (…) “vocês podem pensar na imagem que quiserem/enquanto prosseguimos/mais ou menos assim :/cada pedaço de texto como este/deve ter uma ou mais imagens número/correspondentes”. E a notícia do acidente aéreo, aqui como proposta de tema para a poesia, ideia da poeta Marília, no que temos : “para o acidente/da malaysia Airlines/basta digitar no google o número do voo/e pegar alguma imagem” (…) “de todo modo/depois dessas apresentações/encontrei enfim o texto da silvina rodrigues Lopes/e voltarei a ele na parte 14”.

8: Marília reflete então se esta notícia sobre um acidente aéreo tinha produzido de fato um poema, no que temos : “quando enviei o poema da malaysia airlines/para uma revista que tinha me encomendado/um texto não consegui chamá-lo de “poema”/expliquei aos editores que era/uma “aventura”/o tema da revista era o amor fati/amor que se tem ao fado ao destino/e a pergunta que eu queria fazer sobre o acidente era :/como aceitar na vida o imponderável?”. O poema era, na verdade, uma aventura, e o amor fati tem seu confronto com o imponderável, o senhor das situações, no que temos : “de um jeito ou de outro/eu estava tentando explicar e justificar/o que estava fazendo/sentia um desconforto duplo :/um pouco pelo texto um pouco pela expectativa/que temos do que é um poema”. A expectativa de um poema nem sempre dá em um poema, e a pergunta que aparece, enfim, é do que se trata um poema : “afinal/do que falamos quando falamos de poesia?/ela me perguntou/e eu paralisei”.

9: Marília apresenta publicamente o poema sobre o acidente aéreo, e uma pessoa presente no público confunde seu nome por duas vezes, no que temos : “apresentei este texto pela primeira vez/em 2014 depois que terminei a leitura/uma pessoa levantou da plateia e veio me fazer/uma pergunta” (…) “ele foi até o microfone/que ficava em frente ao palco/e perguntou :/qual é o seu nome?/e eu disse/marília/e ele disse como?/e eu repeti/e ele falou/maria” (…) “mas voltando à pergunta/mesmo sem poder se dirigir a mim pelo nome/ele seguiu no microfone/e falou :”. O questionamento se dá então em torno da hélice, no que vem : “”você disse que quando vê uma hélice/sente medo/queria saber o que você sente/quando vê uma turbina””. O poema de Drummond aparece, e segue : “eu olhei para ele e fiquei sem ar/eu pensei na hélice do drummond e paralisei” (…) “depois me contaram/que aquele era o ernesto neto um artista plástico/do rio que gosta de pendurar bolas de chumbo/em tules de lycra” (…) “na saída/encontrei a veronica stigger/e ela me disse :/mas a turbina é uma hélice coberta” (…) “e eu fiquei me perguntando/se não ver a hélice fazia alguma diferença”. O que era uma hélice, afinal, encerra o questionamento desta parte do poema.

10: O poema segue agora um périplo histórico e o que isto implica na ideia motora do poema de Marília, no que segue : “Em 1912 o artista francês/marcel duchamp foi ao salão de tecnologia aeronáutica/na frança e ficou deslumbrado/quando viu uma hélice contam que ele chegou no salão/olhou para o objeto e disse :” (…) “”a pintura acabou/quem poderia fazer uma hélice assim com mais perfeição?”” (…) “no ano seguinte ele fez o seu/primeiro ready made roda de bicicleta”. O ready made e seu mote, de novo, que se volta para a hélice, no que vem : “e eu fiquei imaginando/como deveria ser a hélice que o marcel duchamp/viu no salão de aeronáutica” (…) “e então eu mesma fui ao salão de aeronáutica/de paris que existe até hoje/e passei um dia andando/entre hélices e drones e máquinas voadoras/e enquanto olhava para os dispositivos de/deslocamento fiquei tentando imaginar/como seria a hélice do duchamp/teria sido uma hélice como aquelas do salão?/uma hélice natural como a da wikipedia?/ou uma estrutura helicoidal como a dos dnas?”. O salão de aeronáutica e a especulação insana em torno da hélice de Duchamp encerram esta parte do poema.

11: Segue Marília em suas descrições históricas, agora com o clássico helicóptero do renascentista Leonardo Da Vinci, no que segue : “Em 1480 leonardo da vinci/começou a fazer uma série de desenhos/para máquinas voadoras/uma delas era um protótipo de helicóptero/feito de madeira e tela/ele tinha uma hélice que deveria ser impulsionada/por duas pessoas pedalando juntas”. O questionamento em torno da hélice ganha uma proporção épica, este grande poema é um percurso imenso, e aqui se torna uma vertigem histórica, no que temos : “os helicópteros não têm hélice/o que gira neles se chama rotor/mas a máquina voadora de da vinci/era um helicóptero de hélice/e se chamava “la hélice””. Marília segue, aqui, agora como uma espécie de poeta-historiadora, no que segue : “os helicópteros ainda levariam séculos/para sair do papel e só nos anos 1940/alcançariam a estabilidade/com fins militares” (…) “de todo modo/o primeiro voo de helicóptero bem-sucedido/ocorreu nos anos 1910 na frança/e foi na mesma época/em que marcel duchamp/viu aquela outra hélice/no salão da aeronáutica”. E a coda desta parte faz um arremate histórico retomando Duchamp e o salão de aeronáutica.

12: Aqui, nesta parte do poema, Marília opera com o acaso um mistério cheio de significado, uma lógica desconhecida que provoca e evita desastres, dividindo a fronteira entre a vida e a morte, e a poeta Marília se torna, aqui, uma agente deste deslocamento de corpos, e de conservação da vida, no que vem : “Em 2009 eu estava na frança/e minha mãe foi me visitar/meu padrasto comprou a passagem para ela ir/no voo 447 da air france” (…) “ele me ligou/para confirmar os dados do voo :/minha mãe sairia do rio de janeiro/no domingo 31 de maio/e chegaria em paris na segunda-feira 1° de junho”. Eis uma ação pontual, aparentemente banal, mas que opera um deslocamento de sobrevivência e de salvamento, no que segue : “mas eu preferia que ela chegasse/no domingo e não segunda/para ir ao aeroporto buscá-la/então perguntei ao meu padrasto/se ele poderia trocar a passagem por outra/que saísse na véspera” (…) “meu padrasto trocou a passagem/que tinha comprado pra ela no voo 447 da air france/por uma passagem pela TAM saindo do/rio de janeiro na véspera” (…) “minha mãe saiu do rio de janeiro no sábado 30 de maio/e chegou no aeroporto charles de gaulle/no domingo 31 de maio” (…) “o voo 447 da air france/saiu do rio de janeiro como previsto/no domingo 31 de maio/e caiu no meio do oceano atlântico/na madrugada do dia 1° de junho”. O acidente aéreo acontece, e um pequeno milagre do deslocamento coloca o acaso de uma ação na sua misteriosa confluência com forças desconhecidas, a imagem poética aqui coloca o deslocamento, também, como agente de ações milagrosas, no que segue : “dia 1° de junho era feriado na frança/e eu não tive compromissos de trabalho/como imaginei que teria quando pedi/ao meu padrasto para trocar a passagem/da minha mãe”. Uma ação simples da poeta Marília operando na linha demarcatória entre a vida e a morte.

13: Marília coloca em dúvida, de novo, o estatuto de poema, este que foi escrito sobre o acidente aéreo, no que vem : “quando enviei para uma revista o poema/sobre o acidente da malaysia airlines/senti um desconforto/porque havia um desencontro entre o que era o texto/e a ideia que a gente tem do que é um poema”. Ela descreve como fez este poema, dá detalhes, no que temos : “durante a escrita/tinha tentado justapor as cenas/de acaso e engano/me fazendo algumas perguntas : engano/será que o avião tinha sido mesmo abatido/por engano? como lidar com o/acaso/como nesta história do comissário que decide voar/num dia em que deveria folgar?/seria possível escrever sobre isso?”. A questão do acaso como uma questão filosófica nevrálgica aparece aqui no poema como um marcador de toda a sua reflexão, junto com esta ideia obsedante sobre o deslocamento, e o fetiche deste grande poema, a hélice, no que temos : “ao ver a hélice no avião que ia para juiz de fora/não podia deixar de pensar/na explosão do avião da malaysia airlines/e no acidente da air france/do qual minha mãe tinha escapado”. Marília propaga suas ideias fixas, e as coloca numa oficina, dando isto ao mundo, no que temos : “dois meses depois de fazer esse poema/dei uma oficina em salvador e pedi como exercício/um poema feito a partir do recorte/das mesmas notícias tiradas do site do G1”. O exemplo do poema de um aluno de sua oficina literária opera aqui mais um looping, o deslocamento se aprofunda aqui, criando uma nova camada, aqui, em um poema dentro de outro poema, no que temos : “o saulo moreira fez um poema/misturando essas notícias com a morte da carol/prima dele que tinha sofrido um acidente/de carro na semana anterior :/para carol”. Este poema, contudo, é sobre o mesmo tema dominante, mas opera dentro de seu próprio entorno, misturando fatos, no que temos : “carol caiu na ucrânia perto da fronteira com a Rússia/carol ficou sozinha durante quase 17 horas quase 24 horas/numa estrada próxima da casa da minha mãe/minha mãe mora em Itapetinga” (…) “carol amava minha mãe/carol voava normalmente,/sem registros de problemas, até desaparecer do radar/carol não morava em Itapetinga/minha mãe mora em Itapetinga”. A descrição se torna chocante, ao fim : “carol quebrou/o pescoço/ninguém ouviu o barulho dos ossos” (…) “há fatos difíceis de analisar/154 holandeses 43 malaios incluindo tripulantes e 2/Crianças 27 australianos 12 indonésios incluindo uma/Criança 9 britânicos 4 belgas 3 filipinos 1 canadense e/carol”.

14: Marília retorna a seu habitat e evoca a hélice em toda a sua intensidade, que é o tema do poema, para além da ideia de deslocamento, no que temos : “apresentei este texto uma vez/em guarulhos cidade ao lado de são paulo/onde fica o maior aeroporto do país” (…) “deve ser um dos lugares com mais hélices e turbinas/do continente essas hélices todas/servem para fazer a gente se deslocar/e esse lugar serve para receber/as pessoas que se deslocam”. O aeroporto de Guarulhos e sua profusão de hélices, lugar que opera deslocamentos brutos e intensos, tanto dos grandes aviões como do som ensurdecedor de suas turbinas, no que temos : “estou querendo falar de guarulhos/para lembrar que há cinco anos eu mesma/cheguei naquele aeroporto para morar/em são paulo e nessa época nunca tinha visto/um avião de hélice”. O enigma do fio invisível que conduz todas as coisas e o deslocamento feito pelas hélices, tudo interligado, e temos : “eu queria falar da hélice quando gira/e produz ação e eu queria falar do caminhão/se deslocando com a mudança/e eu queria falar do poema/caminhando junto com esse fio invisível/que faz mover as coisas”. A ação faz mover as coisas, atuar neste deslocamento é a participação e a ação direta da poeta e de sua poesia, de sua vida, a poeta Marília avança, se movimenta, e reflete sobre estes movimentos brutais de um aeroporto, no que vem : “e do céu repleto de zepelins/em movimento e das ondas sonoras/que atravessam o ar”. E retoma a ideia poética da fala-aventura, no que temos : “buscando diferenciar as falas-aventuras/das outras falas/a silvina rodrigues lopes escreve :” (…) “”se aceitarmos que há na vida das pessoas/e na cultura dos povos/aquilo de que não se pode falar/e aceitando que o poemático é uma das manifestações disso/devemos admitir que há uma fala que não fala de” (…) “eu queria que fosse uma fala que fala com/talvez uma fala de aproximação e de encontro”. A fala-aventura encontra e se encontra, o poema se faz como uma coda final deste deslocamento que chega ao seu destino, feito de ação, movimento e hélice.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Blog:
http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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