A ideia de “corrente literária” se dilui neste novo milênio como uma diversidade de tendências
Esta amplitude em poesia nos coloca numa perspectiva nova em que a ideia de “corrente literária” se dilui neste novo milênio como uma diversidade de tendências e a operação linguística destas influências se direciona para uma complexidade e uma ambiguidade em sua possível definição. Isto é, cada poeta pode nos aparecer com uma personalidade própria.
Por conseguinte, surgiram novas propostas poéticas que juntam referências nacionais e internacionais, em que podem aparecer novas vozes poéticas como as de Angélica de Freitas e Ricardo Domeneck.
Há também poetas que transitam entre a academia e as publicações independentes, como Annita Costa Malufe e Marcos Siscar, que trouxeram referências diversas da atualidade, muito se devendo aos exercícios de tradução e de pesquisa teórica.
Nesta amplitude toda, não temos apenas a referência de uma pesquisa sobre atualidades, mas um cabedal de influências que remontam ao passado, reconstituindo este passado, seus cânones, por exemplo, com nomes que haviam sido ofuscados em sua própria época, ganhando uma nova leitura e um novo status na poesia como um todo.
Aqui, nesta nova poesia dos anos 2000 em diante, se revelam estratégias e abordagens poéticas bem abertas em suas possibilidades. As referências aqui, portanto, são amplas no tempo e na geografia, envolvendo tempos diversos e países diversos nesta pesquisa poética contemporânea.
Marília Garcia, neste novo contexto poético, produz um material com uma voz poética híbrida, na qual se mesclam a coloquialidade e experimentos de linguagens, em camadas sobrepostas. A poesia de Marília flui neste estilo complexo de composição, com temas e termos que vão e retornam. Leit-motivs e temas-valise, obsessões de escritores, aqui em Marília como produto de sua pesquisa e de sua feitura dos poemas.
Tentar desvendar o que está oculto na banalidade do mundo objetivo pode ser este sentido procurado em Câmera Lenta, este livro que sugere a ideia de câmera, um objeto que possui uma lente que substitui a experiência direta da visão, um mundo sensorial que aqui se acopla a um artefato, e a experiência da realidade mediada pelos artifícios.
Entender a poesia como uma espécie de resgate da percepção humana não impede de colocar esta linguagem, a poesia, em seu próprio questionamento, se confrontando com seu estatuto, e a câmera de Marília tenta captar como artefato um modelo de poesia que faz a mediação entre o sensorial e o mundo artificial.
Tendo a ideia de velocidade, obsessão de vanguardas do início do século XX, como o Futurismo, por exemplo, esta aparece em Marília Garcia se ligando com meios de transporte como aviões, helicópteros, trens, automóveis e caminhões, marcando toda a construção da voz poética produzida em Câmera Lenta.
O deslocamento que evoca a ideia de velocidade e, talvez, de instantaneidade, marca toda uma literatura que veio após a Revolução Industrial, e neste livro Câmera Lenta, da poeta Marília Garcia, os meios de transporte são os representantes deste novo mundo tecnológico e veloz, com todas as ameaças que isto acarreta, como ruídos ensurdecedores, acidentes e terrorismo.
Tem-se toda uma gama de operações de perigo iminente e uso deste conhecimento para a guerra, por exemplo. O que no Futurismo, como citei, era motivo de glória, a velocidade e a guerra, numa espécie de visão pré-fascista, a velocidade aparece aqui em Marília Garcia com seus artefatos, como meio de percepção em Câmera Lenta, em seus poemas experimentais e coloquiais, ao mesmo tempo.
POEMAS
TERREMOTO: O terremoto aqui no poema tem seu caráter tectônico, mas também perturba a sensação do tempo, no que temos: “um terremoto replicando/por vários dias,/à noite as luzes de néon paradas/e, na manhã seguinte,/a tremedeira outra vez./você pensa que o futuro/ainda não chegou, mas/de repente o terremoto/replicando faz tremer a língua/os dentes e tudo o que é/matéria.”. O terremoto como transformação radical: “era como um país virando mar/um terremoto replicando/sem parar.”. O poema entra num circuito especulativo e de imagens bizarras, no que temos: “como conciliar o/inconciliável?, pergunto/no momento de/maior/desligamento e/ele responde:/- agora o seu wasabi/tem radioatividade.” (…) “de um verde quase prata,/era como a luz batendo no mar/bem na hora em que o chão –/e tudo recomeça.”. Ao fim, este poema lida com sua inconclusão, o imponderável é seu terremoto, no que temos : “quero pedir/silêncio, mas não sei lidar/com o imponderável./um dia acordo/e não espero/mais resposta.”.
AQUI COMEÇA O LOOP: O poema flerta aqui com a imagem bizarra que abre sua ideia, no que vem: “para ver no escuro,/uma mulher injetou nos olhos/um colírio feito da mesma substância/que existe nos olhos dos peixes/que moram no fundo do mar.”. A imagem de ver na escuridão e tudo o que isto implica, no que temos: “no dia 1,/ela disse:/”aqui começa o loop”/e aquele era o começo.”. O loop, que intitula o poema, e esta ideia de começo e recomeço, no que vem: “no dia 2,/veio à casa uma jovem./olhou as geringonças no escuro/e disse :/noite americana./eu perguntei: o quê?/”eu tinha quatro anos/e a guerra tinha acabado de começar””. Se sucedem os dias em estrofes, e a ideia de começo que reverbera, em seu loop, recomeço, no que vem : “no dia 3,/estou sentada num trem/e penso : como se começa uma conversa/com alguém?” (…) “no dia 4,/leio :/”o estômago dos polvos/é assombroso”/esse era um dos começos/e eu me lembro do fundo do mar.”. A sucessão, a repetição, e o que vem depois, no que temos : “ele me diz :/”coisas acontecem depois”/e era uma espécie de deixa./você pensa que é como/o fim da linha, como chegar atrasado/sem saber o que fazer para consertar/o engano./alguma coisa acontecerá depois,/mas por enquanto/sabe que acabou./precisa fazer as malas, cruzar/o mapa para voltar./precisa se lembrar das regras :/não pular as etapas e seguir os fatos/numa sequência ordenada.”. A sabedoria da sucessão no tempo e suas etapas, sua sequência natural, sem pular ou fazer movimentos desordenados, a ordem do tempo em sua impassível sucessão que todos obedecem sem saber, uma espécie de entidade onisciente, o tempo que tudo sabe e que dá a sequência de seu movimento impassível, e nós lhe somos os devedores de suas lições, e o poema se encerra : “você morde a cabeça do violão com força :/os dentes na madeira/ressoam e o corpo/é continuação do som,/a caixa craniana vibra/com o movimento/e chega-se ao fim/pelo contato.”.
DESCREVA: LONGILÍNEA
de lá, ele diz que um cataclismo é algo
que pode ser estendido
indefinidamente. e de repente
estou num lugar
que se escreve
com s.
escreva isso, descreva,
ele diz e eu só penso
em como dobrar a
esquina sem cair,
em como seguir pela beira
num lugar sem parede, num lugar em que
a pergunta certa deveria ser :
você tem tempo?
tomar o avião à noite
numa cidade em que noite
significa apenas
noite.
e depois?
descreva escuro, ele diz.
nessa língua tudo poderia
ser escuro ou vacilar.
dias dias dias,
um depois do outro e você tem sempre que
recomeçar. naquele dia, acordei
com o som dos helicópteros
e li uma frase :
há um ano ela olhava o mar desta janela
aqui os sons da fala
se intercalam com
os helicópteros
(mas ele não diz nada,
só escreve :
descreva isso agora).
DESCREVA: PAREDE
queria falar da parede
neste lugar.
descreva, ele diz,
escreva sobre como foi
chegar ali –
mas antes de chegar tinha o cimento
e o cinzento da lataria do avião.
não posso entrar nesta máquina que
parece trem de carga e que lembra
a guerra.
o pior de estar no alto é ver os reflexos
luminosos no aço
“acabamos de atravessar
10 mil pés de altura”,
ouve o piloto dizer e não sabe
quais são os sinais.
chegamos à metade do caminho
e talvez já possa parar de
respirar, pensa.
eles jogam sal na rua
ouve a senhora ao lado dizer
para andar sobre a neve
dirigir é sempre perigoso
por causa dos bichos que atravessam correndo
que atravessam os anos que vão passando
que atravessam esse estado de sítio
descreva, ele diz,
escreva o que aconteceu
com a gente.
– já reparou que as cidades são velhas
ou futuristas?
estou no 20° andar de um prédio
que dá para uma antena.
quando cheguei, pensei que fosse um ano
no futuro com tantos arranha-céus
prateados jogando luzes por todo
canto, mas a cidade é baixa por causa
dos terremotos, é cheia de ruínas
e construções de pedra vermelha,
todas as paredes de um tom
avermelhado, vermelho-escuro
e fechado.
– você quis dizer “tijolos”?
ele pergunta quando
tento explicar o que são
paredes vermelhas determinando
o fechamento
– não são tijolos,
são pedras de origem vulcânica.
tezontle.
TERREMOTO
por vários dias,
à noite as luzes de néon paradas
e, na manhã seguinte,
a tremedeira outra vez.
você pensa que o futuro
ainda não chegou, mas
de repente o terremoto
replicando faz tremer a língua
os dentes e tudo o que é
matéria.
por mais que use palmas
para cobrir os ouvidos,
a ternura – o que você quer dizer? –
aliás, a tremura chega
arrastando tudo.
era como um país virando mar
um terremoto replicando
sem parar. se as réplicas consistem
em tremedeiras, e se uma língua é desenhada
fora das linhas,
como conciliar o
inconciliável?, pergunto
no momento de maior
desligamento e
ele responde :
– agora o seu wasabi
tem radioatividade.
essa cor brilhante,
de um verde quase prata,
era como a luz batendo no mar
bem na hora em que o chão –
e tudo recomeça.
quero pedir
silêncio, mas não sei lidar
com o imponderável.
um dia acordo
e não espero
mais resposta.
AQUI COMEÇA O LOOP
para ver no escuro,
uma mulher injetou nos olhos
um colírio feito da mesma substância
que existe nos olhos dos peixes
que moram no fundo do mar.
no dia 1,
ela disse :
“aqui começa o loop”
e aquele era o começo.
ficava no escuro sublinhando as palavras
em vermelho
e recortando os começos.
o primeiro era este :
“aqui começa o loop”
no dia 2,
veio à casa uma jovem.
olhou as geringonças no escuro
e disse : noite americana.
eu perguntei : o quê?
“eu tinha quatro anos
e a guerra tinha acabado de começar”
no dia 3,
estou sentada num trem
e penso : como se começa uma conversa
com alguém?
estava nisso quando ele disse
de qual terminal sai o seu voo?
e eu perguntei : o quê?
no dia 4,
leio :
“o estômago dos polvos é assombroso”
esse era um dos começos
e eu me lembro do fundo do mar.
você sabia que as baleias
se comunicam por
ultrassons?
– mas e os olhos? você lembra
dos olhos das baleias?
voltemos, por favor, agora
voltemos lentamente
para o começo :
para ver no escuro
uma mulher injetou nos olhos
um colírio feito da mesma substância
que existe nos olhos dos peixes que moram
no fundo do mar.
aqui já passamos da metade
e estamos
quase no fim.
os dedos seguem as teclas no mesmo ritmo
mecânico, seguem o fio
sem voltar atrás :
um dia,
ele me diz :
“coisas acontecem depois”
e era uma espécie de deixa.
você pensa que é como
o fim da linha, como chegar atrasado
sem saber o que fazer para consertar
o engano.
alguma coisa acontecerá depois,
mas por enquanto
sabe que acabou.
precisa fazer as malas, cruzar
o mapa para voltar.
precisa se lembrar das regras :
não pular as etapas e seguir os fatos
numa sequência ordenada.
no último dia,
lê as instruções em voz
alta :
“o som só pode existir se ele ressoa
com um certo corpo”.
você morde a cabeça do violão com força :
os dentes na madeira
ressoam e o corpo
é continuação do som,
a caixa craniana vibra
com o movimento
e chega-se ao fim
pelo contato.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com
Marília Garcia e o novo eu lírico
https://www.seculodiario.com.br/cultura/marilia-garcia-e-o-novo-eu-lirico