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Matilde Campilho e o mundo da vida

Jóquei é este tipo de tradução do mundo vivido em poesia

Reprodução Youtube/Flip

Matilde Campilho é uma poeta que tem na vivência a sua fonte maior de poesia, ao contrário dos poetas pretensamente eruditos, que fazem de seu ofício mais uma exibição de seu conhecimento do que o registro fiel do que se é, o poeta sendo, como a fonte primordial para a poesia, aqui em Matilde temos aos montes. E esta vivência vem de seu hábito saudável de flâneur, com um olhar contemporâneo que funciona como uma antena de seu tempo e da poesia de seu tempo, Matilde vive intensamente o que escreve, e sua passagem pelo Rio de Janeiro prova isto, Matilde vive o que escreve.

A riqueza de suas imagens tem, além de um ar cool sem afetação, um conjunto de registros que passam pela coloquialidade entre temas dos mais diversos, uma miríade de curiosidades se forma nesta escrita criativa no verso, a caudalosa no poema em prosa. Jóquei, seu livro de 2014, tem este espírito fresco, que dá a sensação de poema ao ar livre, longe das afetações de gabinete e de toda a sua gabolice. “Jóquei” é o nome que se dá ao profissional que monta o cavalo de corrida.

Em Jóquei temos imagens em sua diversidade temática, desde publicitários com cotovelos gastos, vendedores de picolé, dólares amassados no bolso na forma da Beretta 92fs, o porteiro da loja de discos e até desemboca num poema em prosa que toma de tema o ácido desoxirribonucleico. Matilde nos indica, com seus poemas, uma leitura fluida entre temas do cotidiano e temas também de conhecimento, como o DNA, mas com uma cadência suave e interessante, a sua condução em seus poemas nos leva a um mundo aberto, como se víssemos tudo de uma janela aberta para o mundo, e lhe dando um forte abraço, ler Jóquei me dá a sensação de uma boa caminhada ao ar livre.

Tem muita poesia no mundo, e não somente nas mitologias, a sua origem, e Matilde nos dá a prova fiel de que ela está aí, e é possível decodificá-la, e Jóquei é este tipo de tradução do mundo vivido em poesia, com uma força original, um registro que renova o mundo, refazendo o que está dado, acabado, num acabamento novo, a poesia que fala e vive o mundo. E o espaço da fé, neste livro, não lhe dá forma de doutrina ou de um livro baseado em crenças, mas no sagrado envolvido no mundo da vida, na profana vida cotidiana, em seus objetos e demandas várias, o mundo da vida é soberano na poesia de Matilde Campilho.

A proximidade com o leitor, seu chamamento, acolhe este leitor, o coloca em plano familiar, numa intimidade, e esta linguagem do mundo da vida, coloca este chamamento e a ideia de proximidade e familiaridade como o modo de operar da poesia de Matilde, a sua dicção cool se junta a temas que nos aproximam cada vez mais de sua vivência, e tal viver nos é familiar, não há estranhamento desnecessário, não há uma complexidade gratuita, o simples aqui se dá como a verdade da vida, a sua vivência num primeiro take, os poemas aqui nos aparecem como instantâneos, registros que capturam uma impressão forte e sensorial, portanto, cheia de vida.

A parte filosófica da poesia de Matilde, por sua vez, vem neste influxo que não se liga à lógica ou ao campo propositivo, de argumentação para fazer inflexão conceitual, bem longe disso, mas colocando a própria filosofia neste jogo da poesia como algo possível para todos, no poema Veleiro, por exemplo, podemos ver isto, aonde se pode ler : “A filosofia é uma matemática muito esclarecedora e qualquer dia ainda vai salvar o mundo”. Em Jóquei se pode dizer que a filosofia aparece nas ruas, no ato do flâneur, este ser que vem povoar a poesia desde a fundação baudelairiana. Temos esta certa filosofia em “Rapariga que oferece à visão o hábito da escuridão e depois logo se vê” (“Descrição da cidade de Lisboa”), e também na frase : “subitamente tudo arde e então a única possibilidade é o desvio” (“A volta no cadillac de Billy J.”).

O pensamento cósmico, por sua vez, ganha um tratamento iconoclasta na poesia de Matilde, numa irreverência que lhe confere leveza. O conteúdo metafísico, portanto, tem um ar leve, que lhe tira de sua sisudez filosófica, de sua obscuridade originária, e entra no jogo poético para um divertimento que, novamente, coloca a proximidade como um dos meios em que opera a poesia de Matilde, um convite e chamamento para um encontro de vida e que coloca a palavra no serviço desta vida vivida, a parte filosófica, cósmica, metafísica, ou qualquer operação linguística que poderia se tornar complexa, ganha no jogo poético estabelecido por Matilde, cores leves de um mundo da vida que está próximo de todos nós.

As experiências de dor e de amor, por sua vez, trabalham na poesia de Matilde, como dois polos na tensão do encontro amoroso, experiências necessárias para seu fortalecimento. Nos vídeo-poemas de Matilde, o chamamento é para seus amigos de Portugal, era um envio como a possibilidade de um encontro. Uma poesia do encontro, que chama “vem dançar comigo, vem” (“Fevereiro”), como Drummond nos convoca com os versos “Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”. Esta proximidade que se levanta o tempo todo na poesia de Matilde Campilho, que coloca no plano do mundo da vida o cosmos, a experiência do sagrado, a filosofia, trazendo para perto da vivência qualquer tema é o que coloca o sentido do livro Jóquei como um livro sobre a vida, além de ser um livro de poesia.

POEMAS

ASCENDENTE ESCORPIÃO: O poema começa com o cenário do nascimento de Billy Ray, e aqui temo tal evento em um contexto poético próprio, que vem : “Na noite em que Billy Ray nasceu/(rua 28, cruzamento cm a 7, Nova Iorque)/não havia ninguém dedicado à contemplação dos gerânios/Havia, isso sim, o som do mundo que caía/como estalactites múltiplas/sobre as cercanias do hospital”. O contexto urbano, o que cercava este evento, a poeta aqui nos diz, no que segue : “Havia o caminhão varrendo todos os pedaços de lixo da rua/Havia o ruído das fichas de pôquer sendo lançadas/sobre a mesa verde-gasto, entre dedos e fumaça/Alguém gritando, na explosão da minúscula morte/Alguém cantando a canção sul-americana”. Esta noite especial, de tão especial, faz com que Matilde enumere tudo que está em volta disto, e temos : “Havia o rádio no on tocando algum barulhinho em onda média/Havia uma bruxa cozinhando azevinho & cobre na panela/do apartamento de paredes queimadas/Na noite do nascimento de Billy Ray/ao mesmo tempo que ele escutava o som gelatinoso/da placenta de onde era arrancado/e depois o som da passagem pelo canal uterino de sua mãe/e depois o som do primeiro toque em sua cabeça/e depois o som de seu próprio grito/o grito que inaugura a festa”. Esta descrição do parto em forma poética é de uma inteligência ímpar, a poesia num espaço inóspito e hospitalar, num evento extremo da vida, no que segue : “centenas de homens vergados/fazendo vênia à metafísica suficiente/que existe nos corredores do mundo/e se extrapola até o infinito luar.”. A coda evocando a metafísica, por fim, se esvai no infinito luar.

O APARECIMENTO DAS CAVEIRAS NO LENÇOL DA VIA LÁCTEA: O poema coloca a poeta em sua decadência, seu envelhecimento, e aponta para o evento bíblico de Jonas e a baleia, no que temos : “Minha cara está envelhecendo/antes de mim/Reconheço meus deuses/e se supõe que Jonas/também tenha reconhecido a baleia/antes da grande meditação/antes do grande silêncio”. A poeta é uma aventureira, e dá seu mergulho, a descrição do cenário natural é rico, e nos dá então seu seguimento : “Pratico mergulho-prego/desde a rocha mais alta/como é próprio da estação/E antes do salto/sempre peço a Deus/que a guerra não me seja/de todo indiferente/Porque foi assim/que me ensinou a santa/Foi assim que me segredou/a estrada de fogo/da oitava região/Há uma seleção de catástrofes/se apresentando firmes”. E do segredo aprendido, o mais importante, é conhecer bem as catástrofes, e a poeta segue : “Minha cara está marcada/por revoluções e iodo/por estilhaços de cobre/e pelo silêncio profundo” (…) “Carrego nas costas/a espada de plástico/que corta o friso nublado/entre signo e ascendente/Sim eu me aproximo/cada vez mais de meu ascendente/enquanto faço pazes com meu sol/Reconheço meus heróis/mas pelo sim pelo não/ainda guardo em meu bolso/a nota de cinco dólares/que me ofereceu o nômade/que cantava no deserto.”. A poeta está em metamorfose, a sua transição para seu ascendente astrológico marca esta transformação, sua nova imagem, ela está envelhecendo, sua cara está marcada.

VELEIRO: O poema se abre num circuito filosófico, no que vem : “Bem: as palmeiras brilham mais que o ouro. Walter Benjamin tinha razão sobre os círculos – quanto mais se roda em volta do amor, mais o amor se expande. A filosofia é uma matemática muito esclarecedora e qualquer dia ainda vai salvar o mundo.”. A filosofia aparece aqui como instrumento de salvação e não mais do pensamento, e então vem a liberdade, dar ao toque do poema, seu jogo com a palavra, no que temos : “A liberdade se faz inteira debaixo da palavra, entre um músico Tang e um jarro de Oaxaca. Os continentes se aproximam docemente e, como você me explicou, o selvagem europeu ainda vai soltar seu esplendor.”. Aqui o encontro do tom, como numa banda de música, para que o conjunto dos instrumentos funcione, tem também no exemplo das baleias e a frequência de seu canto, a importância da harmonia na vida para que ela aja em uníssono, no que temos : “Todo canto tem um tom, e a maioria dos mamíferos se agrupam pelo reconhecimento de uma musicalidade comum. Sim, o fadista vai escolher o fadista, e as manadas de baleias costumam espalhar seu sopro de cerca de 20 hertz por oceanos infinitos. Em comunhão. Mas imagine você que em 1989 alguém descobriu uma baleia que canta solitária a 52 hertz”. A história da baleia solitária é comovente, incompreendida, ela canta fora do tom, no que temos : “Depois do surgimento da baleia solitária, depois dos círculos de Benjamin,”. E o poema evoca o brilho natural da terra, como vê-lo, e inverte a profecia de Eliot, curando a sua Madame Sosostris, e para além da paixão e do desejo, o amor salva do afogamento a alma humana, no que temos : “me diga, como não acreditar no brilho natural que diariamente resplandece no peito da terra? Bem, seu rosto de espanto frente ao sorvete de morango numa tarde de domingo é a manobra que puxa o lustro à pele do planeta. Benzinho, estamos invertendo a profecia de Eliot. Estamos curando o resfriado de Madame Sosostris, e esta coisa da alegria ainda vai dar muito certo. Seja como for, dê por onde der, seguimos usando o colar de pérolas que é feito dos olhos do marinheiro fenício. No que depender do amor, para além da paixão e para além do desejo : ninguém mais se afogará.”.

PELE DE COURO: A descrição raiz deste poema evoca o mundo primitivo na ilha de Saint Naumpke, no que temos : “Foi no tempo em que/(como apontou Herbert)/adormecíamos/com uma mão debaixo da cabeça/e com a outra/num aterro de planetas/Morávamos na ilha/De Saint Naumpke/no palácio de estacas e cal/construído por nós mesmos”. O cotidiano da vida aqui é descrito, e seus dons revelados, no que temos : “O pão era feito de alecrim/Os pescadores vinham/ensinar-nos os dons/E isso era tudo/o que precisávamos”. A experiência direta com a terra também é evocada : “Por vezes eu pintava/minha cara de amarelo/só para perceber/a consciência telúrica/que trazem consigo alguns/jaguares e cobras corais”. O poema encerra com o enigma deste tempo inóspito, o poema aqui quase arqueológico, se conclui na descoberta de que são feitas as omoplatas dos amantes : “Existiam heróis daquela pátria/mas eu nunca soube quais/Havia um beato sem rosto/a quem tinham feito um altar/junto à primeira rocha de Naumpke/Sua estátua era de aço/e a todas as manhãs/alguém deixava a seus pés/uma esteira de rosmaninho./Aquele foi o nosso tempo,/o tempo da descoberta dos aterros/e das cavernas de que são feitas/as omoplatas dos amantes.”.

TIGER BALM: O poema fala do amor e de como se dá a sua importância, e segue se expandindo para várias frentes, no que temos : “O brasileiro acha que o amor é importante porra, eu cá não acho nada, só fui arranhando poemas, alinhando conchas, tirei o relógio nos últimos anos para escrever, para ler os textos norte-americanos, guaranis e siríacos. Disse que era índio mas nunca me despi na rua. Entendi que não existe um poeta maior e espero ter entendido que um esquiador, um pescador, um astrólogo e um boxeur são quase sempre a mesma coisa.”. As atividades aqui não são idealizadas, todos valem a mesma coisa, e segue o poema : “Soube de histórias de ladrões que foram os primeiros a entrar no céu logo depois de Cristo, e também soube de um anjo que não estava acostumado a fazer de cicerone a esse tipo de gente. Descobri que o cirílico não é tão difícil assim se se prestar atenção à forma como são escritos os nomes.”. As descobertas da poeta aqui são inúmeras, no que segue : “Aquela frase sobre o amor está escrita em cartazes espalhados por todas as cidades onde já estive. Tinha também uma frase sobre tigres, mas essa ficou num só cartaz, numa cidade só. Li sobre pássaros e passei a saber que os pássaros medem a distância em unidades de corpo e não em metros : a densidade de cada corpo não importa, o que importa é a distância entre eles.”. A poeta enumera e explica as suas descobertas, seu estudo se adensa e se aprofunda, no que vem : “Em determinado momento achei que K. era o homem mais bonito do mundo. Quando não pude mais com o silêncio escutei as canções. Soube da morte no mesmo dia em que soube que o amor sim é importante, mas não é imutável. Acho que chorei. Telefonei a meu primeiro rapaz e lhe contei tudo isso. Lembro-me que ficou muito tempo calado e depois escutou-se pelo país o ruído de uma garganta seca. Entre nós será a guerra, foi o que ele disse, mas isso foi muito tempo antes. Aconteceu também que eu pedi esse tal em casamento : uma vez, outra vez e depois outra vez. Ele negou três vezes mas nem por isso deixei de achar que ele era o poeta mais bonito do mundo.”. A poeta enumera também suas aventuras amorosas, num misto de seriedade e anedotário, uma curiosidade para leitores, e bem interessante, e segue o poema : “Apaixonei-me por bandeiras no verão de dois mil e dez, quando os meninos dançavam um transe muito psicodélico feito do som dos ramos das araucárias varando no ar.”. A paixão pelas bandeiras, e o transe psicodélico, tudo num mesmo espaço, como se fossem a mesma coisa, e o poema segue : “Aprendi a contar pelas manchas múltiplas de uma papaia e acentuei a palavra açaí muitas vezes. Vi dois leões roçando os focinhos um no outro e vi dois leões rugindo contra Deus quando repararam que seus focinhos eram exatamente o mesmo focinho. Decidi que astronauta era a palavra mais incrível de todas, mais ainda do que açaí, e então resolvi que todos os poemas a partir dali seriam escritos no centro de um círculo desenhado num capacete. Já não sei o que acha o brasileiro porque hoje eu acho que brasileiro ou argelino são precisamente a mesma coisa : tudo o que respira, brota. Acho que a ternura é importante.”. O poema, ao fim, celebra a vida, tudo o que respira, brota.

POEMAS

ASCENDENTE ESCORPIÃO

Na noite em que Billy Ray nasceu

(rua 28, cruzamento cm a 7, Nova Iorque)

não havia ninguém dedicado à contemplação dos gerânios

Havia, isso sim, o som do mundo que caía

como estalactites múltiplas

sobre as cercanias do hospital

Automóveis, alguns a 90 km/hora, outros a 30 km/hora

Bombeiros correndo para salvar o cachorro

preso na escotilha do bote atracado no Hudson

O imigrante rendendo o caixa da loja de conveniência

para roubar alguns dólares e chicletes

Aquele casal na esquina à direita, os dois chorando,

terminando com razão o arrastado namoro de cinco anos

Rosa Burns entrando em casa sem pressa nenhuma,

lançando investidas à fechadura com a chave muito mais velha

que seu rosto – tremendo, tremendo, quase desistindo

desse negócio de viver e atirar no alvo

Havia o caminhão varrendo todos os pedaços de lixo da rua

Havia o ruído das fichas de pôquer sendo lançadas

sobre a mesa verde-gasto, entre dedos e fumaça

Alguém gritando, na explosão da minúscula morte

Alguém cantando a canção sul-americana

Alguém afagando o pescoço do pombo sem dono

Alguém jogando a bola de tênis contra a parede do quarto,

repetidamente, repetidamente, repetidamente

Havia o rádio no on tocando algum barulhinho em onda média

Havia uma bruxa cozinhando azevinho & cobre na panela

do apartamento de paredes queimadas

Na noite do nascimento de Billy Ray

ao mesmo tempo que ele escutava o som gelatinoso

da placenta de onde era arrancado

e depois o som da passagem pelo canal uterino de sua mãe

e depois o som do primeiro toque em sua cabeça

e depois o som de seu próprio grito

o grito que inaugura a festa

O mundo se reunia inteiro

entre a rua 28 e a rua 7

em Nova Iorque

para rezar a oração dos pequenos gestos

o aleluia da existência ocidental :

centenas de homens vergados

fazendo vênia à metafísica suficiente

que existe nos corredores do mundo

e se extrapola até o infinito luar.

O APARECIMENTO DAS CAVEIRAS NO LENÇOL DA VIA LÁCTEA

Minha cara está envelhecendo

antes de mim

Reconheço meus deuses

e se supõe que Jonas

também tenha reconhecido a baleia

antes da grande meditação

antes do grande silêncio

ou antes de escavar

a costela de sal

Pratico mergulho-prego

desde a rocha mais alta

como é próprio da estação

E antes do salto

sempre peço a Deus

que a guerra não me seja

de todo indiferente

Porque foi assim

que me ensinou a santa

Foi assim que me segredou

a estrada de fogo

da oitava região

Há uma seleção de catástrofes

se apresentando firmes

Coisas do tipo

A figura da menina russa

que passa no parquinho

acenando 3 pêssegos

dentro da bolsa de plástico

Como se fosse um arqueiro

fazendo show-off

de suas setas douradas

no fio solar de agosto

Minha cara está marcada

por revoluções e iodo

por estilhaços de cobre

e pelo silêncio profundo

de los angelitos negros

à hora do café com açúcar

Carrego nas costas

a espada de plástico

que corta o friso nublado

entre signo e ascendente

Sim eu me aproximo

cada vez mais de meu ascendente

enquanto faço pazes com meu sol

Reconheço meus heróis

mas pelo sim pelo não

ainda guardo em meu bolso

a nota de cinco dólares

que me ofereceu o nômade

que cantava no deserto.

VELEIRO

Bem: as palmeiras brilham mais que o ouro. Walter Benjamin tinha razão sobre os círculos – quanto mais se roda em volta do amor, mais o amor se expande. A filosofia é uma matemática muito esclarecedora e qualquer dia ainda vai salvar o mundo. Bem, quatrocentos anos depois e você & eu ainda somos uma espécie de Ferris Bueller`s Day Off. Ó, você viu os coros dos meninos na avenida? A alegria é um carro de bombeiros todo enfeitado de penas e cavalos bravos, atravessando tudo. A liberdade se faz inteira debaixo da palavra, entre um músico Tang e um jarro de Oaxaca. Os continentes se aproximam docemente e, como você me explicou, o selvagem europeu ainda vai soltar seu esplendor. Acredito muito naquilo que ninguém mais espera, principalmente depois que dei de caras com o dorso da baleia solitária. Todo canto tem um tom, e a maioria dos mamíferos se agrupam pelo reconhecimento de uma musicalidade comum. Sim, o fadista vai escolher o fadista, e as manadas de baleias costumam espalhar seu sopro de cerca de 20 hertz por oceanos infinitos. Em comunhão. Mas imagine você que em 1989 alguém descobriu uma baleia que canta solitária a 52 hertz – sem primos, sem irmãos, sem melhor amigo, sem ilha onde fazer um pit stop. Ninguém vocaliza na sua frequência, ouvido nenhum escuta seus 52 pontos. Há milagres. Depois do surgimento da baleia solitária, depois dos círculos de Benjamin, depois do desdobramento do poema XIX, depois do berlinde de Seymour Glass sendo girado no dedo do jogador de basquete, me diga, como não acreditar no brilho natural que diariamente resplandece no peito da terra? Bem, seu rosto de espanto frente ao sorvete de morango numa tarde de domingo é a manobra que puxa o lustro à pele do planeta. Benzinho, estamos invertendo a profecia de Eliot. Estamos curando o resfriado de Madame Sosostris, e esta coisa da alegria ainda vai dar muito certo. Seja como for, dê por onde der, seguimos usando o colar de pérolas que é feito dos olhos do marinheiro fenício. No que depender do amor, para além da paixão e para além do desejo : ninguém mais se afogará.

PELE DE COURO

Foi no tempo em que

(como apontou Herbert)

adormecíamos

com uma mão debaixo da cabeça

e com a outra

num aterro de planetas

Morávamos na ilha

De Saint Naumpke

no palácio de estacas e cal

construído por nós mesmos

durante os trinta dias de agosto

Lá os anos nunca eram bissextos

O pão era feito de alecrim

Os pescadores vinham

ensinar-nos os dons

E isso era tudo

o que precisávamos

e precisaríamos mais tarde

para entender a língua de fogo

que se falava nas pracinhas

Por vezes eu pintava

minha cara de amarelo

só para perceber

a consciência telúrica

que trazem consigo alguns

jaguares e cobras corais

Nesse tempo

alguém preferia o relento

à escuridão das casas

e portanto saía para o parque

armado com binóculos

de lentes-diamante

só para se deparar

constantemente

com a fórmula exata

do tempo de crescimento

das folhas de laranja-lima

“O couro de Golias

foi deixado aqui,

há cinco séculos

atrás” era o que ele dizia

no regresso ao palácio

à hora da refeição

Vinha sujo e coberto de areia

Trazendo flores velhas

em seu balde metálico

Existiam heróis daquela pátria

mas eu nunca soube quais

Havia um beato sem rosto

a quem tinham feito um altar

junto à primeira rocha de Naumpke

Sua estátua era de aço

e a todas as manhãs

alguém deixava a seus pés

uma esteira de rosmaninho.

Aquele foi o nosso tempo,

o tempo da descoberta dos aterros

e das cavernas de que são feitas

as omoplatas dos amantes.

TIGER BALM

O brasileiro acha que o amor é importante porra, eu cá não acho nada, só fui arranhando poemas, alinhando conchas, tirei o relógio nos últimos anos para escrever, para ler os textos norte-americanos, guaranis e siríacos. Disse que era índio mas nunca me despi na rua. Entendi que não existe um poeta maior e espero ter entendido que um esquiador, um pescador, um astrólogo e um boxeur são quase sempre a mesma coisa. Escutei muitos ícaros e entendi alguns quando me esqueci de tentar entender. Reparei no rosto daquele moço pintado de azul e vi como o pirata lhe apontava uma arma ao alvo. Acho que toda a gente sabe que o alvo é o lugar entre uma sobrancelha e outra, o olho. Frequentei gabinetes de dermatologia mas não percebi nada antes de ter lido o poeta chinês. Soube de histórias de ladrões que foram os primeiros a entrar no céu logo depois de Cristo, e também soube de um anjo que não estava acostumado a fazer de cicerone a esse tipo de gente. Descobri que o cirílico não é tão difícil assim se se prestar atenção à forma como são escritos os nomes. Aprendi que desenhar montanhas e a palavra espera são lugares muito semelhantes e que ambos podem ser comparados à dormida de um gavião no olho de Deus. Conheci um jogador de críquete que largou o esporte para dedicar-se à prosa porque acreditava na sorte. Reparei que o seu traje se manteve inalterado nas duas profissões : camisa branca e luvas brancas funcionam como músculo em qualquer eremita. Estudei muito sobre a prática do assobio, ainda não concluí nada e acho que é por isso que sei assobiar de três formas diferentes. Aquela frase sobre o amor está escrita em cartazes espalhados por todas as cidades onde já estive. Tinha também uma frase sobre tigres, mas essa ficou num só cartaz, numa cidade só. Li sobre pássaros e passei a saber que os pássaros medem a distância em unidades de corpo e não em metros : a densidade de cada corpo não importa, o que importa é a distância entre eles. Ainda assim me perguntei muitas noites sobre qual seria a medida de uma asa. Em determinado momento achei que K. era o homem mais bonito do mundo. Quando não pude mais com o silêncio escutei as canções. Soube da morte no mesmo dia em que soube que o amor sim é importante, mas não é imutável. Acho que chorei. Telefonei a meu primeiro rapaz e lhe contei tudo isso. Lembro-me que ficou muito tempo calado e depois escutou-se pelo país o ruído de uma garganta seca. Entre nós será a guerra, foi o que ele disse, mas isso foi muito tempo antes. Aconteceu também que eu pedi esse tal em casamento : uma vez, outra vez e depois outra vez. Ele negou três vezes mas nem por isso deixei de achar que ele era o poeta mais bonito do mundo. Descobri que o eixo de uma aldeia pode muito bem ser o eixo de um corpo de mulher. Soube que se faziam procissões perto do mar mas que estas nunca chegavam ao mar. Fotografei a mulher mais linda da procissão e apontei o foco à linha que divide as suas omoplatas – foi aí que aprendi a rezar. Apaixonei-me por bandeiras no verão de dois mil e dez, quando os meninos dançavam um transe muito psicodélico feito do som dos ramos das araucárias varando no ar. Descobri que meu pai nem sempre teve razão sobre as pessoas, mas que a terra onde meu pai me educou talvez sim. Tremi quando me disseram que o único imperador era o imperador do sorvete. Também me comovi quando entendi que o xisto nascia laminado nalgumas praias e que isso quer dizer escultura. Aprendi a contar pelas manchas múltiplas de uma papaia e acentuei a palavra açaí muitas vezes. Vi dois leões roçando os focinhos um no outro e vi dois leões rugindo contra Deus quando repararam que seus focinhos eram exatamente o mesmo focinho. Decidi que astronauta era a palavra mais incrível de todas, mais ainda do que açaí, e então resolvi que todos os poemas a partir dali seriam escritos no centro de um círculo desenhado num capacete. Já não sei o que acha o brasileiro porque hoje eu acho que brasileiro ou argelino são precisamente a mesma coisa : tudo o que respira, brota. Acho que a ternura é importante.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Blog:
http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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