Matilde chama o leitor, lhe convida, e agrada naturalmente
Jóquei é um livro que se coloca como um modelo de poesia que não tem a famosa afetação de estilo, ou do que se chama de “grande estilo”, pois o livro de Matilde Campilho terá algo mais fluido como modus operandi, uma poesia em trânsito, sem algo carregado como poesia pretensiosa ou muito marcada como literatura formal, e também não se estabelece, em sua poesia, algo como estilização no sentido de forma acabada ou viciada de expressão.
A dicção de Matilde possui poucas afetações ou vícios, em consonância com os caminhos da poesia contemporânea, cuja afetação, talvez, seja o fetiche do cotidiano, mas, aqui em Matilde, isto nos aparece com menos tom marcado, mais fluido, sem a pretensão de uma poesia descritiva, que disfarça no cotidiano uma falsa despretensão.
A poesia de Matilde não se enrijece num gênero de poesia, tem diversos modelos que transitam entre a dicção da carta, da conversa, da anotação, em uma poesia que não se coloca heroica ou num pedestal de gabinete. O que se dissipa, a morte e a experiência de desaparecimento, numa alteridade entre luz e escuridão, tudo flui na poesia de Matilde Campilho.
Jóquei tem um ritmo que se sobressalta, acelera, e também opera nos lapsos das perdas, registros que colocam tanto a vida como o seu fim. O poema, às vezes, se nega, dizendo que não é poema, numa operação, digamos, de metalinguagem, e que coloca o poema como material, esta tendência de alguns poetas de também colocar o poema em perspectiva, isto é, como objeto de análise do próprio poema, um poema que se desdobra em si mesmo para ser reafirmado, como diz Matilde “isto não é um poema”, no poema “Príncipe no roseiral”.
A prosa ganha uma dicção encurtada, ao passo que o alongamento desta se dá nos versos de Matilde, o caminho do meio se instaura em Jóquei, e os poemas de Matilde, a verticalidade que se coloca no fluxo da prosa, coloca esta para fora de seu alongamento que seria o natural do poema em prosa, um tiro de largada que, geralmente, serve para o poeta exibir o seu fôlego e nadar de braçada, mas que em Matilde tem um ritmo quebrado, de intermitência, acusando a sua contemporaneidade própria. O inaudito produz na prosa de Matilde uma versão renovada do que é um poema em prosa.
O inaudito é um modo de escrita poética que trabalha com a quebra da expectativa, um poema não-linear e que salta como um poema que se coloca em sentidos novos e que ainda não foram experimentados, colocando a poesia de Matilde num pioneirismo de dicção que produz poesia nova e renovada.
Matilde Campilho tem algo de pop, e, além disso, se firma como poeta popular, de linguagem acessível, e ao mesmo tempo, elaborando bem dentro desta proximidade de sua dicção com o mundo real que todos entendem, uma poesia de qualidade e de expressão consolidada. Jóquei brilha por originalidade e tem certo tom acolhedor. Matilde chama o leitor, lhe convida, e agrada naturalmente, sem forçar o leitor tentando agradar, mas agradando por saber o que faz, isto é, o poeta tem que saber escrever. Matilde sabe isto bem e realiza seu trabalho com um ar aprazível.
Matilde adota o gerúndio brasileiro. Jóquei é um mosaico de memórias e vivências, em meio de uma invenção poética que reafirma o mundo real e cotidiano, como disse, sem o fetiche deste cotidiano que alguns poetas brasileiros contemporâneos tentam usar como moda, num fingimento de falta de pretensão, pois eu nunca soube de alguém que faça escrita sem pretensão ao publicar algo, é mentira.
Matilde é uma poeta da observação, produz um documento, seu fascínio pelo Brasil também transborda em Jóquei, ela vê lugares e os registra, coloca esta fotografia poética como um modo de tornar eterno a sua capacidade de flâneur, de vivente do transitório e do efêmero.
Matilde Campilho está em dois lugares, Portugal e Brasil, uma poeta nômade, que pode muito bem ser colocada ao lado de escritores como Valter Hugo Mãe, José Luís Peixoto, Gonçalo M. Tavares e José Eduardo Agualusa, alguns dos renovadores da escrita em Portugal.
POEMAS
COQUEIRAL : O poema brota da saudade, o batimento do coração se acelera, e o verso se desenvolve suave, no que temos : “A saudade é um batimento que rebenta assim/vinte e oito vezes desde/meu ombro tatuado/de desastre até à rosa pendurada em sua boca/E o amor, neste caso específico, é um mergulho/destemido que deriva quase sempre de uma nota/climática apenas para convergir no osso frontal/do crânio do rei da ilusão – terno é o seu rosto/Senhor, os ossinhos do mundo são de mel e ouro.”. A ternura para com o rosto da pessoa amada, e cosmovisão que advém deste poema na coda, o amor condensado numa vista de mel e ouro.
ALGUÉM ME AVISOU : A poeta Matilde aqui tem um encontro intenso com seu amante, interlocutor, este que aparece no poema como figura enigmática, mas com a sua presença constante no diálogo extremo que se constitui neste poema, no que temos : “Ele falou que eu precisava voltar/porque eu era sua família/falou que os passarinhos/estavam começando de novo”. A poeta diz que este seu amante diz que ela deve voltar, acontecem coisas, e Matilde segue com estas sua sensação : “você precisa voltar ele falou/algumas acácias estão se votando/ao abandono ou ao desespero” (…) “rodando todas as estações/de rádio até achar notícia/não tem notícia de você na cidade/faça-me um favor e volte/está acontecendo uma revolução/querem retirar o primeiro-ministro/de sua cadeira empedernida”. O relato é de acontecimentos extremos, de revolução e notícias, no que segue : “ande veja se volta foi o que ele falou/você é minha família é impossível/assistir à transição do inverno/para a primavera sem família perto” (…) “você e eu sempre damos um jeito/de sincronizar nossos batimentos/eu toco quatro vezes na mesa/você acelera quatro vezes o motor/família é isso mesmo : dois caubóis/fintando a gravidade e a monotonia/vai me diga se volta ou se não volta”. A importância da família, seu amante diz à Matilde, percorrendo este poema todo, a ideia de retorno, de presença física, no que o poema segue : “ele falou que eu precisava voltar/que talvez eu devesse arrumar/minha mala largar meu emprego/arrume tudo em sua mala/não esqueça sua camisa branca/não esqueça sua flauta de osso” (…) “volte me diga que volta/repare que é a época das migrações/e que você sempre acompanhou/os colibris e os pinguins/já chega de se inscrever/nesse campeonato do desapego/você sempre perde já deveria saber/ele falou que eu deveria voltar”. A poeta diz que este seu amante queria combater este desapego dela, é preciso reparar na época das migrações, acompanhar tudo, a ideia de presença e retorno como o leitmotiv no qual o poema se estende todo, no que segue : “você precisa voltar foi o que ele falou/volte por favor meu amor volte pra casa/então eu fiz a mala e foi por isso que eu/voltei – eu voltei porque me chamaram.”. E a coda é o retorno de Matilde, uma coda simples, sem efeito de surpresa, cumprindo o que o poema inteiro se propôs.
DESCRIÇÃO DA CIDADE DE LISBOA : O poema descreve a rapariga, expressão lusitana para moça ou menina, e Matilde, uma portuguesa bem brasileira, desata aqui em prosa bem divertida, no que temos : “A rapariga a pensar naquilo, a rapariga ao sol, menina a comer cachorro-quente, menina a dançar na rua, rapariga do dedo no olho, do dedo na árvore.” (…) “rapariga a ler jornal, rapariga a beber um líquido chardonnay, rapariga no vão de escada, rapariga a levar na cara. Rapariga aflita, rapariga solta, rapariga abraçada, rapariga precisada.”. As descrições se estendem por um universo inteiro, que vai do cotidiano a descrições naturais, no que temos : “Rapariga feita de átomos e sombra. Rapariga de um ponto ao outro e medindo quarenta e dois centímetros, rapariga impávida, rapariga serena. Rapariga apaixonada por igreja quinhentista, rapariga na moto a trocar velocidades a mudar o jeito. Rapariga que oferece à visão o hábito da escuridão e depois logo se vê.”. A ideia de visão, e a prosa abrindo um mundo inteiro que habita e dialoga com esta rapariga imaginada por Matilde, no que segue : “rapariga debruçada na cadeira da frente do cinema, rapariga a querer ser Antonioni. Rapariga estável, rapariga de mentira, rapariga a tomar café em copo de plástico, rapariga orgulhosa, rapariga na proa da nau africana. A rapariga a cair no chão, rapariga de pó na cara, rapariga abstêmica, rapariga evolucionista. Rapariga de rosto cortado pela faca de Alfama, rapariga a fugir de compromissos, rapariga a mandar o talhante à merda, rapariga a assobiar, rapariga meio louca.”. A criatividade nesta repetição que se move para vários lados, num poema em prosa que vira um caleidoscópio, no que segue : “Rapariga a ostentar decote no inverno, rapariga a olhar pelo canto do olho esquerdo, rapariga a ser homem, rapariga na cama. Rapariga a subir o volume, rapariga a querer ser Dylan, rapariga a cuspir no chão. A rapariga a girar a girar a girar a girar no eixo de uma saia de seda amarela. Amarela da cor de um feixe de luz apanhado numa esquina.”. Este poema em prosa que encerra esta aventura da rapariga imaginada por Matilde também elenca o mundo de influências da poeta, as referências da rapariga podem ser as de Matilde, e ser ela mesma.
CONVERSA DE FIM DE TARDE
DEPOIS DE TRÊS ANOS NO EXÍLIO : O poema começa nos descrevendo já uma cena bem interessante, Matilde e seu interlocutor, amante, também aqui num diálogo bem esperto, e que funciona num toque em que o poema serve a sua ideia de amor moderno, em imagens que levam longe, no que temos : “Os garçons empilhando as cadeiras/você me olhando e me pedindo que/fale Por Favor Fale Mas Não Escreva/eu evitando o toque ruim dos ponteiros/do relógio que anuncia a já famosa fuga/de nossos corpos cada um para sua/ponta da cidade – se nosso amor fosse/revólver eu seria o cabo e você a mira”. E o poema, neste ponto, entra em enigma matemático, em divagações próprias de poeta, no que segue : “é terrível a existência de duas retas/paralelas porque elas nunca se cruzam/e elas apenas se encontram no infinito/a verdade é que nunca nos interessou/a questão do infinito mas o resto/das ideias matemáticas claro que sim/eu na verdade prefiro mais de mil vezes/sua chávena de chá ficando fria sobre a mesa/enquanto você fala sobre raízes quadradas/enquanto você fala sobre ladrões de figos/enquanto você fala sobre o tropeço da baleia/subitamente eu já nem sei sobre o que você fala”. O poema fala da hora do cuco, a ideia de tempo e de momento, no que temos : “pelo sétimo dia é chegada a hora do cuco/e do canto do cuco/portanto eu pego minha bicicleta/e como de costume você faz meu retrato”. Esta hora marcada, e o amor que tem seu tempo e diz neste poema a que veio, fuga, explosão, matéria escorregadia, uma ideia original e todo um clima cool e esperto que faz deste poema uma interpretação despojada dos sentimentos amorosos, no que temos : “voltará à mesma hora para o mesmo amor/a mesma mesa a mesma explosão/com toda a certeza a mesma fuga/porque você e eu a gente é feito de matéria/escorregadia, i.e., manteiga, azeite, geleia/e espanto.”.
ROMA AMOR : O poema lembra de uma canção, e seu leitmotiv se abre neste diapasão, no que temos : “Seu cabelo está vermelho/você falou/seu cabelo está todo iluminado/de vermelho & luz/I never wanna be/your weekend lover/respondi certeiro/rebobinando 600 dias/Você lembra da canção?/I never wanna be/your weekend lover/suas mãos desenhando a dança”. A dança que vem da canção, que segue : “Você fazendo pouco/de tudo o que antes havia/sido chamado de baile/Purple Rain” (…) “E por falar em canções/imagine Maria Teresa/arrumando a casa/arrastando os móveis/na interminável busca/por vestígios de pó/quem sabe se na centésima partícula/não será possível achar/um pedacinho do genoma/do marido morto/Imagine Maria Teresa/de cabeça enfaixada/varrendo varrendo varrendo”. A referência musical do poema nos vem, mais uma vez : “És faxinação, amor/Seu cabelo está todo iluminado/de partículas galácticas/sua pele brota toda negra/ameaçando a primeira visão/que o centauro ofereceu/ao menino de 13 anos/quando apontou a concha de ouro”. O poema em prosa se estende e dá o exemplo de algo extraordinário, imagina um dançarino suspenso, no que temos : “Amante de final de semana não/meu bem/muito menos de quinta-feira/pense nas crianças/nos avós das crianças/no olho de couro dos tios/das crianças/Veja só/nem todo mundo/tem a possibilidade de ver/entrar em sua família/um dançarino suspenso/constantemente suspenso/entre o rochedo & a flor”. A canção retorna e enumera todas as imagens usada neste poema em prosa que este amante então desmonta e coloca tudo no lugar novamente : (…) “I never wanna be/your weekend lover/eu falei/Então você abriu a porta/para interromper a refração/para acabar com a promessa/para fechar o desenho/para expulsar o centauro/para estilhaçar a concha/para calar o príncipe/para colocar o móvel no lugar/e empurrar Maria Teresa/você falou/vai embora/desça as escadas e suma/saia agora/tem alguém chegando aí/de hoje é só segunda-feira.”.
POEMAS
COQUEIRAL
A saudade é um batimento que rebenta assim
vinte e oito vezes desde meu ombro tatuado
de desastre até à rosa pendurada em sua boca
destemido que deriva quase sempre de uma nota
climática apenas para convergir no osso frontal
do crânio do rei da ilusão – terno é o seu rosto
Senhor, os ossinhos do mundo são de mel e ouro.
ALGUÉM ME AVISOU
Ele falou que eu precisava voltar
porque eu era sua família
falou que os passarinhos
estavam começando de novo
com aquela entoação estranha
que poderia ser vista como triste
ou como bastante maravilhosa
você precisa voltar ele falou
algumas acácias estão se votando
ao abandono ou ao desespero
e a peixaria foi atacada
por uma enorme inundação
por favor volte veja se volta
esta manhã o taxista ficou
rodando todas as estações
de rádio até achar notícia
não tem notícia de você na cidade
faça-me um favor e volte
está acontecendo uma revolução
querem retirar o primeiro-ministro
de sua cadeira empedernida
querem tocar fogo nas estradas
querem melhorar a estrutura
do sino que marca o meio-dia
na garganta de Antoninho
ande veja se volta foi o que ele falou
você é minha família é impossível
assistir à transição do inverno
para a primavera sem família perto
e como faço para comprar lollypops
se você não estiver me esperando
lá fora do lado de fora em seu carro
brincando com as rotações do motor
enquanto eu fico tamborilando meus
dedos sobre a bancada de madeira
da mercearia onde sempre compro
lollypops de laranja ou de morango
você e eu sempre damos um jeito
de sincronizar nossos batimentos
eu toco quatro vezes na mesa
você acelera quatro vezes o motor
família é isso mesmo : dois caubóis
fintando a gravidade e a monotonia
vai me diga se volta ou se não volta
na semana passada eu reparei
que as plantações de milho
estão começando a se expandir
me diga que isso não te seduz
foi o que ele falou isso mesmo
a plantação que se expande te seduz
ele falou que eu precisava voltar
que talvez eu devesse arrumar
minha mala largar meu emprego
arrume tudo em sua mala
não esqueça sua camisa branca
não esqueça sua flauta de osso
não esqueça não corte seu cabelo
coloque tudo nessa mala
e se tiver tempo me traz sete búzios
volte me diga que volta
repare que é a época das migrações
e que você sempre acompanhou
os colibris e os pinguins
já chega de se inscrever
nesse campeonato do desapego
você sempre perde já deveria saber
ele falou que eu deveria voltar
que no restaurante de dona Célia
estavam servindo um tipo de pão
diferente do habitual
que no parque das diversões
estavam montando um novo esquema
que na cova dos leões já não mora
ninguém absolutamente ninguém
que estão começando uma revolução
você precisa voltar foi o que ele falou
volte por favor meu amor volte pra casa
então eu fiz a mala e foi por isso que eu
voltei – eu voltei porque me chamaram.
DESCRIÇÃO DA CIDADE DE LISBOA
A rapariga a pensar naquilo, a rapariga ao sol, menina a comer cachorro-quente, menina a dançar na rua, rapariga do dedo no olho, do dedo na árvore. Rapariga de braços levantados, rapariga de pés baixos, rapariga a roer unhas, rapariga a ler jornal, rapariga a beber um líquido chardonnay, rapariga no vão de escada, rapariga a levar na cara. Rapariga aflita, rapariga solta, rapariga abraçada, rapariga precisada. Rapariga a fumar charuto, rapariga a ler Forster, rapariga encostada na palmeira, rapariga a tocar piano. Rapariga sentada em Mercúrio ao lado de um leão, rapariga a ouvir discurso de Ghandi, rapariguinha do shopping. Rapariga feita de átomos e sombra. Rapariga de um ponto ao outro e medindo quarenta e dois centímetros, rapariga impávida, rapariga serena. Rapariga apaixonada por igreja quinhentista, rapariga na moto a trocar velocidades a mudar o jeito. Rapariga que oferece à visão o hábito da escuridão e depois logo se vê. Rapariga de ossos partidos, rapariga dos óculos negros, rapariga em camisola de poliéster, rapariga debruçada na cadeira da frente do cinema, rapariga a querer ser Antonioni. Rapariga estável, rapariga de mentira, rapariga a tomar café em copo de plástico, rapariga orgulhosa, rapariga na proa da nau africana. A rapariga a cair no chão, rapariga de pó na cara, rapariga abstêmica, rapariga evolucionista. Rapariga de rosto cortado pela faca de Alfama, rapariga a fugir de compromissos, rapariga a mandar o talhante à merda, rapariga a assobiar, rapariga meio louca. Rapariga a deslizar manteiga no pão, rapariga a coçar um cotovelo, rapariga de cabelo azul. Rapariga a brincar com um isqueiro no bolso, rapariga a brincar com um revólver nas calças, rapariga a nadar, rapariga molhada, rapariga a pedir uma chance só mais uma ao santo da cidade. Rapariga a ostentar decote no inverno, rapariga a olhar pelo canto do olho esquerdo, rapariga a ser homem, rapariga na cama. Rapariga a subir o volume, rapariga a querer ser Dylan, rapariga a cuspir no chão. A rapariga a girar a girar a girar a girar no eixo de uma saia de seda amarela. Amarela da cor de um feixe de luz apanhado numa esquina.
CONVERSA DE FIM DE TARDE
DEPOIS DE TRÊS ANOS NO EXÍLIO
Os garçons empilhando as cadeiras
você me olhando e me pedindo que
fale Por Favor Fale Mas Não Escreva
eu evitando o toque ruim dos ponteiros
do relógio que anuncia a já famosa fuga
de nossos corpos cada um para sua
ponta da cidade – se nosso amor fosse
revólver eu seria o cabo e você a mira
tal como dizia a professora Sofia Jones
é terrível a existência de duas retas
paralelas porque elas nunca se cruzam
e elas apenas se encontram no infinito
a verdade é que nunca nos interessou
a questão do infinito mas o resto
das ideias matemáticas claro que sim
eu na verdade prefiro mais de mil vezes
sua chávena de chá ficando fria sobre a mesa
enquanto você fala sobre raízes quadradas
enquanto você fala sobre ladrões de figos
enquanto você fala sobre o tropeço da baleia
subitamente eu já nem sei sobre o que você fala
porque a forma como seu dente incisivo corta
e suspende toda a beleza da cafeteria
faz com que eu novamente entenda que
pelo sétimo dia é chegada a hora do cuco
e do canto do cuco
portanto eu pego minha bicicleta
e como de costume você faz meu retrato
de cabelo todo desenhado no vento
em jeito de menino que está sempre indo embora
à mesma hora e que amanhã se tudo der certo
voltará à mesma hora para o mesmo amor
a mesma mesa a mesma explosão
com toda a certeza a mesma fuga
porque você e eu a gente é feito de matéria
escorregadia, i.e., manteiga, azeite, geleia
e espanto.
ROMA AMOR
Seu cabelo está vermelho
você falou
seu cabelo está todo iluminado
de vermelho & luz
I never wanna be
your weekend lover
respondi certeiro
rebobinando 600 dias
Você lembra da canção?
I never wanna be
your weekend lover
suas mãos desenhando a dança
no oxigênio daquele julho
e o pó se levantando
desde seus calcanhares
até a nuca de fogo
Você fazendo pouco
de tudo o que antes havia
sido chamado de baile
Purple Rain
seu cabelo está todo iluminado
de vermelho & luz
Você se lembra daquele julho?
uau você falou
sua pele cresce no vaso
da melanina
cada ano mais
E por falar em canções
imagine Maria Teresa
arrumando a casa
arrastando os móveis
na interminável busca
por vestígios de pó
quem sabe se na centésima partícula
não será possível achar
um pedacinho do genoma
do marido morto
Imagine Maria Teresa
de cabeça enfaixada
varrendo varrendo varrendo
até ficar envolta
na nuvem de pó e genomas
que acontece brilhante
no centro da sala
És faxinação, amor
Seu cabelo está todo iluminado
de partículas galácticas
sua pele brota toda negra
ameaçando a primeira visão
que o centauro ofereceu
ao menino de 13 anos
quando apontou a concha de ouro
Gli dei che a mano
nel tempo stesso odiano
você falou
é a forma como maio
bate nas janelas
se refrata na geladeira
vai bater nos azulejos
e se aloja em seus cabelos
respondi é a época
das sementes e das explosões
Amante de final de semana não
meu bem
muito menos de quinta-feira
pense nas crianças
nos avós das crianças
no olho de couro dos tios
das crianças
Veja só
nem todo mundo
tem a possibilidade de ver
entrar em sua família
um dançarino suspenso
constantemente suspenso
entre o rochedo & a flor
Pense nas crianças
e na fé de nossas crianças
Seu cabelo está todo vermelho
você falou
tudo está muito iluminado
I never wanna be
your weekend lover
eu falei
Então você abriu a porta
para interromper a refração
para acabar com a promessa
para fechar o desenho
para expulsar o centauro
para estilhaçar a concha
para calar o príncipe
para colocar o móvel no lugar
e empurrar Maria Teresa
você falou
vai embora
desça as escadas e suma
saia agora
tem alguém chegando aí
de hoje é só segunda-feira.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com