Quando a rapper Tássia Reis lançou seu primeiro EP, no final de 2014, não só as letras, mas o discurso da cantora em início de carreira era muito sobre a falta de oportunidades na indústria musical, principalmente por ser uma mulher negra do interior de São Paulo. Agora transpondo essa realidade para Vitória, a situação fica ainda mais complicada devido ao pequeno mercado de produção musical disposto a apostar numa nova rapper.
Naira Valente se encaixa perfeitamente nesse contexto. Prestes a completar 21 anos, a jovem do Balneário de Carapebus, periferia da Serra, decidiu que encararia o rap estampando sua identidade de mulher negra e tomando frente da carreira de forma independente e com o apoio de alguns parceiros e parceiras.
Essa empreitada é recente. Naira gravou e disponibilizou sua primeira música, Se Joga nas Cores, no início do ano. Contudo, foi em 2011 que a rapper começou a ter um leve contato com o movimento hip hop no bairro em que morava e, com o tempo, no Centro de Referência da Juventude (CRJ), em Vitória.
“Fui ter um contato mais forte com o hip hop quando comecei a sair para estudar em Vitória e conheci o CRJ. Foi lá que tive acesso às batalhas de rima, na época era o projeto Boca a Boca que realizava. Lá conheci o movimento só que não me envolvi de cara, apenas assistia as batalhas. Às vezes eu observava bem aquele cenário e tinham muitos homens. As poucas meninas que iam na verdade estavam acompanhando os namorados e aquilo me incomodava, me fazia sentir que eu não era parte daquele espaço”, relembra Naira.
Foi só no final de 2015 e início de 2016 que a rapper sentiu-se acolhida pelo movimento e encorajada a mostrar suas músicas. O motivo foi a realização de dois festivais integrados e produzidos inteiramente por mulheres, o Festival Mulheres no Graffite (Feme) e o Festival Mulheres no Hip Hop. Naira entrou na organização e pode ter contato direto com mulheres atuantes no movimento, período em que foi se integrando àquele universo também.
“Depois que conheci as meninas e comecei a me empoderar com elas, fui me soltando e elas foram acreditando cada vez mais no meu trabalho e dando incentivo para que começasse de fato a gravar e lançar uma carreira solo” conta ela. Solo porque Naira já teve a experiência de cantar em bandas. Por sinal, a rapper é filha de músico amador e sempre esteve de alguma forma envolvida com a música.
O primeiro trabalho oficial lançado pela rapper veio em conjunto, não por acaso, com os festivais dos quais estava se integrando na época. A música Se Joga nas Cores (vídeo abaixo) chegou acompanhada de um videoclipe feito de forma colaborativa com as outras integrantes dos festivais. A composição é um discurso sobre o quanto tais festivais chegaram dando espaço às mulheres do movimento hip hop e simpatizantes.
Após a realização dos festivais, Naira destaca que consegue perceber a visibilidade de mais mulheres na cena de rap da Grande Vitória. Para ela as coisas também deram uma alavancada, hoje a rapper tem uma página em rede social e já recebe um retorno significativo de quem chega para conhecer seu trabalho. Além disso, Naira lança músicas em outras redes de compartilhamento e mantém atividade intensa na internet. Para 2017, já existem planos de mais lançamentos.
Geralmente as temáticas exploradas por Naira em suas composições, e até poemas – a rapper mantém uma produção igualmente ativa na literatura a partir de zines – deságuam nas vivências da juventude na periferia, da mulher negra e do movimento LGBTT.
“Antes tudo que eu escrevia era deixado na gaveta. Também não escrevia sobre minhas lutas, até porque com o processo do racismo a gente fica com medo de abordar essas questões para não ser julgado como vitimista. Foi com a música que consegui explorar muito melhor isso, porque de fato a música tem isso de passar mensagens de diversos modos, usando metáforas e outros recursos para falar de assuntos e mandar a mensagem”, explica.
O discurso de Naira hoje sobre ser uma mulher negra no rap é muito sobre ter a coragem de abordar as próprias lutas e jogar isso mundo. Ela frisa que para as meninas que estão começando, o principal é se achegar a outras mulheres na mesma situação ou que já estejam inseridas no rap, no intuito de realizar trocas de experiências, possibilitar parcerias e receber um retorno de quem realmente está na mesma posição.
É a partir de apoios e parcerias de outras mulheres do movimento hip hop, principalmente, que a rapper tem driblado a falta de produção musical profissional. Para ela, a carreira está só começando e já com indícios de que pode sim dar muito certo, afinal Naira Valente estampa acima de tudo representatividade, ponto que tem sido imprescindível para destacar as cantoras no cenário atual não só do rap, mas de outros gêneros musicais.
E é com muita certeza que ela afirma que a cada dia tem sido mais perceptível que as mulheres do hip hop é que estão lotando os eventos de rua. “Essa é uma realidade que não tem como contestar. Temos a característica de ter um diálogo mais aproximado com as pessoas; e os promotores de eventos estão começando a perceber isso, nos convocando com mais frequência. É como diz o ditado: vamos sair do anonimato, vocês vão ter que me aturar”, finaliza.
Com muita força de vontade; um visual forte e presente; e um tanto a dizer em suas letras, a rapper tem muitos planos para a carreira profissional. Ligada a muitas lutas sociais – neste final de ano Naira visitou muitas ocupações em escolas públicas levando hip hop e apoiando os secundaristas –, Naira demonstra na postura a seriedade para com a música e segue se inspirando em cantoras e grupos como as capixabas Preta Roots e Melanina Mcs, além de Tássia Reis, já citada no início desta matéria e que não por acaso é alvo de muita inspiração por parte da rapper. O que ratifica cada vez mais o discurso da artista de que rap e representatividade andam lado a lado.
(Abaixo um vídeo de Naira recitando um poema autoral)