Nos tempos em que tocava no Manimal, quando Fábio Carvalho assumia o microfone, começava o “furdunço”, palavra que ele tomou emprestado do mestre Hermógenes Lima da Fonseca, um dos maiores folcloristas do Espírito Santo. A energia ia lá em cima com canções como Solte os cabelos, um congo tradicional capixaba numa releitura com elementos do pop. Devoto de São Benedito e discípulo de Mestre Antônio Rosa, Fábio foi o responsável pelo diálogo do Manimal com aquele ritmo, o que fez do grupo um pioneiro do chamado “rockongo”, estilo depois aprimorado pelo som do Casaca.
Desde sua saída do grupo, passou-se um hiato de dez anos em que Fábio seguiu trabalhando como produtor e agente cultural, sobretudo, em projetos relacionados com o congo e a juventude. Só então ele voltaria aos estúdios para gravar seu disco solo com o nome de Quintal, em que apresenta uma sonoridade única, que batizou como Afro Congo Beat. “O afro vem do negro. O congo se refere não só ao ritmo, mas também aos brincantes de congo, jongo e ticumbi que são chamados de congos. E o beat é das batidas, tanto eletrônicas como dos tambores”.
Assim, ele consolidava o que havia começado a experimentar de maneira que considerava ainda insatisfatória no Manimal. Ao longo do disco, diversos elementos da cultura capixaba vão aparecer, incorporando além do congo, o jongo, ticumbi, caxambu, reis de boi, samba, que aparecem tanto em releituras como em samples com trechos de apresentações, ruídos de procissões, falas de brincantes, fogos de artifício e sons ambientes registrados durante a Festa de São Benedito e São Sebastião em Itaúnas, Conceição da Barra (norte do Estado).
“Minha preocupação é de manter uma fidelidade do ritmo, da tradição, mas incorporando elementos eletrônicos que não descaracterizassem a vertente dessa música. É um disco altamente brasileiro, contemporâneo, com um hibridismo cultural do tambor e casaca com arranjos melódicos, inserindo instrumentos de corda e toques de eletrônico. Tudo feito com muito respeito, pedindo permissão às pessoas que são detentoras e guardiãs dessas tradições”.
A obra foi arredondada com apoio de dois virtuosos músicos, Marcel Dadalto, do Zémaria, ligado ao eletrônico, e Léo Caetano, ex-companheiro de Manimal, que já tinha uma aproximação com a cultura popular.
Uma inspiração importante para a construção de Quintal foi a dupla estadunidense Thieverry Corporation, que mistura o eletrônico com diversos outros sons ligados à música popular, algo que ele observa crescente também na música nacional, tendo como um dos expoentes os pernambucanos Chico Science e Nação Zumbi, ao fundir o maracatu original de sua terra com elementos modernos.
“Quando eu reconheço e identifico minha cultura, eu dialogo melhor com o mundo”, diz. É nesse sentido que Fábio Carvalho procura recusar o rótulo de “artista capixaba”, que se em outro momento foi motivo de orgulho, hoje entende que acaba sendo um pecha que por vezes inferioriza o artista local. “Sou apenas um artista que se coloca como instrumento de propagação para outros horizontes, outros espaços, lugares onde essa cultura não chega, já que muitas vezes nem o próprio capixaba conhece ou valoriza”.
É nesse universo desconhecido por muitos conterrâneos que o Fábio mergulhou aos 19 anos, ao participar pela primeira vez de uma celebração de congo, e desde então não falta um ano sequer como guardião do mastro. É a partir de entender o seu redor, que ele construiu – ou percebeu?- seu Quintal. “Não acho que Primeiro Mundo é Estados Unidos ou Alemanha. Primeiro mundo é o lugar onde você nasce, cresce, seu bairro, cidade, estado, país. Esse é meu primeiro mundo, minha formação e identidade cultural. Meu primeiro mundo é meu quintal.”
O disco Quintal – Afro Congo Beat abre com a força e potência da letra e melodia de Preto Velho, compostas por Douglas Bonella, conectando o ancestral e o moderno:
“Preto aprendeu
Fazer casa de barro e madeira
Moendo quitungo
Farinha de macaxeira
Na favela urbana
Novo quilombo é aqui
No alto morro
Corre sangue de Zumbi”
A reverência aos mestres se faz presente por exemplo na abertura da canção com um sample com ruídos de sons do ticumbi de Mestre Terto, com a participação de Mestre Vitalino, do congo, e especialmente em Barracão, uma singela preciosidade composta pelo sambista Edson Papo Furado, que canta junto com Fábio no disco.
As releituras do congo foram feitas a partir de as cantigas populares que mais tocam o artista, com destaque para uma delicada versão de Rainha o seu Brinco Caiu, além de Sereia, Boi Vaqueiro e uma nova versão de Solte os Cabelos. Na faixa Kalimba pra Vaqueiro, com toque psicodélico, um brincante do Reis de Bois intervém com suas cantigas para pedir licença ao dono da casa visitada para fazer a brincadeira, num som que se funde com um congo incidental do noroeste capixaba e batidas eletrônicas.
Outras canções são fruto de parceria com amigos. Mandinga do Congueiro, composta por Fábio Carvalho e Alexandre Lima nos tempos de Manimal, apresenta uma releitura potente e ao mesmo tempo um tributo ao amigo, há anos em coma. Outra música com o groove nas alturas é Janaína, parceria com Jonathan Silva, que trata de um tema tão em evidência, o empoderamento da mulher negra.
Jardim Camburi, grande sucesso do grupo Zémaria, também aparece no disco. Na contramão do restante das músicas, a canção tem o eletrônico em sua origem e incorpora outros elementos em Quintal. A música rendeu um inédito videoclipe gravado com câmera 360 graus, que será lançado em maio durante suas próximas apresentações no Teatro Glória.
AGENDA CULTURAL
Show Quintal, de Fábio Carvalho
Quando: 11 e 12 de maio
Onde: Teatro Glória
Ingressos: R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia). À venda no Sesc Glória, no Centro de Vitória
Ouça o disco: https://www.youtube.com/watch?v=gPZC3tE8smI