Associação realiza inventário para registrar festa quilombola como patrimônio imaterial e conseguir financiamento
A Associação de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial Cachoeirense realiza um inventário para dar entrada, na Secretaria Estadual de Cultura (Secult), no pedido de reconhecimento da festa Raiar da Liberdade como patrimônio imaterial capixaba. A ideia é que, a partir desse reconhecimento, o evento possa contar com recurso estadual para sua realização, que acontece anualmente, no dia 13 de maio, na comunidade quilombola de Monte Alegre, em Cachoeiro de Itapemirim, no sul do Espírito Santo.
O membro da Associação, Genildo Coelho, explica que não há uma lei que obrigue o governo do Estado a financiar a festa a partir da obtenção do registro, mas que trata-se de um passo importante para isso, uma vez que é um reconhecimento de que o Raiar da Liberdade vai para além da comunidade de Monte Alegre, sendo relevante também para a história e cultura do Espírito Santo. “Queremos o reconhecimento para brigar depois pelo financiamento, para ficarmos em pé de igualdade com cultura erudita. O Estado deve nos financiar assim como faz com essa cultura”, defende.
Genildo destaca que, para a cultura erudita, são construídos teatros. “Quanto se está gastando com a reforma do Teatro Carlos Gomes? Não estou dizendo que não se deve investir no teatro, mas que não se deve esquecer da cultura que não é de mercado, que nem ao menos precisa de valores altos. Um Carlos Gomes financiaria todas as festas tradicionais, o valor é muito pequeno”, diz.
Ele afirma que, no Raiar da Liberdade, é aplicado anualmente o montante de R$ 20 mil, que, apesar de ser pequeno para a grandiosidade da festa, gera renda para os moradores de Monte Alegre. O dinheiro é utilizado para pagar o transporte dos grupos folclóricos que se apresentam no evento, pagar as cozinheiras que fazem a feijoada e comprar os ingredientes, já que muitos deles são produzidos na própria comunidade. Além disso, pessoas de diversos lugares, que participam da festa, consomem o artesanato feito na região.
Genildo prossegue dizendo que “nossa cultura é a cultura do chão, da raiz, do cotidiano, que vai se acabando pela dificuldade de reconhecimento e financiamento”, ao contrário, por exemplo, do cinema, “que tem um lobby maior, mais visibilidade, e se financia”.
Para ele, o reconhecimento do Raiar da Liberdade como patrimônio imaterial pode ser o pontapé inicial para que aconteça o mesmo com outras festas tradicionais do Espírito Santo, como a do Caboclo Bernardo, em Linhares, no norte; e a Folia de Reis de Muqui, no sul; que, como aponta Genildo, assim como o evento da comunidade quilombola de Monte Alegre, ficam dependentes de recursos de editais todo ano para sua realização.
Inclusive, devido aos atrasos dos editais de 2021, que foram abertos somente no final do ano, com inscrições até meados de janeiro de 2022, havendo, depois, prorrogação até dois de fevereiro, além de os resultados previstos para serem divulgados em 22 de abril ainda não terem sido publicizados, o Raiar da Liberdade aconteceu nessa sexta-feira (13) em proporção muito menor. Este ano, a tradicional feijoada para 1 mil pessoas foi reduzida para 80 e as apresentações culturais ficaram restritas ao Caxambu Santa Cruz, da própria comunidade, não contando com a presença de grupos folclóricos de outros municípios capixabas.
O inventário para dar entrada no registro de patrimônio imaterial é feito com recursos do Edital 12 da Secult, de Seleção de Projetos e Concessão de Prêmio para Valorização dos Patrimônios Imateriais Reconhecidos e Registrados no Estado do Espírito Santo, de 2020. No momento, são feitos registros fotográficos e audiovisuais, além de um texto técnico para justificar o pedido de registro. Também têm sido reunidos e organizados materiais produzidos nas duas últimas décadas, como livros, documentários e registros de exposições.
Alguns deles são os o livro e o documentário Todas as Faces de Maria, sobre Maria Laurinda Adão, liderança da comunidade quilombola de Monte Alegre. Entre as exposições está uma de mesmo nome dessas duas obras, que foi realizada no Museu Capixaba do Negro (Mucane), em Vitória; percorreu outros municípios capixabas; ocorreu em Santiago, no Chile; e teve pré-lançamento em uma universidade de Moçambique, na África.
Raiar da Liberdade
Cerca de 15 grupos folclóricos se apresentam anualmente no Raiar da Liberdade, em uma relação chamada de “compadrio”, pois eles marcam presença na festa uns dos outros, se visitam. Os grupos não se restringem aos de Cachoeiro de Itapemirim, abarcando também outros municípios do sul capixaba, como Muqui, Itapemirim, Presidente Kennedy, Alegre, Jerônimo Monteiro e Atílio Vivácqua.
Genildo, que é pesquisador da área do patrimônio imaterial, afirma que o Raiar da Liberdade é uma festa que lembra o processo de luta do povo negro. “A gente comemora a vitória de uma revolução que começou no chão da senzala, é uma festa que acontece em uma comunidade onde foi formado um quilombo, organizado por negros que fugiram de fazendas da região”, conta.
Ele narra que, em 13 de maio de 1888, a notícia da abolição foi recebida via telégrafo, comunicada pelos fazendeiros aos escravos, que no mesmo dia foram para a praça da cidade, onde começaram a fazer seus batuques em frente à Câmara Municipal. O presidente da Casa de Leis tentou se apropriar da comemoração, tirar o protagonismo dos negros, distribuindo comida e bebida. Dias depois, sem emprego, comida, moradia e outros direitos, os negros voltaram para as fazendas, permanecendo no regime de escravidão.
A festa, então, passou a ser comemorada anualmente nas comunidades da região, mas hoje acontece somente em Monte Alegre e Vargem Alegre, também em Cachoeiro.
Em Monte Alegre, a comemoração é liderada por Maria Laurinda Adão desde 1961, quando ela tinha 18 anos. Trata-se de um compromisso que passa de geração em geração. Seu trisavô, Negro Adão, que fundou a comunidade quilombola, foi quem deu prosseguimento à festa, ainda no Século XIX, passando depois para os bisavós, avós e pais de Maria Laurinda, que destaca-se nacionalmente e internacionalmente como defensora da cultura negra e quilombola.
Além de ativista, Maria Laurinda é mestra de Caxambu, parteira, coveira e líder espiritual. Ela recebeu em 2008 o título de “Patrimônio Cultural do Brasil”, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Sua história também foi eternizada no documentário Todas as faces de Maria, em 2011.