Na época dos protestos, que ecoaram no Brasil em 2013, Ana Clara Bianchi era estudante finalista do curso de Publicidade e Propaganda. Ao presenciar e viver essa fase política em que pessoas foram às ruas reivindicar seus direitos, ela observou que ao fim de tudo, marcas foram deixadas nos muros das cidades. “Os protestos foram o estopim para eu enxergar o potencial comunicador da cidade, porque meses após as passeatas, os grafites ainda estavam lá. As reivindicações estavam estampadas nos muros. E eu pensava: que impacto isso provoca em quem passa por aqui todos os dias?”, conta ela.
O resultado da curiosidade acabou por se tornar tema da monografia da estudante. Posteriormente ela deu continuidade à pesquisa e, apresentou novos resultados no I Seminário de Pesquisa em Comunicação, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Atualmente, Ana Clara inicia uma nova etapa da pesquisa como discente do programa de mestrado em Comunicação e Territorialidades da Universidade e, o estudo sobre o grafite urbano produzido na Grande Vitória continua a gerar questionamentos, como conta ela. “O grafite mostra não só os sujeitos invisíveis como as contradições visíveis. Ele constrói a cidade à medida que se vale dela como palco e de suas contradições. É claro que nesse processo de construção da cidade entram centenas de outras variáveis, porém não se pode negar o papel da arte pública, especificamente o grafite”.
Foram cinco meses de pesquisa em que Ana Clara percorreu os principais trajetos do protesto contra o aumento da tarifa para registrar os grafites. Foram estudadas as rotas que saíram da Ufes em direção a Reta da Penha, em Vitória, seguindo até o pedágio da Terceira Ponte e, de lá, até a Assembleia Legislativa do Espírito Santos (ALES). Os terminais rodoviários de Carapina e Vila Velha também foram inclusos, totalizando três municípios estudados: Vitória, Serra e Vila Velha.
Abaixo o Século Diário publica um resumo da pesquisa que a estudante produziu exclusivamente para o jornal.
A cor dessa cidade somos nós
Pesquisa de Ana Clara Bianchi
As cidades, como escreveu o filósofo francês Félix Guattari (1992), são produtoras de subjetividades individuais e coletivas, porque é acima de tudo uma produção humana, ou nas palavras de Lévi-Strauss, “a coisa humana por excelência”. Isso quer dizer que a composição urbana (como é ou deixa de ser) participa da experiência humana na criação de sentido. É exatamente esse “fator humano” que produz a cidade que somos hoje e que podemos classificá-la pautada nos adjetivos “diversa, profunda e ambígua”.
Quando afirmamos que a composição urbana tem papel fundamental na criação de sentidos, sentimentos e sensações a respeito da cidade em que vivemos, afirmamos que a cidade não é somente asfalto, concreto e luzes. Ela é tudo isso também, mas principalmente é cada uma das mulheres e homens que transitam sobre ela cotidianamente. É o cotidiano, aliás, nos revela as marcas, paisagens e reapropriações que o espaço urbano sofre através da ação humana. Afinal, o que isso diz sobre nós? Como a ação do homem sobre a cidade ajuda a definir que sociedade somos, quais os valores carregamos e qual história contamos?
Parece ser um consenso entre os grandes estudiosos da geografia urbana, como Milton Santos, que o lugar, a paisagem urbana não é um fato. O lugar como o conhecemos hoje não é algo imutável e não foi concebido como o conhecemos hoje. Em outras palavras, a construção da paisagem urbana é um processo e uma vez que lançamos nossa ação para começarmos a estudá-lo, podemos então começar a entender um pouco mais a sociedade que o gerou.
Entendendo o espaço da urbe como em transformação pela ação humana é possível relacionar a cidade com um grande mural semântico de forma a podermos entender como e o que o espaço urbano nos comunica.
O espaço urbano é, sobretudo, um “espaço polifônico” carregados de múltiplos sentidos, para usar as palavras do filósofo italiano Canevacci. Ora, não se pode dizer que o outdoor, na Avenida Nossa Senhora da Penha, capital capixaba, está embebido dos mesmos valores que a grafite logo adiante, na mesma avenida.
A lógica do outdoor versus a lógica da pichação – e diversas outras – coexistem no mesmo espaço, sendo essa disputa simbólica não apenas pelo território, mas também, pela disputa de ideias capaz de mobilizar e engendrar formas de viver e se colocar no mundo.
O grafite, como arte urbana, assume o papel questionador de consensos estabelecidos e de tensões sociais. Nesse sentido, o grafite se vale dos aspectos mais singulares da comunicação na cidade: a sua polifonia – a possibilidade de se fazer ouvir e ser visto. O artivismo do grafite, isto é, o embate que se dá por meio da arte, se coloca em oposição a todos os agenciamentos invisíveis na urbe, desde a lógica capitalista do outdoor (não tão invisível), até as questões acerca da ocupação do espaço e os melindres do consumo.
As questões que o grafite traz à tona podem provocar no cidadão mais observador a dúvida de qual cidade produzimos e ajudamos a produzir. Nossa cidade produz valores coletivos e inclusivos? O que os muros, asfalto, prédios, construções e, sobretudo, o que as pessoas que aqui transitam nos dizem? Em tempos de certeza absoluta, a dúvida é dádiva. A partir do momento que nos sentimos atingidos pelo o que nos diz as linhas e cores do grafite, podemos nos dar a oportunidade de repensar o nosso papel como indivíduo, e assim, a cidade e sociedade que somos. São os tempos de incerteza que nos pomos a questionar pontos essenciais como, afinal de contas, a quem servimos?