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O Mestre e a Margarida’ de Mikhail Bulgákov, um clássico do romance russo

A ESCRITA DO ROMANCE

Mikhail Bulgákov (15 de maio de 1891, Kiev – 10 de março de 1940, Moscou) foi um escritor russo da primeira metade do século XX. Ele é considerado um dos maiores escritores russos modernos, e também atuou como dramaturgo. Um de seus trabalhos mais conhecidos é o romance fantástico O mestre e Margarida, que se trata de uma narrativa revolucionária, na qual se conta a vinda de uma visita estranha na Moscou comunista dos anos 1930, e que era nada mais que a figura do diabo. O mestre e Margarida foi publicado postumamente em 1966 e 1967, e outra obra que podemos destacar de Bulgákov é a novela satírica Coração de Cão, que foi feita em 1925, mas só  foi publicada na Rússia em 1987, obra na qual Bulgákov critica o sistema social comunista.

Sua obra mais famosa, O mestre e Margarida, é um trabalho de grandes proporções, um romance monumental, que demorou mais de doze anos, entre 1928 e 1940, para ser concluído. Em 1939, já cego, Bulgákov teve que contar com a ajuda de sua mulher Yelena, na tarefa de conclusão do romance, a quem ditou os capítulos finais. O mestre e Margarida foi publicado pela primeira vez em 1966.

O apartamento do escritor, em Moscou, e no qual se passa parte da trama de O mestre e Margarida virou local de culto. No final da década de 2000 foi transformado no Museu Bulgákov. Tal lugar que ganhou um dos aspectos fantásticos principais do romance, que na trama era uma espécie de lugar maldito, lugar no qual todos que iam morar lá, logo depois desapareciam misteriosamente.

O mestre e Margarida é um romance que tem muitas tramas, que são centradas numa visita do diabo a Moscou no início da década de 1920, em plena era stalinista. Bulgákov começou a escrever o romance em 1928. No entanto, em vista da censura, este primeiro manuscrito foi destruído em março de 1930 pelo autor, que o queimou em um forno, quando soube que outro livro seu, de conteúdo cabalístico, havia sido banido. O trabalho foi retomado em 1931, e em 1935 Bulgákov passou num Festival de Primavera, o que pode ter contribuído para a sua ideia do baile que tem no romance, que era uma festa de satanás para seus convidados.

A segunda versão, por conseguinte, foi terminada em 1936, e nesta altura, todas as tramas do romance já estavam bem resolvidas, o romance já estava então, de fato, pronto. Embora ainda tenha tido um terceiro rascunho que Bulgákov concluiu em 1937. Por fim, o escritor só parou de trabalhar no romance, já na sua quarta versão, a qual concluiu em 1940, quatro semanas antes de sua morte. Sendo o romance completado por sua esposa em 1940-1941.

PUBLICAÇÃO

No histórico de publicações de O mestre e Margarida temos um caminho difícil e bastante acidentado, uma vez que o contexto político soviético era bem complicado em matéria de liberdade de expressão e pensamento, tendo o romance uma versão censurada (12% do texto fora eliminado e muitas outras partes foram modificadas) que foi publicada na revista Moscou (n 11, 1966, e n1, 1967). A versão integral, por sua vez, teve de ser distribuída em cópias clandestinas, publicada em samizdat. A primeira versão integral, por fim, foi publicada em Frankfurt, em 1973, pela editora Posev.

A primeira versão integral que foi publicada na Rússia, por sua vez, foi realizada pela revista Khudojestvyennaya Lityeratura em 1973. E esta era uma versão baseada no texto pronto em 1940. Em 1989, por conseguinte, a especialista Lidiya Yanovskaya compôs uma nova versão oficial, com base em manuscritos do autor. E esta pode ser, seguramente, uma das versões finais e agora oficiais do romance de Bulgákov.

Algumas das tramas do livro já haviam aparecido em contos de Bulgákov. O Museu Bulgákov, que tem muito deste romance como inspiração, inclusive sendo o apartamento maldito que aparece no romance, e que foi moradia do escritor na vida real, na rua Sadôvaia, em Moscou, teve um fato desagradável, pois foi vandalizado em 22 de dezembro de 2006, por fanáticos religiosos que alegavam ser O mestre e Margarida um romance satanista.

A NARRATIVA DO ROMANCE

No romance, a Moscou de 1929 é visitada pelo diabo, com o nome de Woland. Em seu séquito estão Korôviev ou Fagote, o enorme gato negro Bieguemot ou Behemot (em russo, significa tanto a criatura bíblica quanto hipopótamo), Azazello, Abadon e a bruxa Hella, que vivia nua.

A epígrafe do romance é tirada do Fausto de Goethe, e que certamente inspirou a criação do personagem feminino de nome Margarida, a qual em Fausto encanta o próprio com a sua pureza, e Fausto, também com esta epígrafe, é uma das inspirações explícitas do romance, epígrafe que diz: “-…mas, quem é você, afinal? – Sou a parte da força que quer sempre o mal, mas sempre faz o bem” (Fausto, Goethe).

O romance, em plena Moscou stalinista, tem como um dos personagens principais, o “camarada” apelidado Mestre, o qual escreveu um romance sobre Pôncio Pilatos, narrando com detalhes de um romancista realista russo o calvário de Yeshua ha-Notzri (Jesus de Nazaré, em hebraico), até sua condenação de ser pendurado na cruz e morto, com a tentativa do promotor de Yerushalaim (Jerusalém), o próprio Pilatos, de convencer Roma que aquele homem messiânico mereceria um salvo-conduto de Páscoa. E com tal Yeshua sendo tomado muitas vezes como um pobre diabo ou apenas um louco inofensivo. Quando a história é levada para a aprovação oficial, ela é massacrada pela crítica adepta do regime. “O que o camarada está pensando? Deu para escrever sobre crendices agora?”, provavelmente comentam os membros da Massolit, espécie de secretaria responsável pela publicação de livros no regime soviético. Com a negativa, o Mestre decide queimar seu romance na lareira de casa. Mas temos a fala do diabo, que é uma das citações famosas do romance O mestre e Margarida: “manuscritos não ardem”.

CONTEXTO POLÍTICO

O mestre e Margarida, iniciado em 1928, que foi finalizado doze anos depois, semanas antes da morte do escritor, tem na sua escrita também a narrativa de uma verdadeira epopeia, pois, para terminar o livro, Bulgákov apareceria como um opositor do regime, apesar de até ser apreciado por Stálin como escritor, pois Bulgákov, durante a revolução de 1917, lutara pelo exército branco, contrarrevolucionário, o que representava uma condenação à categoria de escritor maldito depois que os vermelhos revolucionários tomaram o poder. Portanto, o caso de Bulgákov era o extremo oposto de Gorki, o romancista dos bolcheviques. Pois Bulgákov, por seu turno, não se furtava de apontar as contradições que enxergava na sociedade russa, e satirizar tal contexto político e social, mas isto revestido de uma tendência para a literatura fantástica – pois assim como fizera Gógol durante o século XIX, tendo o regime tzarista como alvo –, mesmo tendo pela frente um elenco de problemas para conseguir publicar as suas obras, o que refletiu diretamente na verdadeira peripécia que foi ver O mestre e Margarida publicado, o que só se deu já depois da morte de Bulgákov.

OS PERSONAGENS

Com essa literatura fantástica, potencializada pelo sarcasmo, Bulgákov tornou viável uma visita do diabo e sua comitiva à ortodoxa Moscou do final da década de 20, onde deixou marcas que jamais seriam apagadas, nem mesmo pela censura oficial. O séquito satânico é composto por Behemoth, um gato preto que anda sobre duas patas, adora vodca e espetáculos exagerados; Korôviev, o ardiloso relações públicas do grupo; Azazello, um ruivo atarracado de ombros largos, caninos à mostra e feiúra indescritível; e Hella, “uma jovem totalmente nua, ruiva e com ardentes olhos fosforescentes”. O enredo traz Woland, que é ninguém menos que o Diabo, visitando Moscou. Com ele, andavam Korôviev (ou Faggot), Behemot, que é um gato gigante que fala e tem uma personalidade um tanto forte, Azazell, Abadon e Hella, uma bruxa. Essa trupe visita vários personagens e lugares na Rússia, deixando um rastro de bagunça e mistério.

A presença de Woland (o diabo) no romance está ligada a acontecimentos inexplicáveis e tramas que levam alguns dos personagens, como o poeta Bezdômni, à loucura, e a atuação de Woland e sua trupe no Teatro de Variedades aparece, ao longo da trama, como um número de hipnotismo, o qual atinge uma parcela da população de Moscou, portanto, temos os temas da loucura e do hipnotismo, e isto relacionados a um Woland que surge no romance tanto como o diabo como um mago negro. Há uma ideia de misticismo que ronda o romance, o que se pode ver na transformação de Margarida em bruxa na segunda parte do romance, que é uma de suas passagens mais fantásticas, a qual julgo até exagerada, mas que fazem parte da ambientação surreal do romance, que naturalmente tem trechos hiperbólicos de pura ruptura com o realismo comum, pois as descrições de Bulgákov, quando se trata do aspecto fantástico do romance, não poupa o leitor de solavancos, como no voo de Margarida com sua figura mágica pelos céus da Rússia.

A CRÍTICA DE BULGÁKOV E A TRAMA DO ROMANCE

A obra traz, na sua trama, de forma alegórica, também críticas acerbas ao governo stalinista. Já que Bulgákov chegou a queimar o primeiro manuscrito, com medo da censura, mas não retirou as críticas – subjetivas ou não. Durante toda a história, existe no romance um humor negro e reflexões que, mesmo sendo debitadas simbolicamente no contexto da Rússia soviética de Stálin, ganham caráter atemporais, são críticas universais de um romance que entrou para a História da literatura russa e mundial, pois tais críticas atravessam a contemporaneidade ainda relevantes.

Além de Woland, o Diabo, e sua trupe causando transtornos em Moscou e pela Rússia afora, o romance apresenta uma trama paralela, que é a de Jesus Cristo, que na história é chamado de Jesua (ou Yeshua) Ha-Nozri e Pôncio Pilatos. Esse núcleo surge do romance citado no livro, que é o escrito pelo principal personagem, que é o Mestre. O Mestre se torna o outro núcleo, que conta a sua história (dentro de um hospício) a Bezdômni (que aparece no início do livro, sendo vítima de Woland e sua gangue). Margarida (ou Margarita), sua amante, também faz parte desse núcleo, se tornando parte principal na trama, já na segunda parte do livro, junto com o romance sobre Jesus e Pilatos.

OS ESTILOS DO ROMANCE

As duas partes da narrativa são revezadas por capítulos do romance escrito pelo Mestre, o que tem como efeito um contraste de estilo no romance, o que é uma técnica de Bulgákov de alcance muito amplo, pois aqui o escritor comprova a sua plena consciência quando faz literatura fantástica e quando faz relato realista, pois enquanto a prosa de Bulgákov é mais solta e interativa, sempre convocando o leitor, o romance do mestre apresenta o formato mais tradicional, com uma descrição fiel da Jerusalém bíblica – o que era reflexo de um trabalho de pesquisa extenso de Bulgákov –, com diálogos austeros e profundos, completamente diversos da trama fantástica que apresenta um estilo mais trivial e livre, o qual domina o resto do romance.

Com uma trama que apresenta muitas vezes um caráter que pode ser interpretado como autobiográfico, O mestre e Margarida também pode ser entendido como um romance que apresenta reflexões filosóficas e humanas, mesmo com seu conteúdo predominantemente fantástico, o que passa por questões que envolvem temas como a perseverança e a bondade, o que vemos nos diálogos mais austeros entre Jesus e Pilatos, por exemplo. E em momentos distintos da obra, Jesus e o diabo expressam, ironicamente, uma mesma verdade do romance: não existe Bem ou Mal absolutos; e uma ideia que é apresentada por Woland no romance, que é a de que a covardia é a pior das fraquezas humanas.

A segunda parte do romance apresenta caráter bem mais denso que a primeira parte, pois esta ainda era uma narrativa divertida, sendo marcada pelas críticas, humor e histórias insanas e macabras das peripécias da comitiva de Woland, o diabo. A segunda, então, retrata o livro do Mestre sobre Jesus e Pilatos, que tem diálogos mais estruturados na  forma tradicional do romance clássico e realista.

AS INTERPRETAÇÕES DO ROMANCE

Por sua vez, há diversas maneiras de interpretação do romance, pois por possuir temática em que domina o fantástico, a linguagem muitas vezes alegórica revela ao bom leitor tanto uma comédia de humor negro, como uma profunda alegoria místico-religiosa, e que é também uma sátira contundente da Rússia soviética e stalinista, mas que, a ver o episódio do número de Woland e sua trupe no Teatro de Variedades, por exemplo, é também uma denúncia da superficialidade da sociedade russa da época, e que tem ecos até hoje, se falarmos, por exemplo, da ganância, da mediocridade, da hipocrisia e da ignorância que ainda persistem em nosso tempo, sendo O mestre e Margarida, ainda um romance atualíssimo e relevante.

E mesmo com crítica à Rússia soviética, não temos no romance a ideia de nostalgia pelos tempos da velha Rússia tzarista, que por sinal só é mencionada uma única vez, pelo próprio diabo, ou Woland, o mago negro. E outra interpretação possível é ver o romance como de formação, envolvendo Ivan Bezdômni que se torna, de poeta medíocre, a discípulo do Mestre. E Woland não é visto em aberta oposição a Deus, mas como o ser que pune a mesquinhez e a covardia (é frequentemente dito no livro que a covardia é a pior das fraquezas).

E a mais famosa citação do livro é “os manuscritos não queimam”, é uma referência à censura da União Soviética dos anos trinta, e tem cunho autobiográfico para Bulgákov, pois os diários do escritor foram apreendidos e depois devolvidos, ocasião em que o romancista os queimou. Anos depois, soube-se que, enquanto apreendidos, eles haviam sido copiados. Além disso, os primeiros manuscritos de O mestre e Margarida foram queimados por medo dessa censura. Ou seja, parece bem difícil apagar a História, ainda bem.

AS DUAS TRAMAS DO ROMANCE E SUAS INFLUÊNCIAS

Bulgákov usa estilos diferentes em cada trecho do livro. Os capítulos que se passam em Moscou têm um caráter de vivacidade, humor negro, e diversão em tom de farsa, enquanto os capítulos de Jerusalém, que é o romance citado do Mestre na trama, são de estilo hiper-realista e tradicional. Podemos ver que o tom do romance muda do jargão dos burocratas soviéticos, rapidamente para o sarcasmo, o inexpressivo, o lírico, conforme a cena, quando falamos sobretudo dos solavancos apresentados pela comitiva de Woland. Às vezes o narrador pode ser onisciente, e outras vezes aparece colocando o leitor como parte da cena. Diversos personagens são colocados, durante o romance, no centro da cena, o que pode ser interpretado como uma influência direta do grande romancista russo Tolstói. E o romance pode ser caracterizado sobretudo como uma narrativa de horror macabro e farsa de humor negro.

Por fim, o romance é fortemente influenciado pelo Fausto, tanto o de Goethe como pela ópera de Charles Gounod. E Gógol e Tolstói influenciaram muito o estilo. E Woland ou Voland é uma variante alemã para diabo, utilizada nos originais do Fausto de Goethe. Abaddon é um demônio cujo nome significa destruição. Azazello vem de Azazel, nome hebraico que significa “a força de Deus”. Vários mitos o colocam como senhor das cabras. Azazel foi traduzido como “bode expiatório” na Bíblia do Rei James. E Bieguemot é um mostro bíblico que muitos identificam com o hipopótamo.

INFLUÊNCIA DO ROMANCE NA CULTURA POP

Apesar de sua história acidentada, envolvendo dificuldade de publicação e censura, o romance O mestre e Margarida foi tão importante, que até influenciou a cultura pop, pois tem um poder que não tem apenas como fato o de ser considerado por críticos literários um dos melhores romances do século XX, mas que transpôs fronteiras como fonte de inspiração para a música Sympathy for the Devil, da banda inglesa Rolling Stones, a qual foi inspirada no romance e no personagem de Woland, assim como para a confecção de os Versos Satânicos, que levaram o Aiatolá Khomeini a proferir uma ordem de execução contra o escritor Salman Rushdie; Pilates, canção do grupo americano Pearl Jam, também tendo como inspiração o romance, como também Love and Destroy, da banda Franz Ferdinand, música que teria como base o baile de despedida do diabo em Moscou.  

 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

 

Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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