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O Nome das Coisas em Sophia de Mello Breyner Andresen

Um canto que denuncia o torpor de uma dimensão trevosa em que se perde o conteúdo humano

No livro de Sophia de Mello Breyner de 1977, O Nome das Coisas, há uma bela descrição de paisagem no poema Cíclades, no qual aparece em metáfora o poeta Fernando Pessoa, meio que colocando o tema do exílio, e o poeta que aparece apartado, evocando uma luminosidade que se dispersa numa luta incessante entre luz e trevas, vida e morte, e uma inflexão filosófica que prorrompe entre o esforço de tensão entre o ser e o não ser, algo que nos remete àquelas especulações pré-socráticas do início de uma reflexão pós-mitológica.

A estrutura do livro se dá em ordem cronológica, com a sua primeira parte com poemas que compõem o trabalho realizado por Sophia entre 1972 e 1973, e seus escritos que envolvem a sua produção de 1974 e 1975, sendo a segunda parte, e por fim, uma terceira parte, de 1976, finalizado um trabalho condensado e sintetizado que cobre a produção poética de Sophia durante cinco anos.

O livro tem grande lastro no tema da Revolução dos Cravos, a Revolução de 25 de abril, contra o regime salazarista, em 1974, e que derrubou este longo regime que governou Portugal. Tal revolução estabeleceu liberdades democráticas que tinham sido ceifadas no Salazarismo, e que agora, em 1974, Portugal teria novamente a promoção de transformações sociais.

Houve um golpe militar em 1926, em que se estabeleceu uma ditadura em Portugal. Antônio de Oliveira Salazar se torna primeiro-ministro das finanças e virtual ditador em 1932, em que cria um regime baseado no fascismo italiano. Neste período salazarista, as liberdades de reunião, de organização e de expressão foram suprimidas com a então Constituição de 1933.

Agora, em 1974, com o advento da Revolução dos Cravos, que libertou Portugal do Salazarismo, Sophia coloca seus poemas dentro de um serviço histórico em forma de arte poética, com metáforas realizando uma leitura histórica estilizada, como uma forma artística que afirma a si mesma, mas que tem em seu fundo temático o fenômeno histórico português. Aqui se dá, por fim, uma confluência entre a consciência política e a temática grega.

Sophia é animada por uma ideologia que remonta a um Humanismo cristão, e tem no centro de sua poesia toda a herança temática da civilização helênica, todas as lições gregas que envolvem certa sabedoria, e uma reflexão filosófica sofisticada, que estão presentes e sendo constantemente discutidas na poesia produzida pela poeta.

Os valores perdidos que vinham desta civilização helênica são remontados e revividos na poesia de Sophia, com valores caros como a justiça, a harmonia e a verdade. Tudo o que possa atingir a dignidade humana é combatido nesta poesia que se eleva diante da tragédia, com um canto que denuncia o torpor de uma dimensão trevosa em que se perde o conteúdo humano, daí o caráter humanista da poesia de Sophia.

DE O NOME DAS COISAS

CÍCLADES: (evocando Fernando Pessoa) : O poema sobre o poeta que atingiu o clímax da poesia de Portugal e do mundo, se torna aqui, mais uma vez, a homenagem de Sophia : “A claridade frontal do lugar impõem-me a tua presença/O teu nome emerge como se aqui/O negativo que foste de ti se revelasse”. Sophia enumera as luminosidades, prodígios e a desdita poética de um sentimento de exílio, no que temos : “Viveste no avesso/Viajante incessante do inverso/Isento de ti próprio/Viúvo de ti próprio/Em Lisboa cenário da vida”. A cena portuguesa, e esta vida de uma cultura, no caso de Pessoa, este sentido de não-pertencimento revivido e escrito aqui neste poema : “Esquartejado pelas fúrias do não-vivido/À margem de ti dos outros e da vida/Mantiveste em dia os teus cadernos todos/Com meticulosa exactidão desenhaste os mapas/Das múltiplas navegações da tua ausência”. O grande mapa de Pessoa, sua obra, seus escritos de uma busca perdida : “Nasceste depois/E alguém gastara em si toda a verdade”. À frente de seu tempo, Pessoa nasceu depois, este bardo aponta para um futuro que, em seu presente, se encontra oculto, no que temos : “Para que não sendo ninguém dissesses tudo/Viajavas no avesso no inverso no adverso”. Tudo foi dito na poesia de Pessoa, seu fardo descarregado fez o trajeto de uma obra completa, um giro pleno de suas faculdades poéticas, no que vem : “Invoco-te como se chegasses neste barco/E poisasses os teus pés nas ilhas” (…) “Chamo por ti – reúno os destroços as ruínas os pedaços – Porque o mundo estalou como pedreira”. Seu canto é ausência, a poesia não pertence ao lugar real em que o poeta habita, sua evanescência aponta para um ideal que pode apenas se refugiar numa inflexão espiritual, sem a utilidade de um mundo concreto, e qual um Ulisses, seu mundo se torna povoado de mitos : “Porém aqui as deusas cor de trigo/Erguem a longa harpa dos seus dedos/E encantam o sol azul onde te invoco/Onde invoco a palavra impessoal da tua ausência” (…) “Pudesse o instante da festa romper o teu luto/Ó viúvo de ti mesmo/E que ser e estar coincidissem/No um da boda” (…) “Como se o teu navio te esperasse em Thasos/Como se Penélope/Nos seus quartos altos/Entre seus cabelos te fiasse”.

O PALÁCIO: Aqui se descreve o palácio e a lenda do Minotauro, mais uma vez este canto de Sophia evoca este ente trágico cretense, no que temos : “Era um dos palácios do Minotauro/- O da minha infância para mim o primeiro -/Tinha sido construído no século passado (e pintado a vermelho)”. A infância de Sophia pinta novamente esta vida minoica dos confins de um mundo, ainda, completamente mitológico, no que temos : “Estátuas escadas veludo granito/Tílias o cercavam de música e murmúrio/Paixões e traições o inchavam de grito” (…) “Era um dos palácios do Minotauro/O da minha infância – para mim o vermelho”. Sua infância reluzia do mito e o brilho de prata que tilinta noite e dia : “Ali a magia como fogo ardia de Março a Fevereiro/A prata brilhava o vidro luzia/Tudo tilintava tudo estremecia/De noite e de dia”. A infância da poeta, ainda dominada pelo não-saber, tateando o mundo novo da vida, é qual a indiferença primeva de Kaos, uma tabula rasa onde tudo acabara de nascer, um tumulto cego que ainda iria adquirir uma visão : “Era um dos palácios do Minotauro/- O da minha infância para mim o primeiro -/Ali o tumulto cego confundia/O escuro da noite e o brilho do dia/Ali era a fúria o clamor o não-dito/Ali o confuso onde tudo irrompia/Ali era o Kaos onde tudo nascia”.

LAGOS I: (Un jour à Lagos ouverte sur la mer comme L`autre Lagos (Senghor)) : O filósofo africano de grande amplitude reflexiva é aqui homenageado, no que segue : “Em Lagos/Virada para o mar como a outra Lagos/Muitas vezes penso em Leopoldo Sedar Senghor :/A precisa limpidez de Lagos onde a limpeza/É uma arte poética e uma forma de honestidade/Acorda em mim a nostalgia de um projecto/Racional limpo e poético”. Senghor tem a clareza racional e a plenitude dos sentimentos num mesmo prisma, seu brilho combate o arbítrio, e sua vida em Lagos reflete o conflito de uma alma grande e nobre, no que temos : “Os ditadores – é sabido – não olham para os mapas/Suas excursões desmesuradas fundam-se em confusões/O seu ditado vai deixando jovens corpos mortos pelos caminhos”. As ditaduras só praticam a coleção de corpos, o talento tanatológico mata o pensamento e o senso crítico e de justiça, no que temos: “Na precisa claridade de Lagos é-me mais difícil/Aceitar o confuso o disforme a ocultação”. E a clareza de Lagos remete à poeta Sophia este conflito com a escuridão e os descaminhos da insciência, no que vem : “Na nitidez de Lagos onde é visível/Tem o recorte simples e claro de um projecto/O meu amor da geometria e do concreto/Rejeita o balofo oco da degradação/Na luz de Lagos matinal e aberta/Na praça quadrada tão concisa e grega/Na brancura da cal tão veemente e directa/O meu país se invoca e se projecta” (Lagos, 20 de Abril de 1974). A poeta pensa em um mundo esclarecido, o poema, aqui, se volta para esta ideia e, digamos, cosmovisão.

NESTA HORA: O poema traça o caminho da verdade, indômita, implacável com seus inimigos, e se impõe, como fato consumado, no que temos : “Nesta hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade toda/Mesmo aquela que é impopular neste dia em que se/invoca o povo/Pois é preciso que o povo regresse do seu longo exílio/E lhe seja proposta uma verdade inteira e não meia verdade”. O combate à demagogia que vem desde a fundação democrática, sendo o demagogo a decadência de uma democracia infantil e doente, temos : “O demagogo diz da verdade a metade/E o resto joga com habilidade/Porque pensa que o povo só pensa metade/Porque pensa que o povo não percebe nem sabe”. A manipulação do povo pode se render à bestialidade destes demagogos, a meia verdade, ou a escamoteação, de uma fala dominada por sofismas falaciosos, e que funda este discurso hipócrita, que pode sepultar a verdade nesta sanha mistificadora, no que temos : “A verdade não é uma especialidade/Para especializados clérigos letrados/Não basta gritar povo é preciso expor”. A verdade, para ser restituída, não será pela via do discurso, no entanto, pois o seu poder supremo reside na sua demonstração, o mundo real e concreto precisa ser sacudido, e a verdade, neste abalo sísmico, restitui o seu próprio mundo, o poema de Sophia assim bem o sabe, e o mundo da verdade é a iluminação que fala diretamente, sem intermediários, no que vem : “Como quem parte do sol do mar do ar/Como quem parte da terra onde os homens estão/Para construir o canto do terrestre/-Sob o ausente olhar silente de atenção” (…) “Para construir a festa do terrestre/Na nudez de alegria que nos veste”.

COM FÚRIA E RAIVA: Aqui continua o périplo da poeta Sophia contra os demagogos, no que temos : “Com fúria e raiva acuso o demagogo/E o seu capitalismo das palavras”. A palavra e seu dom são conspurcados por esta falsa arte da prestidigitação, no que segue : “Pois é preciso saber que a palavra é sagrada/Que de longe muito longe um povo a trouxe/E nela pôs sua alma confiada”. A nomeação do mundo veio antes de nomes falsos que disfarçam as suas intenções, a falácia aqui ainda não havia nascido, nesta inauguração da linguagem diante de seu mundo extralinguístico : “De longe muito longe desde o início/O homem soube de si pela palavra/E nomeou a pedra a flor a água/E tudo emergiu porque ele disse”. Diante da demagogia e sua prática nefasta, a poeta Sophia, como uma das detentoras do dom da palavra, denuncia este barbarismo discursivo, no que temos : “Com fúria e raiva acuso o demagogo/Que se promove à sombra da palavra/E da palavra faz poder e jogo/E transforma as palavras em moeda/Como se fez com o trigo e com a terra”.

LIBERDADE: A poeta Sophia canta a liberdade do poema e, por conseguinte, a sua própria liberdade, e a estrutura do poema, que se tece com um pensamento determinado, no entanto, é um ente do inaudito, residindo aí o seu paradoxo, na hora de sua criação : “O poema é/A liberdade” (…) “Um poema não se programa/Porém a disciplina/-Sílaba por sílaba -/O acompanha” (…) “Sílaba por sílaba/O poema emerge/- Como se os deuses o dessem/O fazemos”. Algo do dom é como uma pequena dádiva dada ao poeta, um vislumbre de uma ambrosia dos deuses.

A CASA TÉRREA: A arte, para ser plena, não deve funcionar como o preenchimento de um vazio espiritual, sua plenitude deve estar aliada, necessariamente, a uma vida que também seja plena, no que temos : “Que a arte não se torne para ti a compensação daquilo/que não soubeste ser”. A alma não deve se refugiar em sua arte, em meio a uma vida lamuriosa, pois a poeta Sophia tenta aliar o projeto literário ao projeto de vida, como se se tratasse de um único e universal projeto, no que vem : “Que não seja transferência nem refúgio/Nem deixes que o poema te adie ou divida : mas que seja/A verdade do teu inteiro estar terrestre”. Um poema inteiro, sólido, deve vir de um corpo e alma inteiros, sólidos, com toda a sua dignidade e integridade sustentadas em sua força : “Então construirás a tua casa na planície costeira/A meia distância entre montanha e mar/Construirás – como se diz – a casa térrea -/Construirás a partir do fundamento”. O fundamento é o alicerce, a coluna master, a arte se ergue com os pés na terra, uma visão forte e sólida, como uma grande pedra angular.

A FORMA JUSTA: A poeta Sophia, mais uma vez, se volta às valorações fundantes da civilização, aqui com a forma justa, a justiça, e vem : “Sei que seria possível construir o mundo justo/As cidades poderiam ser claras e lavadas”. Toda a ideia de harmonia das formas, é nada mais que a justeza destas formas, uma arquitetura angular que, por sua vez, deve se refletir numa sociedade angular, proporcionada, harmônica, justa, em que a liberdade está consoante aos valores estabelecidos num eixo claro e determinado, no que temos : “Cada dia a cada um a liberdade e o reino/-Na concha na flor no homem e no fruto/Se nada adoecer a própria forma é justa/E no todo se integra como palavra em verso/Sei que seria possível construir a forma justa/De uma cidade humana que fosse/Fiel à perfeição do universo” (…) “Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco/E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo”. O esforço da poeta Sophia pela forma justa é, também, para além de seu poema, a prática de uma cosmovisão que ela quer ver concretizada no mundo da vida e da civilização.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Blog:
http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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