Autor, que ficou marcado por uma imaginação engenhosa, produziu obras que abordam o horror cósmico
H.P.Lovecraft se destacou como um autor com uma imaginação engenhosa, e produziu obras que abordam o horror cósmico, com destaque para The Call Of Cthulhu, de 1926, O caso de Charles Dexter Ward, de 1928, e o livro Nas Montanhas da Loucura, de 1931. Aqui, o tema será mais precisamente o conto que dá título ao livro, que contém os contos Nas Montanhas da Loucura, A casa maldita, Os sonhos na casa da bruxa e O depoimento de Randolph Carter.
Nas Montanhas da Loucura se destaca como uma das principais histórias de horror de língua inglesa, e H.P.Lovecraft se tornou um dos maiores contistas de horror clássico do século XX. Este escritor norte-americano viveu de 1890 até 1937, e foi uma grande influência para diversos escritores de horror, incluindo o gigante Stephen King.
Falando da influência que H.P.Lovecraft recebeu, por sua vez, foi a inspiração que veio dos contos de Edgar Allan Poe, o antepassado principal de onde surgiu a fonte que produziu toda a literatura de horror, uma linha que faz um trançado entre Edgar Allan Poe, H.P.Lovecraft e Stephen King, se formos traçar uma dessas linhas temporais do horror.
Os contos retratados neste livro partem de uma ordem ordinária da realidade e a trama vai se desenvolvendo na direção do sobrenatural, e aqui a imaginação de H.P.Lovecraft é colocada em prática, e um mundo de entidades disformes, de um mundo paralelo, e toda uma especulação se abre, e o universo se expande para a fronteira do desconhecido.
Em Nas montanhas da loucura, o primeiro conto do livro que leva o título Nas montanhas da loucura e outras histórias de terror, que é o conto que vou citar aqui como um dos melhores exemplos em que o horror cósmico do autor desperta um pesadelo sobrenatural intenso, o cenário é o gelado da Antártica e a subida para uma montanha altíssima, e é nesta subida ao desconhecido que o contista descreve paisagens pré-cambrianas, terciárias, tecendo um mundo geológico e biológico de uma paleontologia alucinante e imaginativa.
Neste conto temos a descrição de minerais, fósseis, períodos que mesclam o pleistoceno, o mesozoico, e uma infinidade de enumerações que parecem vir de um museu de História Natural, demonstrando a capacidade de Lovecraft em conduzir seu grande conto por uma via única de vertigem e mistério, e que culmina em paisagens e descrições de um período imaginário de seres desconhecidos, fora da esfera da espécie humana, que teriam habitado em eras bem afastadas do que era agora o grande continente gelado da Antártica.
A referência obsessiva de Lovecraft ao temido Necronomicon, do árabe louco Abdul Alhazred, é logo feita, se tornando um dos eixos em que se inspira esta aura monstruosa em que se tecem os contos de Lovecraft. As cenas em que se avistam os cones dos montes Erebus e Terror, uma longa linha de montanhas Parry, mais além, e observando os 3.300 metros do cume de Terror, montanha descoberta em 1840, Lovecraft diz que se trata da imagem vinda de Edgar Allan Poe, em que o narrador do conto logo diz: “Meu próprio interesse fora despertado por causa da cena antártica do único romance de Poe – o perturbador e enigmático – Arthur Gordon Pym”.
E o narrador dá o panorama geral em que se desenvolverá o conto Nas montanhas da loucura: “Não preciso repetir o que os jornais já publicaram sobre a fase inicial de nosso trabalho: a subida do monte Erebus; as bem-sucedidas perfurações minerais em diversos pontos da ilha de Ross e a extraordinária velocidade com que os aparelhos de Pabodie conseguiam realizá-las, vencendo até mesmo camadas de rocha sólida; o teste preliminar do pequeno equipamento para derreter gelo; a arriscada subida pela grande barreira, com trenós e suprimentos; e a montagem final de cinco imensos aeroplanos, no acampamento em cima da barreira”.
Quando a personagem Lake ruma para o noroeste, a imaginação popular, segundo o narrador, “reagiu ativamente aos boletins que enviamos por rádio”, aqui se abria uma via para regiões ainda completamente inexploradas pelo homem, se avançava por uma suposição de Lake de que uma marca de fragmentos extraídos que ele vira se referia a um “organismo corpulento, desconhecido e radicalmente inclassificável, de estágio evolutivo consideravelmente avançado, a despeito da imensa antiguidade da rocha que a continha – cambriana, se não de fato pré-cambriana -, de modo que impossibilitava a existência provável não só de todos os tipos de vida altamente desenvolvidos, como também a de qualquer tipo de vida acima do estágio unicelular ou no máximo trilobita. Esses fragmentos, e a estranha marca que continham, teriam entre 500 milhões e um bilhão de anos de idade”. Portanto, Lake estava agora ansioso por revolucionar as ciências da biologia e da geologia.
Subindo a mais de 6.400 metros, a expedição logo se encontraria acima da altura do Himalaia, já vislumbrando picos desconhecidos, e Lovecraft começa a tecer descrições fósseis que conflitam diretamente com o que se conhece das eras evolutivas, toda uma gama de espécimes e variações que podem estar entre um vegetal ou um animal, no que se especula nas escavações se tratar de nadadeiras, barbatanas ou pseudópodes, aqui ganha um corpo avassalador, de remeter a eras mitológicas.
Mais uma vez a obsessão de Lovecraft pela edição de monstruosidades do Necronomicon aparece, e segue no conto: “Espécimes intactos têm uma semelhança tão sinistra com certas criaturas dos mitos primevos que a suspeita de uma existência ancestral fora da Antártica torna-se inevitável. Dyer e Pabodie leram o Necronomicon e viram as pinturas de pesadelo de Clark Ashton Smith, baseadas no texto, e entenderão quando falo de Anciões que teriam criado toda a vida da Terra como um erro ou pilhéria”.
Lovecraft cria neste conto uma atmosfera que sugere tempos míticos a partir de descobertas geológicas e fósseis. A ideia do conto gira em torno de um conflito entre uma História natural conhecida, dada de antemão, e as monstruosidades inexplicáveis à luz do mapa evolutivo conhecido até então sobre as espécies vegetais e animais. Aqui temos mais um trecho, em que o narrador do conto nos diz: “Senti também um novo influxo de uma percepção inquieta de semelhanças míticas arqueanas; de que maneira perturbadora aquele reino letal correspondia ao infame platô de Leng dos escritos primevos. Os especialistas em mitos situaram Leng na Ásia Central; mas a memória racial do homem – ou de seus predecessores – é longa e pode muito bem ser que certos contos tenham vindo de terras e montanhas e templos de horror anteriores à Ásia, e anteriores a qualquer mundo humano que conhecemos. Alguns místicos ousados sugeriram uma origem pré-pleistocênica para os fragmentários Manuscritos Pnakóticos e sugeriram que os devotos de Tsathoggua eram tão estranhos à humanidade como o próprio Tsathoggua.”
O que se descreveria através da expedição, a partir dali, pareceria loucura a quem não estava lá vendo estes espécimes biológicos recolhidos e ali se destrinchava uma história natural desconhecida e chocante, um desafio enlouquecedor se abria, e Lovecraft nos diz: “Os relatos de Lake sobre aquelas monstruosidades biológicas haviam excitado ao máximo os naturalistas e paleontólogos, embora tenhamos tido a sensatez de não mostrar as partes soltas que havíamos retirado dos espécimes sepultados, ou as fotografias dos mesmos espécimes no estado em que foram encontrados. Também nos abstivemos de mostrar os ossos cicatrizados e pedras-sabão esverdeadas mais intrigantes ao passo que Danforth e eu guardamos com cuidado as fotografias que tiramos e imagens que desenhamos no superplatô do outro lado da cordilheira”.
Os exploradores seguem em uma subida insana aos cumes, a loucura se avizinha da equipe expedicionária, ocorrem desaparecimentos, e o narrador nos dá a sua impressão sinistra: “Somente a imensidão incrível e desumana daqueles vastos baluartes e torres de pedra havia salvado a coisa terrível da aniquilação completa nas centenas de milhares – talvez milhões – de anos em que avultara lá em meio às rajadas de um sombrio platô”.
Segue a narração do conto: “Corona Mundi”, “Teto do Mundo”. Todos os tipos de expressões fantásticas brotaram de nossos lábios enquanto olhávamos, desnorteados, para o espetáculo inacreditável. Pensei mais uma vez nos insólitos e sinistros mitos primevos que com tanta persistência me haviam assombrado desde que eu avistara pela primeira vez aquele mundo antártico morto – no platô demoníaco de Leng, nos Mi-Go,ou abomináveis Homens das Neves dos Himalaias, nos Manuscritos Pnakóticos com suas insinuações de uma era pré-humana, no culto a Cthulhu, no Necronomicon, nas lendas hiperbóreas sobre o Tsathoggua informe e aquela cria estelar, pior do que informe, associada àquela semientidade”.
Segue-se a estas descobertas uma vasta descrição da cidade antiga que ficava no topo do mundo e uma rememoração do mito dos Anciãos do Necronomicon, se dá um conflito mítico entre a prole pré-humana de Cthulhu e este grupo de Anciãos que são banidos e vão ao mar. Lovecraft coloca aqui a sua fantasia de contista a um serviço absurdo de imaginação que tenta emular mitos fundadores sob a forma de uma guerra cósmica de eras pré-humanas na Terra. Uma verve descritiva de riquezas geológicas e biológicas agora se funde numa fantasia de eras desconhecidas, como se este conto Nas montanhas da loucura tivesse uma reunião insólita de toda uma existência prévia que aqui é colocada à luz do dia, tudo através de uma expedição antártica que flerta o tempo todo com a insanidade de paisagens inóspitas.
Há uma profusão de shoggoths controlados hipnoticamente pelos tais Anciãos, viscosidades, entidades disformes, algo repugnante que gera pavor, estes shoggoths pareciam mais um aglutinado de bolhas, com poderes de se modelarem ao bel-prazer. Abismos cósmicos inauditos se abrem entre conflitos abertos entre Anciãos e Mi-Gos. Lovecraft aqui exagera em demasia a sua capacidade de fantasiar o seu horror cósmico, algo de certo modo infantil parece emergir neste trecho do conto, uma certa objetividade se perde em meio de uma empolgação descritiva de seres bizarros sob uma forma delirante. A necessidade de Lovecraft aqui de elevar seu tom imaginoso sob certa caricatura pode por vezes sair de um eixo em que o conto poderia manter todo o seu estilo pseudo-científico da rica descrição geológica e biológica que pode-se observar na primeira metade deste conto.
O pesadelo sobrenatural de uma realidade distorcida aqui se torna concreta à visão desta equipe expedicionária, no que segue o narrador: “Havia algo de anormal naquilo tudo – as estranhas coisas que tanto nos esforçáramos para atribuir à loucura de alguém – aquelas covas temíveis – a quantidade e a natureza dos objetos desaparecidos – Gedney – a resistência extraterrena daquelas monstruosidades arcaicas e as bizarras anomalias vitais”.
Então um mundo desconhecido e paralelo se torna real, mas seu aspecto de loucura reforça o título do conto, o relato é irreal, insólito, o continente Antártico como escolha para este conto de Lovecraft é a sua premeditação de acessar algo perdido, um elo geológico, biológico, pré-humano, uma anterioridade mítica e a prova material que é a obsessão em que circula todo este campo especulativo do conto, uma prova material de um passado mítico e perdido, em que relatos antigos emergem novamente num retorno a mundos originários de face pré-humana, inaugural, cosmogônica e teratológica.
Por fim, Lovecraft segue até o desfecho de seu conto. Aqui temos a ilusão de um delírio demoníaco, uma obsessão teratológica do autor, toda uma gama de descrições que tendem tanto ao sinistro como para algo bizarro e exagerado. Lovecraft proporciona a inauguração de seu horror cósmico, abrindo caminho para autores que juntariam tramas de conflitos estelares e as monstruosidades de seres imaginários. Portanto, o que vinha lá de Edgar Allan Poe, cuja imaginação concebeu um crime cometido por um orangotango, agora desaguava num Lovecraft insano com vontade de fabricar monstros indizíveis em meio a conflagrações cósmicas e míticas.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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