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O Processo de Franz Kafka

VIDA E OBRA

Franz Kafka nasceu em Praga, e era filho de pais judeus de classe média, com sua infância e adolescência marcadas pela figura dominadora do pai, comerciante próspero, e que tinha como valor principal na vida a busca pelo sucesso material, tendo Kafka, como escritor, registrado sua relação tortuosa com o pai no célebre livro Carta ao pai, de 1919, com seu pai aparecendo como o tipo opressor, que aniquilava a vontade individual do filho. 

Kafka teve como influência intelectual e literária, por sua vez, figuras como Heinrich von Kleist, Pascal e Kierkegaard, e teve no ambiente de Praga, cidade medieval gótica, repleta de traços eslavos e alemães, com arte barroca e sombria, uma de suas fontes de inspiração para os seus escritos. E de 1901 a 1906, Kafka estudou Direito na Universidade de Praga, lugar no qual conheceu seu grande amigo – posterior biógrafo e depositário de sua obra – Max Brod. 

Quando terminou a sua graduação, Kafka conseguiu um emprego em 1908 numa companhia de seguros, como inspetor de acidentes de trabalho, lugar no qual, mesmo com a sua competência profissional, se sentia insatisfeito, pois este emprego não deixava com que ele se dedicasse integralmente à literatura, no que ele diz: “Tudo o que não é literatura me aborrece, e eu odeio até mesmo as conversas sobre literatura”. 

E as obras-primas de Kafka, O Processo e O Castelo, respectivamente de 1925 e 1926, só seriam publicadas por Max Brod após sua morte que, contrariando o desejo expresso pelo autor de que seus inéditos fossem queimados após sua morte, Max Brod publicou romances, textos em prosa, a correspondência pessoal e diários de Kafka. E a obra do escritor tcheco veio a influenciar movimentos artísticos como o surrealismo, o existencialismo e o teatro do absurdo.

FEITURA DO ROMANCE

Franz Kafka começou a escrever O Processo (Der Prozess) na segunda semana de agosto de 1914. Tal escrita do romance se deu de forma instável e fragmentária, pois pouco tempo antes, Kafka duvidava da própria capacidade de continuar escrevendo, e isto depois de uma fase intensa em que ele concebeu no ano de 1912 obras como O Veredicto, A Metamorfose e a maior parte do romance O Desaparecido (ex-América). No que se conclui que as ambições do escritor envolviam um projeto de envergadura.

No entanto, depois desta crise criativa antes de O Processo, ele retoma seus projetos, sua situação criativa melhora, só que quanto ao romance O Processo, ele o interrompe, pois é tomado por outro projeto, provavelmente Blumfeld, se declarando “quase incapaz” de dar prosseguimento a O Processo. Portanto, tal instabilidade de Kafka nas suas prioridades e nas suas vontades reflete o fato de que um dos maiores romances do século XX ficou sendo apenas um fragmento, um projeto inacabado.

Se a verificação das datas em que foram redigidos os capítulos e trechos incompletos do romance já é complexa, tal problema aumenta quando se sabe que as edições organizadas por Max Brod, amigo e testamenteiro do escritor, não seguem a sequência exata do trabalho original, uma vez que há inúmeras incoerências cronológicas nesta versão que é a mais oficial e usada do espólio de Kafka.  

O fato mais complexo de tudo isso se dá em relação à própria organização de Kafka dada a O Processo, pois não é possível definir se as unidades que fazem a sequência da obra estiveram justapostas sempre de um único modo. É conhecido que Kafka escrevia em cadernos, separando os capítulos com espaços em branco ou linhas divisórias. E O Processo, especificamente falando, foi feito de tal modo por Kafka, que ele, depois de escrever algumas partes (não apenas capítulos) do romance, isolou tais unidades, colocando-as, por fim, em envelopes individuais. 

E o fato se agrava, pois Kafka não concluiu todos os capítulos, parando de redigir alguns deles, e deixando uma lacuna na folha, para logo em seguida tentar terminar outro capítulo, o que comprometeu a sequência natural do romance. Daí que Max Brod lhe deu um caráter arbitrário na sua organização, repleta de aporias e lacunas cronológicas, num romance que, no seu todo, envolve um ano inteiro na vida de Josef K.

O ROMANCE

O romance O Processo de Franz Kafka conta a história de um bancário que se vê, de súbito, processado sem saber o motivo, este personagem, o principal do romance, é Josef K. Tal fato inaugural do romance se dá quando Josef K. acaba de completar 30 anos, quando ele é detido em seu próprio quarto por dois guardas, e neste momento começa o pesadelo do personagem, que cai numa situação absurda na qual teria que tentar descobrir as motivações, pois na abertura do romance Kafka nos dá uma senha não necessariamente esclarecedora de que sua personagem não tinha feito “mal algum”. 

Ainda na esperança de esclarecer o assunto num interrogatório, ele se depara com um inspetor rude e agressivo que o ameaça e chantageia. Contudo Josef K. exigia esclarecimentos em vão, pois tanto o inspetor como os guardas apenas cumpriam ordens e não sabiam sobre o motivo de sua detenção. O Processo é uma narrativa que segue sem que se conheça quem teria denunciado Josef K. às autoridades e o motivo de estar sendo preso. 

Por tal fato insólito, o personagem central se vê obrigado a lutar o tempo todo para descobrir do que estava sendo acusado, quem o acusava e que lei justificava tal situação. Josef K. inicia então uma longa peregrinação burocrática na tentativa de descobrir por que o acusam, no que vai peregrinar por salas de difícil acesso, cartórios, e tribunais com longos corredores, numa busca infrutífera que só vai exasperá-lo. 

ANÁLISE CRÍTICA

Essa obra se dá no contexto de uma crítica sobre o poder judiciário e seu arbítrio, e que se estende, por conseguinte, a todas as outras instâncias da vida. A obra O Processo apresenta uma narrativa de atmosfera claustrofóbica, numa distopia do século XX em que vivia Kafka, e num traço que revela o absurdo da vida e de seus pretensos regramentos. O absurdo é a atmosfera geral na qual o personagem Josef K. está imerso e preso. 

A narrativa, então, nos proporciona toda uma gama de situações que flertam com fatos surreais e aporéticos, pois assim como em A Metamorfose, Kafka nos narra tudo sem nos dar explicações. A desorientação de Josef K. diante do absurdo é o tema dominante de toda a narrativa do romance. Neste romance, a ambiguidade onírica do universo sui generis de Kafka, junto com as situações de absurdo existencial, chegam ao limite. 

Pois Josef K. nunca é informado por que motivos está sofrendo o processo, e ele sustenta sua inocência quase até o fim. E, temos uma chave narrativa crucial, pois quando Josef K. declara a sua inocência, o mesmo é perguntado “inocente de quê?”. Aqui temos a abertura para uma interpretação de que o processo contra Josef K. talvez tenha sido instaurado por sua incapacidade de confessar sua culpa. 

Nesta obra, Josef K. se vê atônito ao ser informado que contra ele havia um processo judicial, e ao qual ele jamais terá acesso, e que é também fundado numa acusação que ele jamais saberá, e que o levará a percorrer as vielas e becos da burocracia estatal, cumprir ritos sem sentido, e a comparecer a tribunais estapafúrdios e insólitos, numa obrigação de se submeter a ordens desconexas, como num transe onírico que é nada mais que um pesadelo. 

Aqui podemos também levantar o tema da alienação, pois Josef K. não sabe de nada nunca, apenas é levado pelas situações, assim como os personagens que se dirigem a ele também não podem lhe dar nenhum esclarecimento que seja. O romance é, portanto, dominado por uma atmosfera de profundo mal-estar, que é a instabilidade recorrente das situações inexplicáveis que acontecem ao personagem, num complexo que no romance se dará como um conjunto de personagens como uma sucessão de subordinações em que um está subjugado a outro. A dominação se dá aqui como a própria estrutura social e burocrática da sociedade e do Estado, respectivamente. Essa relação é demonstrada no romance pela estrutura de poder e comando das organizações na sociedade, e a coação aparece como uma das chaves principais da cristalização do absurdo da situação dada. 

A obra de Kafka, no seu todo, por sua vez, tem uma implicação biográfica interessante e paradoxal, pois embora nunca tenha ficado satisfeito com seu emprego, este foi, ao mesmo tempo, fonte fiel para os seus escritos, já que Kafka, com isso, conhecia bem o que eram processos, leis, e o aparelho judiciário e burocrático da sociedade em que vivia. Portanto, tais dados objetivos foram tratados com precisão técnica e terminológica, tanto por ser formado em direito, como por ter atuado pessoalmente em numerosos processos envolvendo a companhia semi-estatal de seguros contra acidentes do trabalho, na qual era um funcionário competente. 

E, durante a confecção de O Processo, conforme demonstra sua correspondência, Kafka acompanhou com interesse várias situações jurídicas, as quais lhe deram a oportunidade de ver tudo o que estava por trás de toda aquela fachada retórica do mundo burguês de sua época, tendo o conhecimento objetivo de várias das tramas da polícia do Império, como dos procedimentos sinuosos da justiça criminal do seu país, no que O Processo funciona, também, como um testemunho da própria vida de trabalho formal de Kafka.

As interpretações do romance possuem uma variada abordagem, que passam por visões teológicas, além das filosóficas, sociopolíticas, psicanalíticas, e das estético-formais, dentre outras. Na abordagem teológica, por exemplo, há uma gama de intérpretes, e tal visão pode ser bem resumida na imagem do romance como a representação da culpa do homem contemporâneo. Por outro lado, na abordagem histórica, por sua vez, as interpretações alegóricas são logo descartadas, pois aqui temos a visão do romance como um trabalho calcado no mais objetivo realismo, refletindo nada mais que a desumanização burocrática da Monarquia do Danúbio.

Mas há críticos, também, que consideram o realismo de Kafka como algo profético, pois as situações demonstradas em O Processo anteciparam muito do que viria ocorrer com a ascensão do nazismo na Europa, no qual eram comuns, por exemplo, a detenção súbita e sem fundamentos, as ordens de espancamento, além das várias decisões do arbítrio das esferas de poder, culminando, por fim, num cotidiano em que era rotina o assassínio brutal. 

Também temos interpretações que veem no romance um esforço bem realizado de perscrutar com conhecimento bem definido a alienação escamoteada no cotidiano da vida comum, isso sendo bem refletido nas situações em que Josef K. se vê inserido, como uma testemunha ocular da reificação e padronização do mundo administrativo. Os protocolos herméticos de O Processo são, portanto, a demonstração na ficção de um mundo objetivado por tais instâncias que funcionam como um tipo de gênese social da esquizofrenia; num mundo sem esperanças ou utopia, com o banimento total de qualquer vestígio da ideia ou mito da salvação. Kafka nos dá um século XX em que tudo está perdido, pois não há autenticidade na reificação do mundo. 

Outra interpretação dada a esta e outras narrativas de Kafka são a de que estas representam um tipo de expressão do “vanguardismo decadente” de um pequeno-burguês angustiado, com um medo que foi hipostasiado diante da incapacidade de superá-lo por uma análise concreta. Por sua vez, temos as arbitrárias interpretações psicológicas ou psicanalíticas, que tendem a ter um caráter muitas vezes unitário e “super-interpretativo”, levando o leitor a entender O Processo como uma ação ficcional em que se reflete um caso de neurastenia, ou ainda que as desventuras objetivas de K. são parte do mundo onírico da personagem, quando não for, pasmem, um delírio de um homem isolado e exasperado. 

Por fim, temos interpretações extremadas, nas quais a narrativa ganha tônus alegórico de tal monta, que a perspectiva de Josef K. é subsumida num mundo aparente ou ainda como um mero processo de pensamento do mesmo. Dado tais contrastes interpretativos, temos que atentar, portanto, que a fortuna crítica de O Processo está, na verdade, como um sentido tão amplo de visões, que tudo está em aberto, a obra continua viva e dando vazão a mais interpretações de diferentes e diversos matizes. 

Tal amplitude e abertura radical da exegese de O Processo e de grande parte da obra kafkiana têm sentido no fato de que Kafka nos proporciona um trabalho literário que se forma como um tipo de prosa sutil, e então temos o paradoxo desta sutileza, no caso de O Processo, numa estrutura narrativa conservadora, não devendo nada às escolas do realismo e do naturalismo, mas que suscita, eis o paradoxo kafkiano, doses cavalares de surrealismo, que não será o onírico de tal vanguarda, mas do absurdo do próprio mundo real e objetivo, marcando com toda a sua complexidade o escopo em que se dará a ficção universal do século XX.

Temos, por exemplo, a famosa frase com que Kafka inicia o romance: “Alguém certamente havia caluniado Josef K., pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum”. Não há sentença que possa ser mais clara, mas não no caso de Kafka, e este golpe de mestre do autor permanecerá como chave de abertura do romance e seu sentido, mas também como algo contradito ou sem explicação no seguimento das situações de O Processo. Pois lendo a história, contudo, o sentido da ação que se segue não é nem confirmado, nem revogado: a dúvida é o mote e interesse kafkiano por excelência. O que de início está formulado de maneira válida e até supostamente verdadeira, como efeito mais que real de uma tese fundada, a ideia presumível da detenção por consequência de uma calúnia, acaba caindo no inferno kafkiano da incerteza, pois a dúvida é o meio kafkiano e de O Processo. 

Com efeito, a lei que serve de parâmetro para medir a culpa de K. permanece, no entanto, oculta, dispersa, sofre um desvio em que nunca é afirmada e nem negada nas causas, pois a única certeza é a dos procedimentos adotados pela lei, mas não suas causas, as quais se encontram aqui obnubiladas pela própria forma procedimental de seus enviados, não se podendo emitir, quanto à ideia precípua até então de calúnia, qualquer juízo ponderável sobre a conduta de Josef K.  

No entanto, um possível mote de interpretação se dá, por conseguinte, no desdobramento da ação, na qual consta que as autoridades são “atraídas pela culpa”, o que pode ser a contradição da sentença clara e direta de calúnia na abertura do romance. E outro fato curioso, e que pode ser tanto esclarecedor como confuso, dependendo do caminho de interpretação dado, é o fenômeno sui generis de que a detenção de Josef K. nunca é efetiva, pois ele tem a sua liberdade de locomoção garantida, mesmo com as reviravoltas infinitas de seu caso, o que faz a “detenção” deixar de ser o que o começo do romance afirmava que era. 

E eis a excelência da dúvida na obra kafkiana: o fato afirmado da calúnia perde a validade que tinha, só que não é oferecida pelo autor algo ao que se por no lugar, o mergulho na obscuridade e na perda de referência na percepção do leitor é o tal fenômeno kafkiano. E talvez este seja seu substrato psicológico, que não é uma pretensa interpretação alegórica, mas o fato de que a grande situação aqui da psicologia em Kafka se dar no terreno da percepção do leitor, ou melhor, da sua desorientação e obscurecimento durante toda a trama.  

Kafka, por sua vez, concebia a abertura da narrativa como um golpe de mestre, pois ela é a medida em que se dará as suas continuidades e desvios, fundando toda a lógica interna do romance. Pois, em seu fundo objetivo, a narrativa tem incorporados os elementos convencionais da prática jurídica, mas que vão sucessivamente sendo subvertidos, indo do mais puro realismo e naturalismo descritivo para um aporia total da inverossimilhança.

E diante disso, a postura racional do leitor, que se situa bem na sugestão naturalista do romance, se vê, logo após, como um joguete inserido em deslocamentos bruscos, tendo, no entanto, intacta, eis a mestria kafkiana, a coesão interna do romance, com toda a sua integridade de expressão de um pensamento organizado preservada, no que vemos uma possível via para entender tal fenômeno com as próprias palavras de Kafka que, segundo o mesmo, a sua pretensão era a de fazer o leitor se sentir “mareado em terra firme”, no que consegue realizar com seu romance O Processo.

CONCLUSÃO 

A narrativa do romance nos envolve neste tecido social e de poder que causam todo o mal-estar, tanto da personagem como do caráter geral do livro, no qual o Estado, nesta obra, aparece como a própria imagem densa e cristalizada do arbítrio e do autoritarismo. Aqui temos a demonstração, através da ficção, de uma realidade vivida por muitos, pois os direitos sociais do homem são tolhidos, no que são reveladas as falhas brutais do ordenamento jurídico de forma cabal e crítica, no que podemos dizer que a liberdade, um dos valores éticos e estéticos mais caros à humanidade, é neste romance um bem e um direito que é aniquilado pela total falta de autonomia de Josef K. diante do cerceamento súbito no qual se vê enovelado. Pois o direito de defesa, por sua vez, outro preceito fundamental do homem, acaba sendo negado neste romance.  No que vemos que a aplicação do poder democrático, portanto, também está alienado e inexplicavelmente impedido em tal situação de Josef K.

O romance nos dá, por fim, a atmosfera geral de uma sociedade que perdeu a esperança, em crise de valores, num surrealismo que desafia toda a verossimilhança de um mundo normal, pois tal estabilidade é uma aparência, já que, por baixo da ordem, e talvez pelo excesso deste ordenamento, nos vemos com o absurdo e a falta de sentido, numa estrutura fria e sem empatia, numa ordem excessiva que gera seu contrário, o caos. E aqui vemos que todo o trabalho literário de Kafka o torna um destes autores sui generis e de difícil mapeamento numa corrente literária determinada, mas que também o torna como um dos escritores mais influentes do século XX, seja na forma de expressão, como na temática, a qual, por sua vez, aborda a perda das liberdades individuais, a trama absurda do ordenamento burocrático, e as instâncias obscuras de uma justiça cristalizada num direito positivo cego e surdo. 


Gustavo Bastos, filósofo e escritor 

Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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