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O resgate da Kombi Djanira

André Forecchi foi ao Peru buscar veículo com o qual viaja realizando ações culturais com seu irmão gêmeo Davi

Uma crise diplomática e sete anos de fronteiras fechadas entre os países. O clima quase bélico entre Venezuela, governada há anos pela esquerda, e Colômbia, com seus tradicionais governos de direita, começou a amenizar no ano passado com a eleição de Gustavo Petro, de centro-esquerda, para o governo colombiano, o que ajudou a reaproximar os países e retomar os trâmites diplomáticos. Tudo foi organizado com antecedência até que no início do ano as fronteiras foram abertas em localidades como Paraguaguón, na Guajira venezuelana.

Por lá passava André Forecchi, compositor, saxofonista, homem-banda, escritor e “escutador” de histórias, como define em um perfil nas redes sociais. O capixaba foi assim o primeiro turista estrangeiro a passar por aquela fronteira reaberta, o que gerou um vídeo gravado pelas autoridades venezuelanas, um tanque cheio de cortesia e a promessa de garantia de segurança pelas vias da Venezuela durante sua estadia, ficando com contato dos policiais para qualquer emergência que encontre.

André e a Kombi cruzando a fronteira da Colômbia com a Venezuela. Foto: Divulgação

Nesse momento, André viajava sem a companhia de Davi, seu irmão gêmeo, com quem comparte o projeto Osviajero, no qual buscam espalhar cultura por diversos lugares do Brasil e da América Latina, circulando com uma Kombi adaptada para servir também como moradia.

O terceiro elemento desse projeto, porém, também estava com André e saiu no vídeo. Se trata de uma Kombi, conhecida como Djanira pelos mais íntimos, que serve como meio de transporte e moradia para os gêmeos durante as viagens. Ela se encontrava próxima à cidade amazônica de Tarapoto, no Peru, quando os irmãos optaram por interromper as atividades por conta da pandemia de Covid-19. “Nós pausamos nossas viagens e a vida nômade por conta da pandemia por entender que não era o momento de colocar nossa saúde nem a de outras pessoas que poderíamos conhecer em risco”, conta Davi, que falou com o Século Diário desde Brasília, onde se encontrava enquanto que seu irmão estava incomunicável e próximo de cruzar a fronteira da Venezuela com o Brasil, depois de passar por Peru, Equador e Colômbia como parte do resgate de Djanira, feito após uma campanha e colaboração de amigos e seguidores de suas aventuras.

Antes da interrupção, os três percorreram cerca de 40 mil quilômetros durante aproximadamente dois anos, contados a partir de 27 de dezembro de 2017, quando os jovens tinham apenas 23 anos. “A nossa trajetória de viagem começa com uma grande insatisfação com os modelos de vida que apresentaram para a gente”, conta Davi. Seguiam um caminho convencional, resolveram estudar e fazer faculdade. Ingressaram em universidades públicas, Davi fazendo Oceanografia no Rio de Janeiro e André cursando Geofísica em Niterói, cidade vizinha à capital fluminense. 

Os artistas gêmeos cruzando a fronteira do Brasil com o Peru. Foto: Divulgação

“Tornou-se uma grande frustração, porque o caminho colocado hoje tanto no âmbito profissional como no âmbito acadêmico induz e obriga a pessoa a um processo de especialização numa área. E nós tínhamos múltiplos interesses. Queríamos aprender diferentes idiomas, diferentes instrumentos musicais, tipos de dança, escrever e ler várias obras, desenvolver na prática de exercícios físicos e alongamentos diversos. E ter tempo para desfrutar de um pôr do sol, do nascer do sol”, relata o “viajero” (palavra espanhol que significa isso mesmo: viageiro, viajante. Embora leia-se algo como “viarrêro”).

Os caminhos convencionais apontados pela continuidade da carreira acadêmica lhes pareciam um tanto castradores. “Você tinha que entregar muitas horas. Geralmente oito horas de trabalho fora o tempo de transporte, para algum órgão público ou entidade privada. Sendo que outras 8h em média você passa dormindo. Sobre muito pouco para conhecer pessoas, viajar e fazer todas atividades que a gente desejava”, relata.

Mas foi em outro continente que o sonho de ganhar a estrada foi se reforçando. André ganhara uma bolsa de estudos para ir à Nova Zelândia. Depois de um ano separados, Davi também foi para o país da Oceania, onde trabalhou e viajou por seis meses. Lá tiveram a primeira experiência de ter sua casa dentro de um automóvel. Ganharam algum dinheiro e ainda trouxeram instrumentos musicais usados que foram revendidos aqui para captar mais um recurso.

Depois de recuperarem uma Kombi e adaptarem a mesma, com recursos e mão de obra próprias. Essa experiência posteriormente seria transformada no livro “Kombi Home – O Manual Completo”, inicialmente vendido como e-book para ajudar nos projetos realizados durante a viagem e posteriormente distribuído gratuitamente.

Djarina, a ‘kombi home’, contemplando a paisagem. Foto: Divulgação

Com a Kombi devidamente arrumada e batizada, Davi e André seguiram com Djanira de sua cidade natal, Aracruz, no norte do Estado, rumo ao Nordeste do Brasil. “No percurso, por termos tempo, nós percebemos que éramos extremamente privilegiados e veio naturalmente o desejo de compartilhar com as comunidades, especialmente as que encontrávamos em maior situação de vulnerabilidade por onde passávamos”.

Assim foram sendo criados os quatro projetos sociais que realizam enquanto viajam. O primeiro chama-se Palito de Fósforo, em que levam a escolas, centros culturais, casas geriátricas e outros espaços uma série de atividades como brincadeiras, música e contação de histórias. Também criaram o Cine Bandoleiro, um cineclube itinerante para passar filmes pelo caminho, utilizando computador, projetor e tela e aproveitando a energia gerada pelas placas solares instaladas no veículo. “Temos a possibilidade de transmitir cinema onde quisermos. Apresentamos em território indígena Munduruku, em travessias de barco em meio aos rios Amazonas e Madeira, nos lençóis maranhenses, em comunidades rurais da Paraíba, no interior do Ceará, foram muitas apresentações.

O terceiro projeto, Vida na Estrada, tem foco especialmente nos centros culturais e universidades públicas e no público jovem e adulto, buscando ensinar justamente sobre o processo de como construir sua própria casa na Kombi e como viver na estrada. Ainda surgiu um projeto de meditação itinerante, em que levam almofadas especiais e realizam atividades meditativas com outras pessoas que encontram no caminho. Durante a pandemia, o projeto ganhou também um formato online no qual foram realizadas cerca de 120 edições de forma remota.

Atividades culturais realizadas por Osviajero em escola no Peru. Foto: Divulgação

A pandemia foi também uma oportunidade que os irmãos encontraram para realizar atividades no Espírito Santo, perto da família, e organizar e melhorar o portfolio para quando fosse possível retomar as viagens com Djanira. “Agora temos mais visibilidade, mais suporte. Somos mais conhecidos. O início do projeto foi em total desconhecimento. Isso criava dificuldade de credibilidade para apresentar nossos projetos que eram gratuitos e muitas vezes as pessoas desconfiavam de nossa índole ou intenções”. Atualmente o Instagram é a principal vitrine de Osviajero, que possui também conta no YouTube e um grupo de Whatsapp com informações exclusivas para quem contribua com qualquer valor para o projeto pelo Pix . Também é possível ajudar com doações mensais por meio do site Apoia.se.

Por muito tempo as viagens foram financiadas exclusivamente pelo dinheiro feito pelo caminho, com apresentações culturais em bares, restaurantes e praças, como o Homem-Banda, quando André toca simultaneamente vários instrumentos, ou o Homem-Palco, em que Davi, a partir de uma mala, cria um cenário para teatro de bonecos.

Esquentando os motores

Durante esse tempo dos irmãos no Espírito Santo, o projeto Palito de Fósforo ganhou uma versão em podcast, trazendo várias histórias em áudio. Gravaram vídeos com apresentações, realizaram oficinas artísticas e culturais e atividades especialmente com as crianças em Coqueiral e no distrito de Guaraná, ambos em Aracruz, e em Marataízes. Desenvolveram um aplicativo para o site Mapa Cultural, por meio do qual agentes culturais capixabas se inscrevem para captar recursos públicos.

Boa parte dos projetos realizados contaram com apoio de políticas públicas, como o Fundo Estadual de Cultura e a Lei Aldir Blanc, esta com recursos federais, mas seleção e pagamento a nível municipal e estadual. Ainda estão por lançar outro aplicativo com um jogo sobre comunicação não-violenta e Davi lançará em breve um livro infantil. “Apesar de nem sempre estarmos aqui, de termos uma vida nômade, ficamos felizes de já ter realizado tantas coisas no Estado. E muita coisa vem aí. O Cinema Bandoleiro está voltando junto com a Kombi e esperamos dar muito mais cor e vida para outras cidades, principalmente no interior do nosso Estado”, avisa Davi.

Os gêmeos no reencontro com os pais no Espírito Santo

Ele está muito animado. “O sentimento agora é de alegria, renovação, esperança e fé. Esse ano de 2023 começa com tantas mudanças, com a Kombi vindo para o Brasil, com as mudanças presidenciais e governamentais. Tudo isso inspira na gente uma vontade de viver e uma esperança muito grandes”, diz Davi, sem esconder as expectativas que carrega enquanto o irmão gêmeo segue com a companheira Djanira numa longa viagem até onde tudo começou.

Para o entrevistado, o maior ganho que eles obtêm com a vida nômade é a possibilidade de sair de suas bolhas de privilégio, conforto e segurança para encarar o mundo como ele é, encontrando pessoas com suas necessidades e dificuldades tal como são. Ele acredita que estando em nossas casas imóveis, muitas vezes as mazelas da sociedade são vistas simplesmente como notícias de jornal ou informações em nossas redes sociais que podemos inclusive escolher não ver. Na estrada, visitando as comunidades, conseguem perceber os impactos das políticas públicas eficientes ou não que são realizadas pelos governos de nosso país. E também perceber como as pessoas fazem para lidar com as dificuldades.

“A gente acaba desenvolvendo uma empatia, uma noção do outro, um senso de coletivo. Na maioria das vezes as pessoas mais prejudicadas são as que desenvolveram valores e virtudes inimagináveis no sentido do acolhimento, respeito, amor, companheirismo. Isso não é apologia à pobreza, é um fato que a gente constata ao viajar pela América Latina. Em comunidades de vulnerabilidade social vimos pessoas que tinham pouca coisa nos presenteando, alimentando, acolhendo. Somos gratos porque nos momentos de maiores dificuldades recebemos esse tipo de apoio. Isso é enobrecedor”, ressalta. 

Em Diamantina (MG), no dia da primeira apresentação como artista de rua durante a viagem iniciada em 2017. Foto: Divulgação

Davi reconhece que cada local por que passam possui sua cultura e também seus expoentes artísticos, embora por vezes, por falta de recursos financeiros, esses fazedores de cultura acabam não conseguindo sobreviver de seus talentos e vão se dedicar a outras coisas que tragam retorno para sustentar suas vidas. “Acho que nossa passagem pelos locais às vezes inspira e alimenta essas pessoas para continuarem tendo forças. Acreditamos que políticas públicas melhores virão para que possamos continuar desenvolvendo nossos trabalhos”, diz sobre si e sobre os outros.

Os planos futuros de gêmeos “viajeros” são muitos e em alguns casos apontam para intenções diferentes de cada um em alguns momentos e em outros para ideias a serem desenvolvidas em conjunto. “O sonho comum que mais pulsa em nós é o desenvolvimento de uma comunidade alternativa, possivelmente no Espírito Santo, em que a gente possa acolher tantas pessoas que nos acolheram para desenvolver formas sustentáveis de existir e formas sociopolíticas mais saudáveis e amenas de nos organizar enquanto sociedade e enquanto humanidade”, reflete.

Além disso, planejam futuramente com um “Djanirão”, um ônibus em que possam somar pela estrada fazedores de cultura e de projetos relacionados à saúde física e mental para proporcionar visitas mais elaboradas nas comunidades pelas quais venham a passar. 

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