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O resgate da renda de bilro na Barra do Jucu

Patrimônio cultural que foi perdido em boa parte do Espírito Santo vem sendo revitalizado por projeto em Vila Velha

Almofada, linhas e bilros de madeira compõem o tradicional instrumento de tecer das artesãs. Foto: Divulgação

Tradição principalmente em comunidades do litoral, as rendas de bilro foram desaparecendo ao longo das décadas no Espírito Santo, assim como em outros lugares do Brasil e do mundo. Na Barra do Jucu, em Vila Velha, imagens de quase um século registravam a presença das rendeiras. Os mais antigos contam que era comum ver as mulheres sozinhas ou em grupo tecendo nas varandas, calçadas ou perto da igrejinha, com o tradicional barulhinho provocado pelo atrito das peças de madeira movimentadas pelas ágeis mãos de artesãs.
Desde a década de 1970, a técnica foi caindo em desuso. “Era uma cultura muito comum em todo Estado, principalmente na faixa litorânea, assim como era em Portugal, de onde veio. Tem um dito de que “onde há renda, há rede”, numa referência ao fato de que em muitas comunidades os homens pescavam e as mulheres teciam”, conta Regina Maria Ruschi. Ela é uma das responsáveis pelo resgate que vem ocorrendo desde 2016 na Barra do Jucu, trazendo de volta a tradição e a arte que envolveu gerações de mulheres.
Ela conta que há 50 anos as rendas de bilro eram feitas pela maioria das mulheres e serviam como fonte de renda complementar à pesca. Mas ao longo do tempo, os produtos têxteis industriais começaram a ocupar espaço, com um preço muito menor. Os pescadores também passaram a trabalhar em empregos de pouca qualificação, mas que geravam um salário fixo. Trabalhosa, a renda de bilro foi aos poucos sendo deixada de lado.
Rendeiras trabalhando em frente à igrejinha da Barra do Jucu. Foto: Divulgação

Para que a renda de bilro voltasse a ser praticada na Barra do Jucu, foi necessário recorrer às anciãs, mulheres muitas vezes na faixa de 80 ou 90 anos, que ainda traziam na memória os segredos da técnica, transmitida sobretudo pela oralidade. Entre elas estiveram Rosa Leão Malta, a Dona Rosinha, falecida em 2019, mas que conseguiu ensinar muitas mulheres. “Foi nossa primeira mestra e a professora que nos ensinou a fazer renda. Sem ela, o resgate não teria sido possível. Era muito alegre e extrovertida”, lembra carinhosamente Regina, que é arquiteta apaixonada por patrimônio imaterial que começou a pesquisar sobre a renda de bilro em 2014.

Também contribui outra mestra, Dona Enedina França de Paiva, mais tímida, que até hoje costuma ensinar para grupos pequenos. Atualmente, as instrutoras dos grupos maiores foram formadas nos últimos anos pelo projeto que hoje se chama Barra de Renda e teve início com oficinas no Museu Vivo da Barra do Jucu, posteriormente no Centro Comunitário, e depois na Escola Municipal Tuffy Nader. Atualmente o grupo inclui cerca de 30 pessoas que trabalham para resgatar esse patrimônio cultural. Além de aprendizes da Barra do Jucu, também participam mulheres de outros locais de Vila Velha, Serra e Vitória.

Uma dessas instrutoras é Mariza Vieira Gervásio, bisneta de Dona Bernardina Vieira Machado, que foi uma conhecida rendeira no famoso bairro litorâneo de Vila Velha. “Minha bisavó era rendeira e ensinou muita gente, mas eu não sabia disso. Fui descobrir depois que entrei no projeto. Minha mãe fez muito pouco renda, mas minhas tias aprenderam bem”, conta.

Registro de uma turma de rendeiras na Barra do Jucu. Foto: Divulgação

Querendo ocupar o tempo livre, ela se inscreveu inicialmente em cursos de corte, costura e bordado no Museu Vivo. “Achava que bilro era muito difícil, que não ia conseguir aprender”. Mas incentivada por colegas em comum dos outros cursos, acabou se matriculando também. E para sua surpresa, não só gostou como aprendeu de forma mais rápida que a maioria. “Os primeiros pontos são muito difíceis, demora”, lembra. Mas sentindo-se desafiada, ela saía das oficinas aos sábados e pesquisava na internet durante a semana para aprender. Na época, a maioria dos vídeos que existiam sobre eram em espanhol ou italiano. Ela pouco entendia das falas, mas seguia as imagens das mãos para aprender e praticar. “Fui a que pegou mais rápido os pontos. Elas dizem que o DNA falou mais alto”, brinca a instrutora.

Comercialização e exposições

Para fazer a renda de bilro, o equipamento inclui uma almofada dura sobre um cavalete, onde se apoia o pique, que é o desenho do trançado. Os fios são manejados por pequenas peças de madeira, os bilros, em quantidades que variam de acordo com a complexidade do trabalho e que vão sendo trançados pelas rendeiras com habilidade.

Nestas latitudes tropicais, desde tempos antigos, os equipamentos mais “sofisticados” usados pelas rendeiras de Portugal foram adaptados para materiais locais: bilros feitos com coquinho de palmeiras da região, almofada com saco de estopa e enchimento de bananeira, piques de resto de papelão. “Era tudo muito sustentável e se mantém hoje. É o chamado de ‘bilrinho caipira'”, diz Regina. A elaboração desses equipamentos também é feita na própria Barra do Jucu, e é outro produto além das rendas que pode ser comercializado e fomentar a economia e artesanato locais.

Com as oficinas de renda de bilro, o projeto começou e se mantém com o intuito principal do resgate cultural. Mas ao longo do tempo vem sendo pensada também a sustentabilidade do projeto. Como a falta de viabilidade comercial acabou levando a prática cultural a praticamente desaparecer, gerar ingressos para as mulheres que contribuem para o resgate deste patrimônio parece ser uma estratégia e estímulo para que as rendas de bilro voltem a ser produzidas e a tradição seja mantida para além de ações de fomento cultural.

Toalhas de altar feitas com renda de bilro. Foto: Divulgação

“Começamos a fazer esse trabalho buscando apoio para desenvolver os produtos e gerar vendas, para que isso animasse a comunidade a voltar a produzir”, relata Regina. Uma consultoria gratuita dada pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) em 2019 ajudou a desenvolver melhor o design dos produtos e expô-los em feiras de artesanato em âmbito estadual e até nacional, além da tradicional feira Arte na Barra, no próprio bairro onde o projeto surgiu.

“O grupo nunca tinha tido nenhuma iniciativa comercial, mas havia esse desejo. Mostramos ferramentas e foi criada uma coleção por meio das consultorias”, conta a consultora Jaqueline Chiabay, que tem longa experiência com artesanato e economia criativa. Um dos desafios é o fato da maioria das rendeiras serem ainda aprendizes, diante da necessidade de entregar produtos muito bem acabados, que são bem aceitos no mercado por sua produção artesanal, mesmo com custo mais elevado pela qualidade do material, mas principalmente pelo trabalho minucioso das artesãs.

Durante essas exposições realizadas, a presença do bilro e das rendeiras praticando e mostrando o ofício é sempre importante e desperta grande interesse dos frequentadores, ajudando não só nas vendas mas principalmente na visibilidade deste patrimônio cultural, dando também oportunidade para que o público tente manejar os bilros e perguntar sobre a cultura e a técnica. As tradicionais rodas de rendeiras, que vão batendo papo, trocando ensinamentos e tecendo juntas, são uma prática que vem sendo exercitada desde o início das oficinas do projeto.

As vendas ainda ficavam restritas às feiras esporádicas e algumas encomendas, mas a pandemia de Covid-19 levou o grupo a ter que repensar as estratégias. Com ajuda de editais de cultura, o grupo começou a elaborar formas de expor usando a internet, o que também ajudou a reanimar a produção das mulheres, que puderam ser remuneradas para produzir.

O primeiro resultado do novo processo foi a elaboração de um catálogo, que apresenta um pouco da história do projeto e vários produtos elaborados pelas rendeiras.

A próxima aposta é na realização de uma mostra com o tema “Tradição e Religiosidade em Rendas de Bilro”, montada na Igreja Nossa Senhora da Glória, na Barra do Jucu, com peças e indumentárias próprias. Devido à pandemia, a exposição não será aberta a visitas, mas sim transformada em vídeos e materiais de divulgação nas páginas do projeto no Instagram e Facebook. São artigos usados em diversas celebrações religiosas como batismo, primeira comunhão, casamentos e missas.

É um outro nicho possível para o trabalho das rendeiras, que já chegaram a produzir toalhas de altar que foram doadas ao Convento da Penha, cumprindo a promessa de uma devota, depois que o marido se curou da Covid-19. Na nova mostra estão peças como o madrião, uma vestimenta de batismo, alfaias litúrgicas usadas durante o ofertório, véu de noiva, velas de altar e de primeira comunhão, terço e almofada de misericórdia usadas para longos períodos de oração.

A partir de julho, o Barra de Renda passará a oferecer aulas online em seus canais, ensinando sobre a técnica da renda de bilro. Em breve, o plano é começar a realizar vendas online. Mas uma das pretensões para um futuro mais distante é ajudar a resgatar o ofício em outros municípios do Espírito Santo, onde deixou-se de fazê-lo.

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