Romance de William Faulkner é uma união simbiótica de tema literário e estilo ou forma, ambos sobre o caos
Durante os anos 1940 e 1950, William Faulkner, além de publicar contos, novelas e romances, passou a escrever roteiros para Hollywood, também colaborando para o Departamento de Estado na difusão da cultura americana, tendo visitado muitos países como palestrante. Faulkner veio a falecer em 1962, já como um escritor consagrado e premiado.
William Faulkner escreveu 17 livros que se ambientavam no mítico condado de Yoknapatawpha, no sul dos Estados Unidos, e que viria a ser o lar da família Compson no romance O Som e a Fúria. O condado nos parece um lugar bem real dos Estados Unidos sulista, e todos os costumes e ações estão lá bem retratados e fiéis, num período que abrange as primeiras décadas do século XX.
William Faulkner usava a sua imaginação criadora para reproduzir modos de vida que existiam, de fato, mas com um retrato enriquecido de sua trama que nos leva aos lugares reais, mas também ao que seus romances conduzem, histórias de famílias sulistas em conflito ou diante de desafios que fazem estes romances evoluírem numa espiral de acontecimentos ásperos ou demonstrando situações em que os limites são testados, como no romance que venho retratar aqui, O Som e a Fúria.
O escritor possui um estilo próprio de prosa, com um método quase hipnótico, de orações desconjuntadas e contínuas, o que pode desorientar o leitor que não estiver bem concentrado, pois requer uma familiaridade de leitura que só vem do hábito. Num primeiro momento, ler Faulkner é algo chocante do ponto de vista formal, a sua prosa é caótica e bruta.
Uma característica que pode ser uma das virtudes da prosa de Faulkner é que ele privilegia muito todos os seus personagens, sempre com uma boa descrição, e muitas vezes estes personagens aparecem falando as suas próprias histórias. Aqui não há o método do narrador onisciente, talvez a crueza de sua prosa, portanto, vem tanto da localidade de um condado áspero e sulista fictício, como de uma demanda que ocorre das falas destes personagens que pendem de uma ignorância caipira a um desamparo essencial diante de um deserto existencial, cujo embrutecimento reflete na forma de escrita bruta e caótica de Faulkner.
Os livros são repletos de relatos de sofrimento, morte, ganância e depravação. Faulkner, ao abordar a realidade sulista norte-americana, nos proporciona um mergulho numa vida comum do início do século XX e suas perspectivas, ou melhor, a falta destas. A liberdade, aqui, se vê diante de inúmeros obstáculos, e Faulkner acaba constituindo, por outro lado, com a sua prosa endurecida, uma comédia de costumes do sul dos Estados Unidos, e foi este retrato que se tornou um marco na literatura mundial.
Em 1949, quando William Faulkner recebeu o Nobel, sua literatura original foi citada pela premiação como um escritor de “poderosa e artística contribuição para o romance moderno norte-americano”. Nos seus últimos livros, O Intruso, de 1948, Requiem for a Nun, de 1951, A Fable, de 1954, que foi Prêmio Pulitzer, A Cidade, de 1957, A Mansão, de 1959, e Os Invictos, de 1962, que também foi Prêmio Pulitzer, ele continuou explorando os conflitos do coração humano diante de cenários ásperos e duros. William Faulkner faleceu em 1962, no dia 6 de julho, de ataque cardíaco.
O romance O Som e a Fúria, que aqui tematizo, tem este caráter de vida áspera e sem perspectiva que retratei na introdução ao universo literário de William Faulkner. A família Compson é descrita em detalhes, e inúmeros conflitos emergem de uma convivência difícil entre personagens que vivem histórias caóticas e que se entrechocam na obrigação de estarem juntos diante de desafios que colocam estes personagens todos num mesmo diapasão de embate, dor e demandas inumeráveis, e isto no cenário sulista, que envolve toda a literatura produzida por William Faulkner, aqui, o condado fictício de Yoknapatawpha.
Os Compson e os Sartoris perderam o controle do condado para os Snopes, e Jason Compson, um dos eixos do romance, está diante da morte da mãe e da fuga de sua sobrinha, e ainda tinha um irmão já adulto, mas idiota, que acaba internado num asilo estadual. Jason se vê, por conseguinte, diante de uma situação em que tem que consumir todo o dinheiro da venda do pasto no casamento de sua irmã e no curso do irmão em Harvard.
Seu minguado dinheiro vinha de ser empregado do comércio para aprender numa escola em Memphis a avaliar e classificar algodão, abrindo seu próprio negócio, e Jason enfrenta uma vida de sacrifícios, em que tem que cuidar de sua família. Aqui, um cenário degradado pela dureza, com ações e costumes, muitas vezes, violentos ou dominados por uma insensibilidade desamparada. Não há prazeres para Jason, não existe uma utopia para esta família em putrefação.
Os episódios vão do cômico ao odiento, dependendo do ponto de vista literário, como o fato de Jason ter sido roubado pela sobrinha que fugiu, ou do seu irmão idiota que tentou desajeitadamente agarrar uma menina sem o consentimento dela. No caso, como dito, o pasto vendido por Jason era para financiar o casamento de Candace e os estudos de Quentin em Harvard. Por sua vez, seu irmão idiota é castrado em 1913, e internado no Asilo Estadual, Jackson, em 1933.
Diante dos personagens do romance, podemos ver situações que flertam com limites de vivência que colocam o caráter de alguns deles num pântano em que o viés utilitário e de tirar vantagens advém, sobretudo, de condições duras e desesperadas. Jason é traído pela sobrinha, e tem que lidar com uma família disfuncional, estando ele mesmo em condições profissionais pavorosas, em que a ideia de um caminho claro e coerente de ações e vida se esboroa diante das demandas inumeráveis que surgem, como ter que lidar com as contingências intermináveis, mais do que obedecendo a um plano em que tudo poderia ficar límpido para a visão de Jason que, diante dos Compson e sua confusão, não passa de uma visão turva e perturbada.
Lidar com uma realidade embrutecida coloca o caráter de todos estes personagens num limbo em que reina um naturalismo utilitário e cruel, não há um ambiente de confiança e clareza, os conflitos se armam aqui justamente pela falta de norte e perspectivas, um mundo nebuloso e que se encontra turvado o tempo todo por tempestades de traições, brigas e indas e vindas caóticas que se refletem no estilo de prosa caótico e desorientador de William Faulkner. Uma união simbiótica de tema literário e estilo ou forma, ambos sobre o caos.
O Som e a Fúria, designando o título deste romance emblemático de William Faulkner, é isto mesmo, um cenário desolador, que tem a sua primeira parte sendo narrada por Benjy, um idiota, evocando Shakespeare, isto é, um título que evoca a citação clássica da peça teatral elisabetana Macbeth, em que a frase proferida pelo protagonista diz : “A vida não passa de uma sombra que caminha, um pobre ator que se pavoneia e se aflige sobre o palco – faz isso por uma hora e, depois, não se escuta mais sua voz. É uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria e vazia de significado”.
Link da Querido Clássico: https://www.queridoclassico.com/2021/04/o-som-e-furia-william-faulkner.html
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com