Fotos: Vitor Taveira
Quietos, sentados cada um em um assento duplo do ônibus vão os congos, integrantes do Baile de Congo ou Ticumbi de São Benedito, manifestação da cultural popular afrobrasileira realizada em Conceição da Barra. Ainda de camisa simples e boné partem para o Ensaio Geral, que marca o início de uma intensa jornada dos festejos anuais de São Benedito pelo grupo. O ônibus sai da cidade, busca outros integrantes pelo caminho, avança por estrada de terra entre mato e plantios de eucalipto em monocultivo até o Córrego do Alexandre.
Na noite de cada dia 30 de dezembro se reúnem para repassar a apresentação que será feita no primeiro dia do ano seguinte. O local do ensaio pode variar. Geralmente acontece no barracão de Porto Grande, de onde saem embarcações que dão continuidade aos festejos. Mas devido ao avanço do rio e a ameaça da estrutura do local, em 2019, o ensaio aconteceu no Córrego do Alexandre, tudo dentro da região quilombola do Sapê do Norte, no litoral norte capixaba.
Há tempo de chegada, cumprimentos, troca de conversas entre os congos e os visitantes, que vêm das comunidades do entorno e também do Centro da cidade e de outros municípios, sobretudo da Grande Vitória. A jornada começa ali, em alguma casa no meio do mato.
Quilombo adentro, madrugada adentro
Depois da primeira prosa, todos se reúnem num pátio, e os artistas populares ensaiam sem paradas, com duração de mais de quase duas horas. O Ticumbi se compõe como uma representação que remonta aos duelos antigos reinos africanos. O Rei de Bamba e o Rei de Congo, junto a seus embaixadores (ou secretários), entram em conflito para a realização de uma festa. O ato é composto por música (com viola e pandeiros), cantos, dança, coreografia, encenação e versos falados. Só existe nesse canto do Espírito Santo, tendo cruzado os séculos. O roteiro é o mesmo, mas os textos mudam a cada ano, trazendo elementos da atualidade e tornando o espetáculo sempre uma novidade.
Atualmente são quatro Ticumbis existentes, o mais conhecido deles é o de São Benedito, comandado pelo Mestre Berto Florentino, que no ano passado assumiu o lugar de Tertolino Balbino, o Mestre Terto, agora mestre emérito após 64 anos à frente do grupo. Também existem o Ticumbi do Bongado e os de Itaúnas e Angelim, que derivaram do Bongado. No passado eram muitos mais.
Após o Ensaio Geral, os congos apresentam uma valsa em homenagem ao Mestre Terto e ao jornalista Rogério Medeiros,fundador e diretor deste Século Diário, vassalo do Ticumbi, ambos presentes no evento.
Já adentrando a madrugada, vêm a janta, oferecida por uma família apoiadora. Arroz, feijão, frango, porco e, claro, a boa farinha do Sapê do Norte. Mas a noite não acaba por aí. Os componentes do Ticumbi e alguns dos apoiadores ou visitantes permanecem por toda noite no festejo até o amanhecer. Para esquentar a noite e passar o tempo foi convidado o grupo de forró Fogumano e um DJ tocando forró no vinil.
Depois ainda deu tempo do Forró de Sapezeiro, a grande tradição pós-Ensaio Geral, quando com ajuda de um sanfoneiro, os congos tocam um forró tirando versos de improviso. A festa vai até o amanhecer, quando acontece um café da manhã, antes da partida para o cortejo, quando os congos recebem a camisa do festejo de 2020. Caminhamos por uma estreita estrada de terra e logo por dentro do mato, onde catamos mangaba, cruzamos uma pinguela sobre o alagadiço e caminhamos até Porto Grande, comunidade vizinha, onde o Ticumbi se junta aos grupos de Jongo de Córrego do Alexandre e Porto Grande nos bancos que seguem para uma parte importante do ato.
Em busca de São Beneditino
Anunciados por fogos de artifício, os barcos vão até a comunidade de Barreiras, onde numa pequena igreja buscam o São Benedito das Piabas, que passa a acompanhar o cortejo junto a mais um grupo de Jongo local. Se trata de uma delicada imagem de madeira, carinhosamente chamada de São Beneditinho, que viaja bem protegido numa cesta e coberto por um guarda-sol.
Acredita-se que a imagem é a original que pertenceu a Benedito Meia-Légua, um dos líderes dos quilombos da região na época da escravidão, que a carregava em seu embornal. Perseguido, Meia-Légua dormia no buraco de uma árvore. Denunciado, as tropas oficiais o encontraram mas não o enfrentaram. Esperaram o quilombola dormir, tamparam o buraco da árvore e tocaram fogo. Benedito Meia-Légua morreu, mas a imagem do santo que leva seu nome teria permanecido intacta e jogada no Rio das Piabas pelos assustados soldados, tendo sido resgatada pelos negros escravizados.
De Barreiras, os barcos levam o São Beneditinho em cortejo até o Cais do Porto do Centro de Conceição da Barra, onde outro grupo de Jongo e muitas outras pessoas os esperam. Os quatro barcos se emparelham e os festeiros vão subindo um a um, numa escada improvisada e dificultosa, apesar de muitos serem idosos.
Virados desde a noite anterior, seguem valentes os congos numa procissão até a Igreja de São Benedito, do outro lado da parte urbana da cidade onde guardam a imagem do santo para o dia seguinte e seguem o caminho visitando as casas dos festeiros que as recebem.
A festa dos negros durante a ressaca dos brancos
No dia seguinte, 1 de janeiro, não tem moleza não. Mesmo com pouco descanso, no início da manhã, todos congos se encontram na casa do Mestre Terto. Já vestem o traje da festa: roupas brancas, coroa de flores, fitas coloridas, pandeiros ou viola nas mãos. Os reis e embaixadores têm trajes diferenciados.
Depois da missa, em frente à Igreja, começa a apresentação oficial. Não por acaso o Ticumbi é celebrado na manhã do primeiro dia do ano. Aproveitando a ressaca das festas dos brancos, os negros faziam sua brincadeira e seu louvor. No primeiro dia da década de 20 do século 21, o Ticumbi de São Benedito apresenta sua nova versão para um público que se aglomera embaixo de duas tendas montadas, se protegendo do forte sol.
Reis e embaixadores de Bamba e de Congo estão frente a frente e uma grande imagem de São Benedito detrás destes. Entre eles um corredor formado pelos pandeiristas, que iniciam com uma homenagem. “O Ticumbi está de luto / faleceu nossa festeira”. Uma homenagem a Dona Rosa Dealdina, falecida em junho passado, uma das mais queridas festeiras, que sempre recebeu o grupo em sua casa. Levam também um laço negro no peito em sinal de luto.
Sentado de frente, com a faixa de Mestre Emérito, Terto sinaliza, orienta, dialoga, permanece atento, apesar dos problemas de vista, permanece parte do grupo, acompanhando todo o evento e apoiando ao Meste Berto Florentino, também grande rimador, herdando os conhecimentos transmitidos pela oralidade de seus ancestrais.
O Ticumbi costuma ser crítico aos políticos, e lembra por mais de uma vez nos versos deste ano, que 2020 é ano eleitoral. Que eles virão com suas promessas, batendo em nossas costas e apertando nossas mãos. Outro verso lembra o conto do senador que morreu e escolheu ir pro inferno que lhe havia sido mostrado como maravilhoso, mas chegando lá descobriu-se enganado, pois o capiroto estava em campanha eleitoral, agindo tal qual o senador em sua carreira.
Os quilombolas falam com graça, mas também lembram das desgraças que ameaçam cultura e forma de vida. “Eucalipto sobre a terra, lama sobre o rio, óleo sobre o mar”, na nada santa trindade de crimes socioambientais que permeiam o litoral norte do Espírito Santo.
“Não somos descendentes de escravos/ Somos descendentes de seres humanos negros/ que foram escravizados”, lembra outro dos versos. As embaixadas discutem sobre a realização de uma festa, em versos tentam dialogar mas terminam em guerra. Dizer quem ganha seria um spoiler ancestral e eterno, mas poderia dizer que haverá lutas de espadas, executada com esmero pelos artistas.
A apresentação de 2020 marca o primeiro baile conduzido totalmente por Berto Florentino, um dos mais antigos integrantes do grupo, mestre desde o ano passado, quando ainda contou com grande apoio de Terto, com mais de seis décadas como mestre. Mas aos 86 anos, Terto ainda tem energia para no final de tudo levantar da cadeira, tocar o pandeiro, puxar o grupo e cantar em alto e bom som algumas rimas.
Na igreja depois do término do Ticumbi, ainda se apresenta um grupo de jongo e os congos seguem caminhando e cantando até o almoço na casa de Dona Rosa, servido por suas filhas e herdeiras no processo de luta dos negros do norte capixaba. Ali os devotos rimam, se emocionam, comem, bebem e recarregam energias para seguir o baile por mais tantas outras casas que vão visitando pela cidade até a noite. Quase dois dias sem descanso mas seguem aparentemente inabaláveis.
O Ticumbi de São Benedito possui duas crianças, alguns jovens, e uns tantos adultos e idosos. Só duas coisas podem explicar tal energia e disposição que mantém viva a tradição ancestral: a força física dos homens do campo e o poder espiritual dos devotos de São Benedito, o Santo Preto.