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‘Os Primeiros Soldados’: evolução e relevância do cinema capixaba

Produzido por novas gerações do audiovisual, filme aborda início da epidemia de Aids e estreia em seis capitais

“Enquanto vomitava a carne da própria perna, o soldado pensava que os primeiros sofrem de uma coragem de que ninguém nunca vai lembrar”, diz a voz de Suzano (Johnny Massaro) enquanto seu corpo esguio vestido de militar caminha errante por uma selva. A cena poética, aparentemente desconectada da obra, retomará sentido posteriormente em Os Primeiros Soldados, filme de Rodrigo Oliveira que estreou na última quinta-feira (7) em oito salas de cinema do Brasil, incluindo o Cine Metrópolis em Vitória, onde na próxima segunda-feira (11h), às 20h, haverá sessão especial com presença do diretor e parte da equipe e elenco.

Em cartaz em sua primeira semana também em importantes centros como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Belo Horizonte e Curitiba, a obra coloca o cinema capixaba em destaque no panorama da produção nacional de 2022. Primeiramente por trazer um tema inédito na ficção nacional: a narrativa, ambientada principalmente em Vitória no ano de 1983, aborda a história de três personagens que trazem em comum o fato de terem sido alguns dos primeiros no município infectados com o vírus HIV, provocador de uma doença até então desconhecida e avassaladora, a Aids.

Embora a ciência tenha ajudado a entender a doença e criado tratamentos que permitem aos infectados viver com uma expectativa de vida muito superior à dos primeiros infectados, o tema cobra importância por trazer uma memória especialmente dura para a comunidade LBGTQIA+ e relevante para toda sociedade. E também por provocar novamente visibilidade sobre uma doença, que justamente por essa nova situação de maior controle sobre seus efeitos, perdeu espaço na mídia. Entretanto, ainda há mais de 10 mil mortes anuais decorrentes da Aids no Brasil e a cada ano o número de novos infectados no mundo é estimado entre 1 milhão e 2 milhões, muitos deles fora dos inicialmente apontados erroneamente como integrantes dos chamado “grupos de risco”. Uma doença que matava “puta, viado e drogado”, como diz Rose (Renata Carvalho), outra personagem, uma artista transexual, sobre como a Aids era vista no primeiros anos, numa crença que ainda persiste na cabeça de muitos nos tempos atuais, dificultando o combate às novas infecções.

A Rose e ao já mencionado Suzano, estudante de biologia recém-chegado do exterior, soma-se o videomaker Humberto (Vitor Camilo). Apesar de personalidades diferentes, os personagens trazem em comum o fato de serem LBTQIA+ e soropositivos naquele momento da história, em que lutavam contra o desconhecido, já que a doença ainda era um mistério e os tratamentos que começavam a surgir pelo mundo eram testes ainda sem eficácia comprovada.

Nas pesquisas feitas para o filme, Rodrigo Oliveira observa que as mortes no Espírito Santo começam a ser contadas em 1985, embora “as manchetes de jornais, os grupos de amigos e os silêncios das boates” já denunciavam as primeiras mortes por HIV. O exercício de Os Primeiros Soldados foi imaginar quem poderiam ser esses primeiros infectados, aqueles que nem estatística viraram. É assim que a obra dá vida a Rose, Suzano e Humberto, conectados pela adversidade física e emocional da doença misteriosa, que provoca picos de esperança e de desespero.

Suzano, personagem de Johnny Massaro, um jovem estudante que retorna a Vitória. Foto: Felipe Amarelo

Como seriam essas pessoas? Como eram seus corpos? Como se movimentavam pela cidade? Quais eram seus sonhos? Se perguntava o diretor. “A pesquisa me ajudou muito a conseguir inventar com responsabilidade a história desses primeiros soldados”, afirma. Implica não só a caracterização de cada um deles como a ambientação da trama, com seus cenários, que passam por reconstruir espaços frequentados das comunidades LGBTQIA+ em tempos em que o preconceito era ainda maior.

O fato do filme ser totalmente protagonizado por esta comunidade, algo pouco comum na cinematografia brasileira, ganha ainda mais relevância em um momento em que o governo federal de Jair Bolsonaro vem promovendo ataques a inúmeras políticas públicas voltadas para este público, inclusive na Agência Nacional de Cinema (Ancine). No Espírito Santo, onde o filme acontece, o conservadorismo continua demonstrando sua força social, sendo que em pleno 2022, o mês do orgulho LGBTQIA+ e suas semanas seguintes ficam marcados por episódios bizarros como ataques de um deputado a um evento cultural sobre o tema, aprovação por vereadores de Vitória de um projeto transfóbico e um secretário de Cultura da Capital dizendo que políticas para essa comunidade não fazem parte da atual gestão. Apesar de recorrer ao passado – relativamente recente, vale dizer -, Os Primeiros Soldados pode despertar com sutileza ao espectador questões ainda bem atuais.

Embora o tema da obra seja bastante delicado, e a morte perpasse a trama, Rodrigo Oliveira considera que o filme não busca falar do fim, mas dos recomeços possíveis e das formas de sobreviver e viver com o vírus, como fazem mais de 900 mil pessoas no Brasil atualmente. “Naquele momento [em que se passa o filme] a morte era muito provável, mas isso não tira o gosto, o prazer, a dor e a delícia de ter vivido, mesmo sem saber o que estava acontecendo consigo mesmo”, afirma o diretor da obra. Para ele, Os Primeiros Soldados é um elogio a essa vida possível, aos sonhos que permaneceram nessas pessoas até seus últimos dias, e que podem seguir espalhados por seus parentes e amigos.

Renata Carvalho interpreta Rose, artista da cena LGBTQIA+ capixaba. Foto: Felipe Amarelo

Uma outra questão que não pode deixar de ser levantada aqui é o fato do filme ser produzido com uma equipe, que segundo o diretor, teve cerca de 95% dos profissionais do Espírito Santo, algo inimaginável doze anos atrás, quando Rodrigo produzira seu primeiro longa-metragem, As Horas Vulgares, co-dirigido com Vitor Graize. O resultado final de Os Primeiros Soldados mostra como as novas gerações que se sucedem e vem sendo formadas nas últimas décadas no Estado despontam com a possibilidade de colocar o cinema capixaba num patamar nunca antes alcançado, tanto para seu próprio público, como para o cenário nacional e até internacional, onde as produções têm chegado por meio de festivais.

Porém, os desafios para consolidar esse cenário ainda são grandes, e passam especialmente pelas políticas de fomento, fundamentais para consolidar o mercado, especialmente no que tange à produção de longas-metragens, que demandam um investimento mínimo na casa de R$ 1 milhão. A regularidade das políticas públicas estaduais, apesar de suas limitações notáveis diante de um setor em pleno desenvolvimento, têm sido importantes. 

As políticas federais, que seriam o impulso necessário para saltos maiores e foram sendo freadas e logo interrompidas a partir “golpeachment” de 2016, ganham novas possibilidades com a aprovação a nível federal da Lei Paulo Gustavo, emergencial e com foco no audiovisual, e a Lei Aldir Blanc 2, de caráter permanente. A retomada da Ancine num possível governo Lula também permite sonhar com tempos mais abundantes para a produção audiovisual capixaba. Sem poder, no entanto, esquecer da coragem dos primeiros soldados do nosso cinema, que mesmo com pouquíssimos recursos e sem saber o que os esperava, se puseram a filmar.

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