INTRODUÇÃO
Percy Bysshe Shelley (Field Place, Horsham, 1792 – golfo de La Spezia, 1822), foi um dos grandes poetas de língua inglesa do início do século XIX, e teve a sua obra poética marcada pelo romantismo, sua família descendia da velha nobreza, podendo-se fazer uma interessante genealogia de sua ascendência familiar. Percy Shelley, embora tenha sido agraciado por uma vida confortável, teve uma vida breve e conturbada, repleta de idealismo, o que o fez por vezes um filantropo, e também teve a sua vida marcada por ações intempestivas.
Percy Shelley inovou na poesia ao conceber uma escrita de sucessão de imagens rápidas, e que tinham também um caráter vago e de meios evanescentes e que lhe davam a visão de coisas ilusórias, própria do romantismo, mas que no seu caso anteciparam muitas imagens que iriam aparecer com mais rigor já no simbolismo. Percy Shelley suscitava em sua poesia imagens gerais ou genéricas como a névoa, o rio ou o tempo, e como possuía um conhecimento científico, sobretudo de química, sua poesia marcava até com certa exatidão também fenômenos naturais, com a clareza de um cientista, só que na forma poética que lhe era própria.
Tal riqueza científica se pode ver no poema “Ode ao Vento Oeste” (1819), um de seus maiores momentos em sua obra de poesia. Seus poemas evocam e traduzem, na forma estética, a tensão mais que conhecida do espírito entre a paixão e a razão, e a marca física e existencial entre a permanência da natureza e a fluidez da vida, definindo nestes contrários aparentes a dinâmica da poesia, seu ritmo, que era espírito estético, de um lado, e conhecimento da natureza, de outro.
E Percy Shelley também foi marcado na sua busca de um símile da ideia, com base em Platão, de que existia uma ordem eterna na Beleza, no Amor e na Justiça, e isto conduzido por um poeta que era ateu, mas que tinha intuído sua chispa de eternidade na própria poesia, e tal essência era a que os homens sentem, mas são incapazes de descrever, como se dá no poema platônico por excelência “Hino à Beleza Intelectual”, de 1816.
Shelley ficou conhecido também por manter total repulsa a qualquer forma de despotismo, e assim como William Blake, interpretava a universalidade da religião, dos sistemas políticos e dos códigos morais como potências tirânicas e medíocres. Percy Shelley tinha uma consciência universal e muitas vezes social, mesmo que tenha tido uma origem abastada, e uma infância maravilhosa repleta de conforto e cercado pela natureza.
DADOS BIOGRÁFICOS – PARTE I
Field Place, onde Percy passou a infância, era um lugar encantador, ficando a casa em parque com grandes árvores, um ribeiro e um lago, finos jardins e pomares. No “jardim americano” havia rododendros, pinheiros de vários tipos, cedros, faias, bétulas. O que refletia na infância de Shelley como uma existência repleta de aventuras e profundo conhecimento e relação com a natureza. Belos ou selvagens, secretos ou cheios de sol, essas clareiras e arvoredos e córregos tinham muito a oferecer a uma criança sensível, fornecendo-lhe imagens para suas concepções posteriores. Havia muitos pássaros, borboletas e mariposas, e até uma águia dourada apareceu na infância de Percy, em Horsham, onde foi abatida e tornou-se notícia de jornal.
Percy Shelley recebeu do pai uma educação rigorosa e erudita. Já aos seis anos o menino ia aprender latim, e em seus dias de folga o pai lia com ele os clássicos e outros livros, com a expectativa de fazê-lo um bom e bem educado erudito. Timothy estava preparando o filho não apenas para traduzir Platão ou ser um autor consumado, mas para brilhar na vida pública e social, onde a oratória bem ornada, a elegância de expressão pronta para todas as ocasiões, e uma referência ao exemplo e sabedoria antigos nos assuntos de reinos e estados eram um requisito contemporâneo. Percy também estava sendo preparado para ser um fazendeiro capaz (nos papéis de casamento, aliás, ele se diria “fazendeiro”). A esse tempo, girando pelas cercanias, auxiliava os necessitados, com dinheiro seu ou tomado de empréstimo.
Percy era popular entre os irmãos principalmente por lhes contar histórias do reino das maravilhas e por povoar de criaturas fantásticas os arredores de Field Place e o próprio local. Sua primeira composição em inglês, sobre “um gato em apuros” data dessa época. Consta mesmo que imprimiu alguma coisa em Horsham a expensas do avô mas a obra desapareceu, assim como uma peça que fez com Hellen.
Percy foi enviado a uma escola particular, a Sion House Academy, em Brentford, e nela se ensinava latim, grego, francês, composição, aritmética, geografia, além de elementos de astronomia. Recebido como calouro, Percy reagiu com escárnio e solidão. Percy Shelley, por seu turno, vivia lendo novelas de terror, e nessa ocasião, também, foi que intuiu a awful Loveliness, a “terrível Beleza”, e começou a batalhar contra o despotismo, dentro e fora dele. Queria ser, como escreveu, “sábio, justo, livre e indulgente”, batalhando contra a tirania dos egoístas e dos fortes.
Em julho de 1804, Percy vai para Eton, que era uma escola secular, situada na vizinhança do castelo de Windsor e do Tâmisa, onde se tornou fag, uma espécie de calouro factótum, de um futuro juiz no Ceilão, atual Sri Lanka. O reitor era o Dr.Goodall, que foi substituído em 1809 por John Keate. Com ele Shelley teve um professor de clássicos, que distinguiu nele a faculdade de metrificar em latim, aplicando-lhe o verso de Ovídio. Et quod tentabam dicere versus erat (E o que eu tentava dizer saía em verso).
Shelley, por outro lado, não concordava com o sistema imposto aos fags e a ele resistiu. Conheciam-no na escola, onde estudou de Horácio e Virgílio a Homero, como “Shelley, o louco”, ou “Shelley, o ateu”. O primeiro romance de Percy, Zastrozzi (1810), influenciado pela “escola do terror”, foi publicado pouco antes de deixar Eton, seguindo-se Original Poetry by Victor and Cazire, também de 1810, que escreveu de parceria com sua irmã Elizabeth, e em 1811 publicou outro romance da mesma tendência, St.Irvyne or the Rosecrucian, tudo isso obra de sua fase imatura e incipiente.
Em seguida, Shelley registrou-se em abril de 1810 no University College, Oxford, regressou a Eton, e começou a residência em Oxford no mês de outubro. Lá se fez amigo de outro estudante, Thomas Jefferson Hogg, tendo essa amizade subsistido por longos anos. Tinha Shelley queda por experiências de química, poesia, filosofia e estudos clássicos, e publicou logo em Oxford os versos de Posthumous Fragments of Margaret Nicholson (1810). Hogg e Shelley eram céticos em matéria de religião, derivando para o ateísmo. Em 1811 Shelley publicou anonimamente um panfleto, The Necessity of Atheism, que enviou aos bispos e outras personalidades com um convite para discussão. Intimado pelas autoridades escolares a dizer se o folheto era ou não dele, Shelley calou-se, razão por que foi expulso de Oxford, junto com Hogg.
Shelley e Hogg ganharam Londres, onde o poeta logo ficou sozinho, pois Hogg foi preparar-se para o notariado em York. Como não chegou a acordo com o pai, Shelley por certo tempo teve de socorrer-se de pequenas quantias fornecidas pelas irmãs, sendo às vezes portadora uma formosa colega delas, Harriet Westbrook, filha de um taverneiro aposentado e mais ou menos rico. Cismou o poeta de converter a moça, que era metodista, às suas próprias convicções. Shelley poucos meses antes, em Field Place, cortejara sua prima Harriet Grove, mas esta se alarmou com as posições anticonservadoras do poeta e veio a casar-se logo com outrem.
PROMETEU LIBERTADO: ATO II – CENA I:
O poema abre com versos como: “Das rajadas do céu, de todas, tu desceste,/Como um espírito, ou um pensamento, faz/Indesejado o pranto afluir aos córneos olhos/E palpitar o desolado coração,/Que deverá aprender a repousar: desceste/No berço das tormentas: Primavera, acordas!” E segue: “Virias ao raiar do sol, doce irmã minha,/Há muito desejada e tão morosa, vem!” O poeta na sua peça poética de Prometeu (o titã que roubou o fogo dos deuses e deu aos homens, sendo punido por isso) tem aqui na primavera seu chamado, esta desce à terra, Shelley sabe que dos cumes pode surgir a grande resposta, e ele a evoca, e o poema vem com versos finais, que são: “Como desmaia a vaga, e como os fios ardentes/Da entretecida nuvem se desfazem no ar;/Perdeu-se; e em picos de uma neve como nuvem/Tremula a rósea luz do sol; não ouço a música/Eólia de suas plumas, verdes como o mar,/Abanando a aurora carmesim?”. Shelley ouve a música, que se desfaz no ar, a primavera de seu sonho é um vento, que ele pergunta, ao fim, se balança a aurora, o poeta não tem seu socorro, ele diz vem, mas a poesia e suas imagens são evanescentes, assim como os sonhos que lhe carregam. Por isso o poema se encerra aberto, com uma pergunta fundamental.
HELLAS: CORO FINAL:
O poema inicia com bastante esperança, é um poema de tom visionário, de um novo renascimento da Hélade, que vem com os versos: “No mundo a grande idade se inicia novamente,/Voltam as quadras redouradas,/Renova a terra, como uma serpente,/Suas ervas de inverno fatigadas:” E aqui o sonho e a esperança têm nome: “Uma Hélade mais fúlgida levanta os montes/Da onda mais serena e mais louçã;/Faz, um novo Peneu, rolarem suas fontes/Ante a estrela da manhã.”. E segue: “Um outro Orfeu modula novamente,/E ama, e chora, e morre cruelmente./Um novo Ulisses deixa uma vez mais/Calipso pela terra de seus pais.” Novo poeta surge? Um outro Orfeu e um novo Ulisses, afirma Shelley, que diz o nome da luz universal da cultura ocidental: “Uma outra Atenas se erguerá”. Este é o sopro de vida, a vida grega e ateniense refeitas, para que o poeta rogue em seu fio de esperança e visão do futuro: “Oh cessa! devem o ódio e a morte inda volver?/Cessa! tem o homem de matar e de morrer?”. Funda utopia esta de cessar a morte.
OZIMÂNDIAS:
O soneto tem imagens clássicas, e é o retrato da prepotência arrogante, de um Ozimândias que se arvora Rei dos Reis, a queda se dá em seus pés na areia: “Ao vir de antiga terra, disse-me um viajante:/Duas pernas de pedra, enormes e sem corpo,/Acham-se no deserto. E jaz, pouco distante,/Afundando na areia, um rosto já quebrado,/De lábio desdenhoso, olhar frio e arrogante:” A posição da fera está aqui: “No pedestal estas palavras notareis:/“Meu nome é Ozimândias, e sou Rei dos Reis:/Desesperai, ó Grandes, vendo as minhas obras!”/Nada subsiste ali. Em torno à derrocada/Da ruína colossal, a areia ilimitada/Se estende ao longe, rasa, nua, abandonada.” O colosso de sua febre, e seu sonho que afunda na areia, duas pernas de pedra, a dizer tenho grandes minhas obras, assim elevado em meu pedestal, desesperai.
ODE AO VENTO OESTE:
Momento áureo da poesia de Percy Shelley: “Selvagem Vento Oeste, ó tu, sopro do outono,/Invisível presença de que as folhas mortas/Fogem como fantasmas diante de algum bruxo,”. Que segue os versos naturais, de um fundo poético e científico, de uma visão do poeta conhecedor do vento e de seu destino, o vento oeste: “O clarim sobre a terra sonhadora e encha/De cores e perfumes a planície e os montes,” Este vento ele chama: “Espírito selvagem que por toda a parte/Te moves; destruidor e salvador, oh escuta!”. A natureza aparece aqui em esplendor: “Tu em cuja corrente, em meio à agitação/Do íngreme céu, as nuvens caem como folhas/Desses confusos ramos – Firmamento e Mar -,”. E segue o vento oeste e a visão de Shelley: “De teus vapores: atmosfera espessa de onde/Chuva, fogo e granizo saltarão: oh, escuta!” O vento em seu sentido acorda: “Tu que acordaste de seus sonhos de verão/O azul Mediterrâneo, onde este era embalado/Pelo rumor de suas correntes de cristal,”. E o poeta deseja a fusão com o vento oeste, para se livrar de sua sina mortal: “Se eu fosse alguma folha morta, que levasses;/Se eu fosse a nuvem célere a voar contigo;” (…) “eu não teria/Lutado assim contigo, a suplicar aflito./Como se eu fosse onda, nuvem, folha, oh ergue-me!” (…) “Alguém igual a ti: rápido, altivo, indômito.” O poeta dá sentido a seu desejo, ele bem queria ser o vento oeste, este que tem em si todas as potências que falta ao poeta sonhando em seu espírito este ser completo que ele vê no vento, quando diz, em versos: “Tua lira é a floresta, e que eu também o seja;” (…) “Faze-te, bravio espírito,/O meu espírito! Ó impetuoso, sê eu próprio!” (…) “Leva meus pensamentos mortos pelo mundo,/Quais folhas murchas, e haverá um renascimento!/E, pela força encantatória destes versos,/Espalha a minha voz por entre a humanidade,”. O vento aqui se encerra como o mensageiro da obra de Percy Shelley para a humanidade. É a poesia que lhe dá potência, e é na poesia que Shelley pode ser o próprio vento oeste.
PROMETEU LIBERTADO: ATO II – CENA I
Das rajadas do céu, de todas, tu desceste,
Como um espírito, ou um pensamento, faz
Indesejado o pranto afluir aos córneos olhos
E palpitar o desolado coração,
Que deverá aprender a repousar: desceste
No berço das tormentas: Primavera, acordas!
Filha de muitos ventos! Tão subitamente
Tu chegas, tal como a recordação de um sonho
Que é triste agora porque foi encantador,
Tal como o gênio ou alegria que se eleva
Como da terra e veste de umas nuvens áureas
O deserto da nossa vida.
A quadra é esta, é este o dia, a hora é esta;
Virias ao raiar do sol, doce irmã minha,
Há muito desejada e tão morosa, vem!
Como vermes de morte arrastam-se os momentos!
O ponto de uma estrela branca ainda tirita
Fundo na luz laranja de manhã crescente,
Além dos montes púrpura: através da fenda
Feita na bruma pelo vento, o lago escuro
Reflete-a; esvai-se agora; brilha novamente,
Como desmaia a vaga, e como os fios ardentes
Da entretecida nuvem se desfazem no ar;
Perdeu-se; e em picos de uma neve como nuvem
Tremula a rósea luz do sol; não ouço a música
Eólia de suas plumas, verdes como o mar,
Abanando a aurora carmesim?
HELLAS: CORO FINAL
No mundo a grande idade se inicia novamente,
Voltam as quadras redouradas,
Renova a terra, como uma serpente,
Suas ervas de inverno fatigadas:
O céu sorri, e fés e impérios raiam,
Como restos de sonhos que se esvaiam.
Uma Hélade mais fúlgida levanta os montes
Da onda mais serena e mais louçã;
Faz, um novo Peneu, rolarem suas fontes
Ante a estrela da manhã.
Onde mais belo Tempe enflora aí estão a cochilar
As jovens Cíclades em mais ensolarado mar.
Fende o mar alto uma Argo mais magnificente,
Carregada com espólio mais recente;
Um outro Orfeu modula novamente,
E ama, e chora, e morre cruelmente.
Um novo Ulisses deixa uma vez mais
Calipso pela terra de seus pais.
Oh não descrevas mais Troia em porfia,
Se o livro da ruína a terra deve ser!
Nem com a raiva laiana mescles a alegria
Que sobre os livres eis a alvorecer.
Ainda que renove, Esfinge mais sutil,
Fatais enigmas: Tebas nunca os soube, hostil.
Uma outra Atenas se erguerá
E para mais remota idade
Tal como o ocaso ao firmamento, legará
O resplendor de sua mocidade;
E deixará, se nada tão brilhante há de viver,
O que o céu pode dar e a terra receber.
Saturno seu repouso longo e Amor o seu
Hão de romper, melhores, mais luzidos,
Que todos os caídos, Um que a si se ergueu,
Muitos não vencidos:
Pranto votivo e flores-símbolos no altar,
Nem o ouro nem o sangue aí hão de mostrar.
Oh cessa! devem o ódio e a morte inda volver?
Cessa! tem o homem de matar e de morrer?
Oh cessa! não esgotes a urna, até a lia,
Da amarga profecia.
O mundo se cansou de seu passado, sim,
Que possa ele morrer ou descansar por fim!
OZIMÂNDIAS
Ao vir de antiga terra, disse-me um viajante:
Duas pernas de pedra, enormes e sem corpo,
Acham-se no deserto. E jaz, pouco distante,
Afundando na areia, um rosto já quebrado,
De lábio desdenhoso, olhar frio e arrogante:
Mostra esse aspecto que o escultor bem conhecia
Quantas paixões lá sobrevivem, nos fragmentos,
A mão que as imitava e ao peito que as nutria.
No pedestal estas palavras notareis:
“Meu nome é Ozimândias, e sou Rei dos Reis:
Desesperai, ó Grandes, vendo as minhas obras!”
Nada subsiste ali. Em torno à derrocada
Da ruína colossal, a areia ilimitada
Se estende ao longe, rasa, nua, abandonada.
ODE AO VENTO OESTE
I
Selvagem Vento Oeste, ó tu, sopro do outono,
Invisível presença de que as folhas mortas
Fogem como fantasmas diante de algum bruxo,
Pálidas, amarelas, pretas ou vermelhas
De febre, pestilentas multidões; ó tu
Que as sementes aladas levas ao seu leito
De inverno, onde repousam frias e prostradas,
Como cadáveres nos túmulos, até
Que a tua irmã azul da primavera toque
O clarim sobre a terra sonhadora e encha
De cores e perfumes a planície e os montes,
Levando aos pastos do ar rebanhos de botões;
Espírito selvagem que por toda a parte
Te moves; destruidor e salvador, oh escuta!
II
Tu em cuja corrente, em meio à agitação
Do íngreme céu, as nuvens caem como folhas
Desses confusos ramos – Firmamento e Mar -,
Anjos da chuva e do relâmpago, as madeixas
Da tempestade que está vindo se derramam
Na superfície azul de tua vaga aérea,
Desde a fímbria sombria do horizonte ao zênite,
Como o cabelo erguido, a rebrilhar, da fronte
Da Mênade bravia, Tu, cântico fúnebre
Do ano que está morrendo, para o qual esta última
Noite será o domo de um sepulcro enorme,
Abobadado com a força congregada
De teus vapores: atmosfera espessa de onde
Chuva, fogo e granizo saltarão: oh, escuta!
III
Tu que acordaste de seus sonhos de verão
O azul Mediterrâneo, onde este era embalado
Pelo rumor de suas correntes de cristal,
Na angra de Baía, ao pé de ilhas de pedra-pomes,
E via em sonho velhas torres e palácios
No dia mais intenso da onda estremecerem,
Recobertos de musgo azul e de tão doces
Flores, que desmaiamos ao pensarmos nelas!
Tu, a cuja passagem se abrem em abismos
As planícies atlânticas, enquanto embaixo
As flores submarinas e os limosos caules
De folhagem sem seiva a voz te reconhecem
E de repente empalidecem de pavor
E tremem e despojam-se de todo: oh escuta!
IV
Se eu fosse alguma folha morta, que levasses;
Se eu fosse a nuvem célere a voar contigo;
Uma onda ofegando sob o teu poder
E partilhando o impulso dessa tua força,
Só menos livre do que tu, ó indomável!
Se eu fosse igual ao que já fui na meninice,
O companheiro dessas fugas pelo céu,
Quando vencer tua celeste rapidez
Em nada parecia um sonho; eu não teria
Lutado assim contigo, a suplicar aflito.
Como se eu fosse onda, nuvem, folha, oh ergue-me!
Nos espinhos da vida eu caio! Estou sangrando!
Um grave fardo de horas encadeou e verga
Alguém igual a ti: rápido, altivo, indômito.
V
Tua lira é a floresta, e que eu também o seja;
Ser como as dela as minhas folhas caem, que importa!
O tumulto de tuas fortes harmonias
Tirará de nós dois profundo som de outono,
Doce mas triste. Faze-te, bravio espírito,
O meu espírito! Ó impetuoso, sê eu próprio!
Leva meus pensamentos mortos pelo mundo,
Quais folhas murchas, e haverá um renascimento!
E, pela força encantatória destes versos,
Espalha a minha voz por entre a humanidade,
Como cinzas e chispas de lareira acesa!
Para a terra que dorme, sê, com estes lábios,
Oh! a trombeta de uma profecia! Vento,
Se chega o inverno, estará longe a primavera?
Gustavo Bastos, filósofo e escritor