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Proibição de livro em Vitória: ‘inadequado é uma criança passar fome’, diz autora

Mais na coluna: outros livros; não é a primeira vez; a realidade; dicas

Em um ano recheado de críticas por parte da comunidade escolar em relação à política educacional de Vitória, com pedido de abertura de diálogo sobre implantação do tempo integral e de explicações  sobre a exoneração de diretores eleitos em processo democrático, na última semana de 2023, mais uma iniciativa da Secretaria Municipal de Educação (Seme) causou polêmica. Poucos dias após o Natal, a gestão de Lorenzo Pazolini (Republicanos) “presenteou” os munícipes com o recolhimento de três livros de literatura infantil das escolas da rede municipal de ensino.

Editora Kazua

Um deles, O Peixinho, é da escritora capixaba Fabiani Taylor, que diante do ocorrido, conclui que “o desrespeito às diversidades na escola falou mais alto”. E apontou, com muita clareza: “inadequado é uma criança passar fome, sofrer violência doméstica, vender paçoca no sinal ao invés de estar na escola estudando, dormir nas ruas ou abandonadas em casas de passagens sem saber o que é o amor de uma família, sem uma escola adequada para estudar, enfim, sem poder desfrutar de seus direitos”.

Mas o que há no livro?

O Peixinho é um livro que fala sobre a abertura para novas amizades, pois um peixe que não se relaciona com outros tipos de animais consegue se tornar amigo de um cavalo marinho e de um polvo. Para além da abertura para novas amizades, uma boa reflexão sobre amar e respeitar os diferentes, certo? Mas para a Prefeitura de Vitória, o livro é problemático porque a autora o dedicou “a todxs xs funcionárixs da EEEFM Profª Filomena Quitiba, minha escola do coração. A todxs xs alunxs que já passaram por minha vida, gratidão por terem me ensinado a ser professora.” Gestorxs, o que vocês veem de tão terrível nisso?

‘O mundo não é conto de fadas’

Fabiani Taylor informou à coluna que é graduada, pós-graduada, mestra em Letras e há 25 anos atua na educação. É, ainda, professora efetiva, em Piúma, no sul do Estado. Diante da sua formação e trajetória profissional, ela afirma que é impossível ignorar a diversidade que já perpassou por sua vida em tantos anos dedicados à sala de aula. “Penso que temas como racismo, feminicídio, gênero, meio ambiente, trânsito, drogas e tantos outros devem estar presentes na escola, pois o mundo não é um conto de fadas”, ressalta.

Boas perguntas!

A escritora também faz questionamentos que precisam ser respondidos, pois isso faz parte da construção de uma educação inclusiva e crítica, que vai, inclusive, ao encontro do combate a diversas formas de violência, como a homofobia e transfobia. “Fico triste em pensar que existem pessoas que, supostamente, ignoram as realidades existentes na escola. O que fazem quando a criança/adolescente tem dois pais ou duas mães? Quando a criança/adolescente mudou o nome?”, referindo-se, nessa última indagação, àquelas que têm nome social.

É preciso dar respostas

É necessário dar respostas para essas e outras perguntas. A coluna adiciona à lista algumas outras: como fazem quando lidam com situações de racismo em sala de aula? De que forma lidam com alunos com histórico de violência doméstica? Como tratar de questões como a misoginia na escola? São muitas as perguntas a serem feitas sem se esquivar de achar respostas, pois são elas que irão auxiliar a comunidade escolar a elaborar ações que contribuam para redução da violência dentro e fora das unidades de ensino.

Os outros livros

O outro livro recolhido pela Prefeitura de Vitória foi Mamãe Nunca me Contou, da escritora inglesa Babette Cole, que proporciona entre os leitores reflexões sobre questões diversas, como sua origem, as diferenças entre meninos e meninas, identidade de gênero e adoção. Certamente, um dos motivos do recolhimento foi não querer debater aquilo que é realidade, ou seja, que vivemos em um mundo no qual sempre existiram, existem e existirão, identidades de gênero diversas, que isso é normal e deve ser respeitado. Foi para passar por cima da importância e da necessidade de fazer com que as crianças conheçam o próprio corpo, o que é extremamente saudável. Se não se pode falar nas escolas da diferença entre meninos e meninas, como fica um professor de Ciências ou Biologia? Simplesmente vai ignorar a existência do sistema reprodutor nas aulas de anatomia?

Os outros livros II 

Além de O Peixinho e Mamãe Nunca me Contou, foi recolhido O Barba Azul. O livro traz como personagem principal um homem rico, muito educado, que tinha uma barba azul. Quando casou com uma moça encantada pelo seu jeito de tratar as pessoas, proibiu a nova esposa de entrar em um cômodo da casa. Em sua ausência, ela o desobedeceu e encontrou no local os corpos das esposas desaparecidas. Ao descobrir, Barba Azul tentou matá-la, mas foi assassinado pelos irmãos dela. A jovem herda a fortuna do falecido. 

Os outros livros III

O que pode incomodar nessa história? Talvez a coragem de uma mulher que desobedece o marido, violando a defesa da submissão feminina feita em nossa sociedade? Um homem que é impedido de agredir sua esposa por ter sido desobedecido em um mundo no qual ainda se dá esse “direito” ao homem como forma de “corrigir” a mulher? Ver que a família se posicionou ao lado da vítima e a defendeu, quando, na realidade, o que normalmente acontece é ela ser colocada como ré pela família, pela Igreja, pelo Estado?

Não é a primeira vez

Não se trata da primeira vez que livros infantis são recolhidos das unidades de ensino municipais de Vitória. Em 2017, na gestão do então prefeito Luciano Rezende (Cidadania), aconteceu o mesmo com o livro Enquanto o Sono Não Vem, de autoria de José Mauro Brant, por causa do conto A Triste História de Eredegalda. Nele, o pai de Eredegalda a pede em casamento e propõe que a mãe dela, após o casório, se torne a criada da casa. A menina diz não, é punida pelo pai, sendo aprisionada em uma torre, sem água e se alimentando de carne com sal. Ela pede ajuda às irmãs e à mãe, que se negam a dar água por medo do que o pai de Eredegalda pode fazer com elas. No final, a menina morre.

Não é a primeira vez II

PMV

Na época, o prefeito Lorenzo Pazolini ainda não tinha sido eleito a nenhum cargo público, mas já era conhecido por sua atuação como titular da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA). Em entrevista à TV Gazeta, na ocasião, Pazolini defendeu que o livro não poderia ter sido levado até as crianças, pois muitas viveram ou presenciaram cenas de abuso e a obra poderia fazer com que revivessem isso em sala de aula, “trazendo consequências dentro e fora dela”.

A realidade

A história de Eredegalda se assemelha, infelizmente, a de muitas crianças do Brasil, do nosso Estado. De acordo com boletim do Ministério da Saúde, no período de 2015 a 2021, foram notificados 202,9 mil casos de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil, sendo 83,5 mil contra crianças e 119,3 mil contra adolescentes. Ainda segundo o estudo, divulgado em maio deste ano, a residência das vítimas é o local de ocorrência de 70,9% dos casos de violência sexual contra crianças de 0 a 9 anos de idade e de 63,4% dos casos contra adolescentes de 10 a 19 anos. Familiares e conhecidos são responsáveis por 68% das agressões contra crianças e 58,4% das agressões contra adolescentes nessas faixas etárias.

A realidade II

A literatura tem como um de seus papéis proporcionar reflexões sobre questões que perpassam  a nossa existência. Uma literatura para crianças e adolescentes livre de tabus, abordando temas considerados complexos de forma adequada para uma determinada faixa etária, é importante para que profissionais da educação, famílias e os próprios estudantes possam se deparar com questões que perpassam o universo infanto juvenil, mas que em uma sociedade conservadora e cheia de verdades absolutas, muitos preferem fingir que não existem, como o abuso sexual no seio familiar. 

Falar do pai que assedia a filha, como em A Triste História de Eredegalda,  é levar às pessoas a compreensão de que é preciso desromantizar a família, e isso nada tem a ver com não valorizar essa instituição ou criminalizar. Tem a ver com compreender que, infelizmente, a violência doméstica contra crianças e adolescentes existe. Quantas crianças não denunciam as violências vividas porque sabem que serão apontadas como mentirosas em uma sociedade que prega que todo pai e toda mãe, sem distinção, são fonte de afeto e proteção? Negar a realidade é “jogar sujeira para debaixo do tapete”. Só é bom para o agressor, nunca para as vítimas, e contribui para que existam ainda mais vítimas, em um ciclo de violência que não cessa. 

 Dicas

Diego Nunes

Por fim, algumas dicas de literatura infanto-juvenil de autores capixabas que trazem reflexões importantes. Folhas de Castanheira, de David Rocha, aborda a questão do luto, da recordação daquilo que é impossível ser revivido. E Se o Mundo Descostura, de Aline Dias, a história da amizade entre Desalinho, menina de espírito aventureiro, e Delírio, uma menina cadeirante muito inteligente e curiosa. Fala sobre diferenças, sentimentos, saudade e superações. Minha Cariacica, de Kátia Fialho, conta a história do município de Cariacica, na Grande Vitória, abordando, inclusive, como a mobilização popular foi importante para a conquista de direitos por parte dos moradores da cidade.

Um feliz ano novo para todxs (rs) ! Até a próxima coluna!

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