Idosos da comunidade de Cachoeiro participaram de oficinas e gravaram depoimentos em vídeo
“Nós comecemo a trabalhar com uns cinco ano. Mas nós não conhecia dinheiro, era um pedacinho de papelão, eles botava aqueles trocado ali, tinha que comprar tudo lá na venda porque eles num dava dinheiro. Ninguém nem sabia o que era dinheiro. Depois foi aparecendo um tostão, duzentos réis, depois quinhentos réis, aí foi subindo. E nós só tinha duas muda de roupa: era uma de serviço e outra de sair.”
O trecho acima é uma tentativa de transcrição de parte do depoimento oral de Dona Ilinha, da comunidade quilombola de Monte Alegre, em Cachoeiro de Itapemirim, no sul do Estado. O mais indicado é que o leitor confira por si mesmo a riqueza de seu relato no vídeo que gravou para o projeto “Memórias do Quilombo Monte Alegre”, realizado no segundo semestre de 2023 pela Associação de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial Cachoeirense.
O projeto contou com oficinas e reuniões realizadas com pessoas idosas da comunidade, nas quais elas narravam suas memórias. Dentre as que participaram, dez delas gravaram depoimentos em vídeo, que começaram a ser lançados nessa segunda-feira (16) no canal de YouTube da associação (clique aqui).
Além do depoimento de Dona Ilinha, também já é possível assistir à gravação de Dona Benedita. Nas próximas semanas, serão postados os vídeos de Dona Maria Laurinda, Dona Neuza, Dona Geralda, Dona Zeli, Seu Nicomédio, Seu Rimbo, Seu Paulo Adão e (…). Os próprios participantes dos encontros escolheram entre eles quem gravaria, a partir de avaliações da desenvoltura de cada um.
“Esse projeto teve como objetivo reavivar as memórias dos idosos da comunidade, em reuniões e encontros com pessoas acima de 70 anos, mas que eram abertas a todas as idades. Nessas oficinas, eles iam contando as memórias dos tempos antigos e a gente foi registrando”, explica o coordenador da iniciativa, Genildo Coelho.
Também foram realizadas rodas de caxambu mensais, com a presença de grupos de outras localidades. Em Monte Alegre existe o tradicional grupo Caxambu Santa Cruz, cuja história foi registrada em um livro lançado em maio.
“Sabe aquela história de que ‘quem conta um conto aumenta um ponto’? Foi isso o que aconteceu nesses encontros. Os grupos tiveram a oportunidade de cada um relatar as origens do caxambu a partir de suas diferentes perspectivas, criando um imaginário muito rico. Até os anos 80 e 90, ainda era muito difícil esse tipo de intercâmbio. Foi a partir de 2005, com o reconhecimento do Jongo como Patrimônio Imaterial, que as coisas começaram a mudar um pouco”, comenta Genildo.
Outro ponto do projeto foi a realização de intervenções mensais em reuniões da associação comunitária, nas quais se falava sobre direitos das comunidades quilombolas. “Inicialmente, não estava previsto que isso acontecesse. Mas o grande desafio que a gente via em relação aos problemas da comunidade, em termos de serviços públicos, é que as pessoas não conheciam os caminhos para procurar os seus direitos” explica o coordenador do projeto.
Memórias replicadas
Nas oficinas com os idosos, a intenção era reavivar suas memórias da vida em comunidade. Mas também foram realizadas atividades com crianças, nas quais mestras de caxambu deram ensinamentos sobre essa prática, um tipo de dança de roda com tambores e cantoria. Assim, a intenção era fazer com que as memórias fossem replicadas.
“Antigamente, os mais jovens, conforme iam passando da infância para adolescência, começavam a ter vergonha de participar de caxambu, muito por conta de questões naturais da idade. Hoje, a gente já vê que isso está mudando, que os mais jovens inclusive estão assumindo posições de liderança nas rodas. Isso é importante para que a tradição se perpetue”, comenta Genildo.
Financiamento
A Associação de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial Cachoeirense foi criada em 2001, com o nome de Associação de Folclore do Município de Cachoeiro de Itapemirim. Desde então, tem realizado diversos projetos voltados à cultura popular, tanto em Monte Alegre quanto em outros locais de Cachoeiro.
A diferença é que o projeto “Memórias do Quilombo Monte Alegre” contou com um financiamento maior, através de patrocínio da ES Gás, por meio da Lei de Incentivo à Cultura Capixaba (LICC), da Secretaria de Estado da Cultura (Secult-ES). “Com esses recursos, conseguimos fazer algo mais robusto. Esse projeto foi uma espécie de síntese de todos os projetos que fizemos até aqui, e que continuaremos fazendo”, completa Genildo Coelho.
‘Política estadual de preservação do patrimônio é frágil’
https://www.seculodiario.com.br/cultura/politica-estadual-de-preservacao-do-patrimonio-e-fragil