BIOGRAFIA DE PÚCHKIN – PARTE II
A sublevação de 14 de dezembro de 1825 é conhecida como “sublevação dos dezembristas”, a qual visava a derrubada da autocracia e a instauração de um regime constitucional, e que resultou em fracasso, e entre os papéis dos que foram capturados encontravam-se poesias de Púchkin. Este, por sua vez, decidiu apelar ao czar contra o enforcamento dos prisioneiros,mas Jukóvski lhe convenceu a continuar escrevendo a sua tragédia sobre Godunov.
Contudo, em setembro de 1826, o czar mandou um correio militar a Mikháilovskoie para levar Púchkin até Moscou, e o czar foi benevolente com o poeta, pois não se incomodou com o fato de Púchkin ter estado entre os sublevados, já que perdoou o poeta e lhe autorizou a permanência em Moscou.
Logo em seguida, foi publicado o volume de Poemas de Púchkin, que é bem recebido pelo público e pela crítica, porém a tragédia Boris Godunov, que ainda não tinha sido editada, fez com que o czar sugerisse alterações, no que Púchkin não concordou, demorando cinco anos para tal trabalho ir ao prelo.
Púchkin então frequenta o salão da princesa ZinaidaVolkónskaia, no que Púchkin lhe musica os versos de “Apagou-se a diurna estrela”, e é neste meio que o poeta encontra a esposa de um dos dezembristas, AleksandraMuraviova, e surgem duas poesias: uma para o amigo Púchtchin; e outra, para os prisioneiros dezembristas, e ainda a composição, também para os dezembristas, Arião.
Pouco tempo depois, sua poesia André Chenier, que fora impressa com lacunas provocadas pela censura, o coloca de novo diante da polícia para esclarecimentos, e um dos trechos tirados pela censura se espalha com o título Ao 14 de Dezembro, que é a data da sublevação dos dezembristas, no que o poeta diz que tal escrito tinha sido feito antes da sublevação, e que se referia à Revolução Francesa. No entanto, a polícia foi ordenada a vigiar Púchkin secretamente.
Em Petersburgo, Púchkin se apaixona por Anna Olênina, filha do presidente da Academia de Artes, e ao ouvi-la cantar algo de Glinka, se lembra de Maria Raiévskaia, e faz a poesia “Não cantes, bela, frente a mim …”. Contudo, é recusado pelo pai da jovem, pois mesmo com o talento, era um alvo de desconfiança pelas autoridades.
Em Moscou, Púchkin encontra o amor da sua vida, e também causa de sua morte, Natália Gontcharova, então com 16 anos, e pede aos Gontcharov a mão de Natália, no que é admitido pela família. Neste ínterim, o pai de Púchkinlhe deixa parte de sua propriedade. O poeta viaja para Boldino, e ali escreve várias poesias, entre as quais Os diabos e Elegia (“Dos anos loucos a alegria extinta …”), e consegue terminar EvguêniOnêguin, que já tinha várias partes publicadas nos anos anteriores, e o autor, finalmente, considera terminada a sua obra no outono de 1831. E escreve, logo a seguir, em prosa, as Novelas do finado Ivan PetróvitchBélkin, que é um conjunto de cinco estórias, mas que é mal recebida pela crítica, e que só ganha espaço aos poucos, pois o ambiente literário ainda era dominado, geralmente, pelo estro byroniano.
Púchkin escreveu depois o conjunto a que chamou Cenas dramáticas: O cavaleiro avarento, Mozart e Salieri, O convidado de pedra, O festim no tempo da peste, vindo também História do povoado de Goriúkhin e trabalhos para um jornal literário publicado por Dél`vig. E o poeta se casa com Natália Gontcharova no dia 18 de fevereiro de 1831, e a ela dedica um belo soneto de título Madona. E a glória alcançada pelo poeta permitia que Natália tivesse acesso aos círculos sociais, o que levou Púchkin a gastar mais do que tinha, se endividando com empréstimos ao tesouro público.
Púchkin então viaja para colher material para a sua História de Pugatchov, que era sobre o chefe de rebelião camponesa na Rússia do século XVIII, e em Boldino, em menos de dois meses, ele compõe este trabalho, mais os poemas Ângelo e O cavaleiro de bronze, o Conto do pescador e do peixinho (em verso) e a pequena novela A dama de espadas, dentre outros escritos. E também deixa a sua poesia, O outono, inacabada.
POEMAS
SEM TÍTULO :O poema, bem inspirado em estro amoroso, contém certo esgar amargo, um efeito visual de agonia, e o som da canção da musa que Púchkin já não quer ouvir: “Não cantes, bela, frente a mim,/Tuas canções da Geórgia triste:”. E a memória padece desta agonia que traz a canção, a tristeza da Geórgia, e o poema que contempla a paisagem e a própria dor, que se misturam neste poema: “Ai! elas me fazem lembrar,/Essas dolorosas canções,/A estepe, a noite e, vista ao luar,/De pobre donzela as feições”.
O TALISMÃ :O poema tem um tom místico, o mito do talismã que protege aquele que o carrega, e que até tem este viés de sorte também, e o poeta descreve tal dom espiritual de tal símbolo: “Lá onde o mar se esparrama/Sobre pétrea solidão,/E o luar morno se derrama/Sobre a grata escuridão,” (…) “A maga, em meio a carícias,/Entregou-me um talismã./E falou-me carinhosa:/“Conserva meu talismã:/Nele há força misteriosa!”. A força deste mistério o poema canta, e contra os males o poema tem no talismã sua homenagem: “Contra doença e sepultura,/Tempestade e tufão,” (…) “As riquezas do Oriente/Ele não te ofertará,”. Portanto, não é a riquezas que o talismã se dirige, mas a algo essencial, o poder de deter as ameaças, e que o poema dá a nota: “Mas quando olhada astuciosa,/Súbito, te enfeitiçar,” (…) “Da traição e do olvido/Livrará meu talismã!”.
O CÁUCASO: O poema tem uma descrição de uma paisagem de abismo, e o poeta lhe dá o verso certo: “O Cáucaso observo. Num pico, de pé,/Estou sobre as neves, de abismo diante;”. E vai adiante, com o movimento que lhe dá: “Daqui, das torrentes vejo o nascimento,/Do alude funesto o inicial movimento.”. E a paisagem vira um tipo de fera, e que é um império de colosso, a opressão de tudo o que é vasto e grandioso canta o poema em estro tonitruante: “Brinca e ruge, como cria de animal/Querendo a ração que está fora da grade,/A lançar-se à praia, em sua hostilidade,/E, ávido, a lamber as rochas, por seu mal …/Debalde! ração não acha ou refrigério:/Colosso calado o oprime com império.”.
SEM TÍTULO :A lira do poeta quer erguer o sobrenatural, ir além da capacidade humana, o impossível aqui é o poema que tenta ser um monumento: “Um monumento ergui a mim, obra extra-humana./Sua vereda o mato não há de ocultar.”. E a lira também se quer imortal, enfrenta a morte e deseja a glória: “Todo não morrerei: a alma que pus na lira/As cinzas vencerá, da morte há de escapar;/Fama no orbe terei que sob a lua gira/Enquanto um poeta restar./Ouvirá sobre mim toda a Rússia grandiosa,/Nela fará meu nome a cada língua jus:”. A profecia histórica do grande poeta russo, e que faz deste um dos maiores, e que também sabe de tudo, já que é profeta, não dá asas ao elogio e à calúnia, e sabe muito bem que aquele que sempre se insinua e acha pretexto, é um rematado paspalho, e isso a poesia sabe identificar no rumo que o verso dá: “Ao chamado maior, sê, Musa, obediente,/Sem ofensas temer, sem pedir galardão;/Elogio e calúnia acolhe, indiferente,/Nem dês ao paspalho atenção.”.
SEM TÍTULO :O poema conflita com a loucura, e a luz da razão é aqui bem valorada: “Que eu não perca a luz da razão./Antes a sacola e o bordão./Prefiro a fome e a dor./Não é que eu minha lucidez/Estime, e não queira de vez/Seus limites transpor.”. Mas logo o descompasso fértil é o próprio êxtase, esta harmonia invisível aos que vivem como mortais, e que ao poeta aparece como as suas visões originais: “Vejo-me, em êxtase, a cantar,/De mim ausente, a suscitar,/Visões originais.”. E o poeta canta a liberdade: “Livre, mostraria vigor”. Mas o poeta sabe que é a ruína perder a razão, no que o poema segue: “Desgraça é: perde a razão,/E como à peste temer-te-ão,/Preso sempre estarás;/A ferros o louco porão,/E pela grade atiçar-te-ão/Como a cria alguém faz./Rouxinol, à noite, afinal,/Não ouvirei, ou carvalhal/- Doces murmurações -,/Mas de amigos meus o clamor,/Pragas de noturno inspetor,/Guinchos, sons de grilhões.”. A loucura, ao fim, é quando o êxtase se dilui insano e leva o poeta aos grilhões, uma sandice de que o poeta é pródigo (todos os poetas).
O ANTIAR :A imensidão se abre no poema, e o veneno está presente, inclemente: “Em erma e seca solidão,/Solo que o sol torna candente,/Ergue-se, em meio à imensidão,/Sozinho, o antiar, guarda inclemente.”. O feitiço que mata, eis: “Ave em seu rumo não vai, nem/Tigre se achega: o remoinho,/Só, pousar nessa árvore vem/E logo a deixa, já daninho.”. Mas tem os que trazem o tal veneno: “Alguém, no entanto, alguém mandou/Ao antiar, com soberbo aceno/Do olhar, e, dócil, caminhou/O outro e, manhã, trouxe o veneno.” (…) “Trouxe – e deitou-se, sem vigor,” (…) “E o czar no veneno embebeu/As setas suas obedientes/E nelas morte remeteu/A mais países e outras gentes.”. E o veneno, ao fim, torna a morte ampla em seu poder, no que o poeta constata a queda geral na sua coda.
POEMAS:
SEM TÍTULO
Não cantes, bela, frente a mim,
Tuas canções da Geórgia triste:
Fazes-me recordar assim
Viver em praia que não viste.
Ai! elas me fazem lembrar,
Essas dolorosas canções,
A estepe, a noite e, vista ao luar,
De pobre donzela as feições.
Eu a meiga e fatal visão
Esqueço quando estás presente.
Mas entras a cantar, e então
A moça lembro novamente.
Não cantes, bela, frente a mim,
Tuas canções da Geórgia triste:
Fazes-me recordar assim
Viver em praia que não viste.
(1828)
O TALISMÃ
Lá onde o mar se esparrama
Sobre pétrea solidão,
E o luar morno se derrama
Sobre a grata escuridão,
Onde, do harém nas delícias,
Dias passa o fiel do Islã,
A maga, em meio a carícias,
Entregou-me um talismã.
E falou-me carinhosa:
“Conserva meu talismã:
Nele há força misteriosa!
E é dado com paixão grã.
Contra doença e sepultura,
Tempestade e tufão, sã
Tua cabeça, e segura,
Não dará meu talismã.
As riquezas do Oriente
Ele não te ofertará,
Nem a muçulmana gente
Sob teu governo porá;
Nem de cruéis terras estranhas
Ao seio desta alma irmã
Por vales e por montanhas
Trar-te-á meu talismã …
Mas quando olhada astuciosa,
Súbito, te enfeitiçar,
Ou, em noite tenebrosa,
Outra boca te beijar,
Da perfídia, meu querido,
Da dor no imo e seu afã,
Da traição e do olvido
Livrará meu talismã!”
(1827)
O CÁUCASO
O Cáucaso observo. Num pico, de pé,
Estou sobre as neves, de abismo diante;
Havendo-se alçado de cume distante,
Uma águia pairando ante mim ora é.
Daqui, das torrentes vejo o nascimento,
Do alude funesto o inicial movimento.
Aqui nimbos passam, humildes, sob mim;
Despenham-se entre eles cachoeiras rugindo;
Sob elas penhascos lisos vão surgindo;
Musgo e sarça, secos, abaixo há, e, enfim,
Ali vejo bosques, caminhos sombreados
Onde aves gorjeiam e folgam veados.
Lá ninho até gente nas montanhas faz,
Ovelhas saltitam nas gratas vertentes,
E desce o pastor para as várzeas ridentes
Que o Aragva entre sombras percorre sem paz,
E o pobre a cavalo em garganta se oculta
Onde o Térek brinca e, em sua fúria, exulta.
Brinca e ruge, como cria de animal
Querendo a ração que está fora da grade,
A lançar-se à praia, em sua hostilidade,
E, ávido, a lamber as rochas, por seu mal …
Debalde! ração não acha ou refrigério:
Colosso calado o oprime com império.
(1829)
(Aragva: Rio da Geórgia.)
(Térek: Rio que nasce na Geórgia e desemboca no Mar Cáspio.)
SEM TÍTULO
Exegimonumentum.
Horácio (livro III, ode XXX)
Um monumento ergui a mim, obra extra-humana.
Sua vereda o mato não há de ocultar.
Eleva-se bem mais sua cúpula ufana
Do que o alexandrino pilar.
Todo não morrerei: a alma que pus na lira
As cinzas vencerá, da morte há de escapar;
Fama no orbe terei que sob a lua gira
Enquanto um poeta restar.
Ouvirá sobre mim toda a Rússia grandiosa,
Nela fará meu nome a cada língua jus:
O finês, o calmuco estépico, a orgulhosa
Que herdou o eslavo, e a do tungus.
E o povo me amará durante longa idade,
Pois nobres propensões com a lira espertei,
Pois num tempo cruel cantei a Liberdade
E pelos caídos roguei.
Ao chamado maior, sê, Musa, obediente,
Sem ofensas temer, sem pedir galardão;
Elogio e calúnia acolhe, indiferente,
Nem dês ao paspalho atenção.
(1836)
SEM TÍTULO
Que eu não perca a luz da razão.
Antes a sacola e o bordão.
Prefiro a fome e a dor.
Não é que eu minha lucidez
Estime, e não queira de vez
Seus limites transpor.
Se à minha própria discrição
Eu fosse entregue, iria então
Por-me entre os vegetais!
Vejo-me, em êxtase, a cantar,
De mim ausente, a suscitar,
Visões originais.
Escutaria os escarcéus,
Observaria os ermos céus,
Feliz – como hoje, não;
Livre, mostraria vigor
Igual a quando passa por
Campo ou bosque, o tufão.
Desgraça é: perde a razão,
E como à peste temer-te-ão,
Preso sempre estarás;
A ferros o louco porão,
E pela grade atiçar-te-ão
Como a cria alguém faz.
Rouxinol, à noite, afinal,
Não ouvirei, ou carvalhal
– Doces murmurações -,
Mas de amigos meus o clamor,
Pragas de noturno inspetor,
Guinchos, sons de grilhões.
(1833)
O ANTIAR
Em erma e seca solidão,
Solo que o sol torna candente,
Ergue-se, em meio à imensidão,
Sozinho, o antiar, guarda inclemente.
Criou-o em tarde de furor
A sequiosa estepe, e pleno
Fez, das raízes o verdor
E o da ramagem, de veneno.
Ele, do córtex através,
Goteja no tórrido ambiente,
À noite coalhando, ao invés,
Em óleo espesso e transparente.
Ave em seu rumo não vai, nem
Tigre se achega: o remoinho,
Só, pousar nessa árvore vem
E logo a deixa, já daninho.
Se acaso, errante, um nimbo alui
Sobre essa espessa folharada,
Já dela envenenada flui
A chuva na areia esbraseada.
Alguém, no entanto, alguém mandou
Ao antiar, com soberbo aceno
Do olhar, e, dócil, caminhou
O outro e, manhã, trouxe o veneno.
Trouxe ele a resina mortal
E um galho com folhas fanadas;
Lívido estava, e do frontal
Vinham de suor ondas geladas.
Trouxe – e deitou-se, sem vigor,
Sob uma choça de entrecasca,
E aos pés do insensível senhor
Sofreu o escravo a última vasca.
E o czar no veneno embebeu
As setas suas obedientes
E nelas morte remeteu
A mais países e outras gentes.
(1828)
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.