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Repórter de Século Diário lança livro sobre jornal de oposição à ditadura

Elaine Dal Gobbo pesquisou importância do periódico Ferramenta no Espírito Santo

Brunella Negreiros

Em plena ditadura militar, um jornal popular da Pastoral Operária da Arquidiocese de Vitória circulava mensalmente, com matérias sobre organização sindical e movimentos sociais de resistência ao autoritarismo. Mas não só: encontros eram marcados com o público para ler os textos em grupo e pensar em soluções para os problemas.

Essa história é contada no livro Jornal Ferramenta – a comunicação popular na luta contra a ditadura no Espírito Santo, da escritora e repórter do Século Diário Elaine Dal Gobbo, que será lançado no próximo sábado, às 19h, no Triplex Vermelho, no Centro de Vitória. O evento contará também com apresentação musical da cantora Raquel Passos.

O livro, publicado pela Editora NPC, foi produzido por meio do Edital 11/2023 – Produção e Difusão Literária – da Secretaria da Cultura (Secult), com recursos do Fundo Estadual de Cultura (Funcultura). Será vendido por R$ 30 no lançamento. Um primeiro lançamento foi realizado em dezembro passado, no Rio de Janeiro, durante o 30º Curso Anual do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC).

A obra é fruto do curso de mestrado de Elaine no Programa de Pós-Graduação em Comunicação & Territorialidades da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). A pesquisa foi realizada de 2016 a 2017, e a dissertação apresentada em 2018. Para a publicação do livro, Elaine realizou estudos e entrevistas adicionais.

A repórter conta que tomou conhecimento do Jornal Ferramenta na época da graduação em Jornalismo na Ufes, por meio do livro Impressões Capixabas, fruto de um projeto sobre a história do jornalismo no Espírito Santo, coordenado pelo José Antônio Martinuzzo. A obra conta com um capítulo sobre comunicação popular e alternativa, e dedica uma página à trajetória do Ferramenta.

“Achei muito interessante, pois vim das Comunidades Eclesiais de Base e achei significativa a existência de um veículo de comunicação popular no contexto da ditadura militar, no apogeu das CEBs. Aquela página de livro era o único estudo que se tinha até então sobre o Ferramenta, ou seja, apesar da importância desse jornal, ele estava esquecido, sua memória estava se apagando. Por isso resolvi resgatar sua memória, e, consequentemente, parte da história das lutas populares contra a ditadura no Brasil e no Espírito, das CEBs, da Pastoral Operária da Arquidiocese de Vitória, que teve um importante papel na luta pelos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras” conta Elaine.

A pesquisa se concentrou no período entre 1977, quando o periódico foi criado, e 1985, último ano da ditadura militar no Brasil. Elaine recuperou a história por meio de leitura bibliográfica, entrevistas com antigos e atuais integrantes da Pastoral Operária, análise dos exemplares do Ferramenta e também de documentos da época, armazenados no Centro de Documentação Dom Luiz Gonzaga Fernandes, da Arquidiocese de Vitória.

Ex-integrantes do jornal entrevistados pela repórter incluem: Claudio Vereza, ex-deputado estadual pelo Partido dos Trabalhadores (PT), que criou o layout do Ferramenta; Giovandro Ferreira, que hoje é professor do curso de Comunicação Social da Universidade Federal da Bahia (UFBA); e Isaias Santana, que é um militante histórico dos Direitos Humanos no Espírito Santo.

Brunella Negreiros

Ver, julgar, agir

Segundo Elaine Dal Gobbo, a intenção era fazer um jornal para os trabalhadores, mas pelos próprios trabalhadores. A maior parte das matérias do jornal falava sobre sindicalismo. “Os trabalhadores, organizados com a pastoral, estavam formando chapas de oposição sindical para tirar as diretorias das mãos dos chamados pelegos, ou seja, diretoria ligadas ao patronato e ao governo. Também se noticiavam as mobilizações feitas em outros estados, como as dos sindicalistas do ABC paulista. Outros temas eram abordados, como a falta de políticas públicas de transporte, o protagonismo das mulheres, que se mobilizavam nas comunidades populares por direitos, a luta pela moradia, dentre outros temas”, comenta.

O jornal era distribuído nas comunidades da Arquidiocese de Vitória – e, eventualmente, também em municípios fora desse território – e nos ambientes de trabalho. Mas não bastava simplesmente entregar o material aos trabalhadores. A partir encontros, eram realizadas leituras coletivas, aplicando o método “ver, julgar, agir”.

“O ver era a leitura coletiva do jornal. O julgar era o debate sobre aquele conteúdo, de acordo com a realidade do grupo. O agir era, após refletir sobre o problema, traçar, coletivamente, as estratégias de ação para superá-los. Assim surgiram chapas de oposição sindical, associações de moradores, protestos, etc. O mesmo era feito nos locais de trabalho, quando havia uma brecha. Vale lembrar que a Pastoral não fazia restrição de credo. Qualquer pessoa, independente de religião, podia participar do processo de produção do jornal e de grupos de discussão”, explica Elaine.

O livro sobre o Jornal Ferramenta é dividido em quatro capítulos. O primeiro trata do golpe militar de 1964 e a repressão aos movimentos sociais. O segundo aborda a Pastoral Operária da Arquidiocese de Vitória, criada em 1974, tendo completado 40 anos em 2024. O terceiro abrange a trajetória do Ferramenta especificamente. E o quarto fala sobre o fim do jornal, no começo dos anos 2000, dentro de um contexto de enfraquecimento da Pastoral Operária, de mudanças do mundo do trabalho e da falta de apoio da Igreja Católica.

“Em um contexto em que há muitos saudosos da ditadura e até mesmo tentativas de golpe de Estado, temos que evidenciar o quanto a ditadura foi nefasta para o Brasil em todos aspectos. Temos também que rememorar as estratégias de luta e resistência, que podem servir de exemplo para nós, adequando-as ao contexto atual. Uma comunicação com foco na formação cidadã, na luta por direitos podia ser feita tanto na época do Ferramenta, que era impresso em mimeógrafo, quanto pode ser realizada hoje, com a digitalização”, completa Elaine.

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