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Sonhos em Borges, descrições do delírio

Borges segue seu estudo ou análise do sonho e suas implicações já no texto A alma, o sonho, a realidade, no qual tece mais uma vez a tese espiritual, isto é, do sono e sonho como veículos de emancipação temporária da alma, esta que, por sua vez, aqui é lembrada pela visão indígena de índios do Brasil e da Guiana, por exemplo, pois temos que, nas palavras de Borges, “uma pessoa adormecida se afasta de seu corpo e visita lugares”.

Borges cita aqui histórias que vão dos bororos aos índios do Grande Chaco, todos relatando a influência dos sonhos sobre decisões cotidianas, uma vez que a crença de que o sonho é uma realidade espiritual leva a se entender que o sonho é parte do mundo real e não um epifenômeno cerebral, como sonha o materialismo em sua versão mais estrita.

Em Sonho Parisiense – I” de Charles Baudelaire, por sua vez, temos uma descrição poética que nos guia suavemente para os recônditos de uma visão extasiada diante da cidade, o poeta francês de Flores do Mal era um grande conhecedor do fenômeno urbano e de sua contribuição para a poesia nova que Baudelaire já praticava.

Seu relato em prosa tem uma riqueza poética que nos leva a entender o sonho como descrição quase milagrosa ou alucinógena em que a paisagem é desvelada como um espetáculo de pintura, temos em Baudelaire a potência narrativa que nos leva a um spleen mágico em que Paris nos aparece iluminada e sobrenatural, a poesia aqui se associa ao sonho para revestir o texto literário de um ganho em verdade espiritual, aqui, como fundação de uma literatura avançada que celebra Paris poeticamente.

Em O Sonho de Coleridge temos o relato de um escrito, ou melhor, da produção inaudita de um fragmento do escritor e poeta inglês Samuel Taylor Coleridge que, segundo Borges, é o fragmento lírico Kubla Khan que era, por sua vez, produto de um sonho do poeta em um dia de verão de 1797, um fenômeno inusitado por sua circunstância e por seu efeito, e que Borges nos descreve como uma espécie bizarra de sobreposição histórica e mais ainda psíquica.

Coleridge havia lido um texto de Purchas, no qual, segundo Borges, “se narra a edificação de um palácio por Kubla Khan, o imperador que deve sua fama ocidental a Marco Polo”, no que o poeta inglês toma um hipnótico e vai dormir, e o efeito do texto se dá em sonho em uma “série de imagens visuais”, e Coleridge acorda com a certeza de ter composto ou recebido em sonho um poema completo de cerca de trezentos versos, o que então o levou a compor e terminar um fragmento que figura em sua obra, pois, interrompido por uma visita, não conseguiu lembrar-se do resto.

Segundo Borges, “Swinburne sentiu que o que fora resgatado representava o mais alto exemplo da música do inglês e que o homem capaz de analisá-lo poderia (a metáfora é de John Keats) destecer um arco-íris.” E Borges segue esta curiosa análise psicológica em que o sonho se associa à criatividade artística, seguindo o seu relato e nos apresentando outros exemplos conhecidos como o caso do violonista e compositor Giuseppe Tartini, que, nas palavras de Borges, “sonhou que o Diabo (seu escravo) executava no violino uma sonata prodigiosa; o sonhador, ao despertar, deduziu de sua lembrança imperfeita o Trillo del Diavolo.”

E temos ainda casos como o do escritor Robert Louis Stevenson que, por sua vez, segundo Borges, “um sonho (segundo ele mesmo conta em Chapter on Dreams) lhe deu o argumento de Olalla e outro, em 1884, o de Dr.Jekill and Mr.Hyde.” E ainda : “Tartini quis imitar na vigília a música de um sonho; Stevenson recebeu do sonho argumentos, quer dizer, formas gerais”.

E a citada sobreposição se dá quando Borges nos lembra que “mais afim à inspiração verbal de Coleridge é a que Beda o Venerável atribui a Caedmon”, o que temos então é a origem em que se concebeu Kubla Khan, pois o poeta sonhou em 1797, publicou este fragmento de relato de sonho em 1806, como glosa ou justificativa de poema inconcluso.

Então, vinte anos depois, apareceu em Paris uma versão fragmentária que é uma primeira versão ocidental de literatura persa de histórias universais que é o Compêndio de histórias de Rashid ed-Din, do século XIV, e que Borges nos fornece o trecho em que é revelado um acontecimento : “A leste de Shang-tu, Kubla Khan erigiu um palácio, segundo um plano que havia visto em um sonho e que guardava na memória”.

A sobreposição então é comprovada, pois, seguindo o texto borgiano, “Um imperador mongol, no século XIII, sonha um palácio e o edifica conforme a visão; no século XVIII, um poeta inglês que não podia saber que esta construção se originou de um sonho, sonha um poema sobre o palácio. Confrontadas com essa simetria, que trabalha com almas de homens e abarca continentes, parecem-me significar nada ou muito para as levitações, as ressurreições e o aparecimento dos livros religiosos.”

E aqui temos o texto borgiano, enfim, se debatendo entre a tese sobrenatural, a da ligação verdadeira entre os fenômenos, e a outra em que tudo não passaria de uma bizarra coincidência. E aqui eu lembro da sincronicidade junguiana e o legado do inconsciente coletivo, que é uma maneira racional para lidar com aventuras psíquicas que podem desatar em um certo misticismo.

No texto “Entre Sonhos” Borges nos relata a sua convivência em Salta com um comerciante nascido em Tucumán, pois Borges por um período dormiu no mesmo quarto que este homem, que tinha então a faculdade de sonhar em voz alta, padecendo de pesadelos.

E Borges segue então sua análise ao falar sobre o fenômeno sonambúlico, este sim o tipo de efeito do sono e do sonho com uma carga de mistificação ou de curiosidade quase mórbidas, chocando-se o sonambulismo muitas vezes com diversos marcos teóricos. E uma das constatações mais comuns deste fenômeno é o de que o sonhador acometido deste distúrbio sofre de amnésia, não lembra do que fez.

E Borges então analisa que “O sonho absorve uma porção considerável de nossa vida e, por outro lado, não parece duvidoso que o ato de sonhar seja uma forma intermitente de loucura, um delírio periódico mais ou menos caracterizado.”

E Borges então constata, com surpresa que “O que se denominou instabilidade mental não é um acidente, mas sim o nosso modo de ser fisiológico. Para quem estuda o corpo humano, a persistência da saúde parece um milagre de cada instante. E o que diremos do nosso aparelho cerebral, que a cada vinte e quatro horas penetra no cone de sombra de sua razão eclipsada? Não é prodigioso que cada manhã, com a boa e santa luz do sol, emerja também a inteligência intacta de suas trevas e fantasmas noturnos?”.

Portanto, temos aqui, diante do pesadelo e do sonambulismo, por exemplo, o confronto da razão com um suposto estado de privação dos sentidos, ou ainda a chamada loucura ou estado delirante, entendida aqui não como a loucura clínica do surto, mas nos aparecendo aqui e também para Borges o sonho e suas decorrências como um estado da fisiologia cerebral ou de uma suposta emancipação da alma em que a razão é deturpada por uma interação mental fantasmática e evanescente que é mais chocante por ser cotidiana e mais surpreendente por não comprometer a faculdade mental quando esta regride de sua viagem psíquica.

(Fim da análise literária do Livro dos Sonhos de Jorge Luis Borges)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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