Este novo livro, que reúne sua produção mais, leva o título de “Coral e outros poemas”
A poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Adresen tem um estilo lírico de poesia, comparável aqui no Brasil com poetas como Cecília Meirelles, talvez um dos melhores paralelos desta dicção lírica em que a poesia de Sophia está imersa.
A presença da natureza na poesia de ambas também se relaciona a este aspecto lírico que domina tanto a poesia de Cecília como de Sophia, e na poeta portuguesa temos uma presença de um mundo mineral, com uma forte referência ao mundo líquido, à água, que podemos ver em livros intitulados Dia do mar, de 1947, ou As ilhas, de 1989, em que tal elemento está bem presente.
A poeta portuguesa estreou em poesia em 1944, mas o Brasil só recebeu uma seleta de consistência de sua produção poética em 2004, com Poemas escolhidos, trabalho realizado por Vilma Arêas.
Agora, a mais recente, material com o qual trabalho esta série aqui sobre a poeta portuguesa, temos o volume organizado pelo poeta Eucanaã Ferraz, com uma boa seleção e uma apresentação esclarecedora sobre a poesia de Sophia, em seu estudo introdutório que abre o livro, o texto “Breve percurso rente ao mar”. Este livro novo que reúne a produção mais relevante da poeta Sophia leva o título de “Coral e outros poemas”.
Podemos dizer que Sophia não traz novidades de estilo ou técnica, não faz experimentos inéditos, mas toma da forma clássica de expressão poética, de um predomínio lírico em sua dicção, para descortinar um mundo natural que pulsa e se funda em sua visão que vai deste olhar direto sobre a natureza, o mar, por exemplo, aos temas mitológicos, que muitas vezes se relacionam com esta sua temática do mar.
Em sua estreia como poeta, no seu livro Poesia, de 1944, já temos a presença de uma dicção poética amadurecida, com a temática marítima e mitológica já apontando o caminho de Sophia dentro do universo da poesia.
Nesta sua estreia temos o contexto da Segunda Guerra Mundial, mas não há uma referência direta do evento neste livro, mas um certo ambiente desta realidade pode ecoar no breve poema que abre o livro, que no primeiro verso enuncia: “Apesar das ruínas e da morte.”
Em seu segundo livro de poesia, Dia do mar, de 1947, temos novamente a presença soberana e forte do mundo natural, talvez numa busca da poeta de restituição deste mundo original pela poesia face ao mundo civilizatório que se distanciou desta origem que a poesia de Sophia tenta retomar.
No livro que se segue, Coral, de 1950, os temas e os procedimentos formais do livro anterior serão mantidos, com poema concisos e breves, o mar continua dominando o espaço de expansão da poesia de Sophia. O mar, um tema que é obsessão de muitos poetas, aqui com a poeta portuguesa é o próprio eixo temático central de sua lírica.
A busca de um mundo inaugural, original, permanece, e pode ser que esta busca seja a busca de uma revelação, uma visão que restitui e revela, e que coloca a poesia de Sophia diante de uma luz de um mundo natural sem mediações. A visão direta da poeta diante de uma imensidão natural que pode lhe aparecer como uma revelação, e que sua poesia tenta traduzir.
Ao fim, estas três primeiras obras de Sophia podem muito bem ser chamadas de um tríptico de abertura, é a apresentação da lírica de Sophia para a História da poesia portuguesa e mundial.
Sophia de Mello Breyner Andresen foi poetisa, tradutora, ensaísta, ficcionista, dramaturga. Em 1999, foi a primeira escritora portuguesa a ganhar o Prêmio Camões. No ano de 2003, intitulava-se “Rainha Sofia”, numa involuntária homenagem à majestade de sua poesia. Sophia faleceu aos 84 anos, em 2004.
DE POESIA:
SEM TÍTULO: A poeta aqui talvez ecoe indiretamente o ambiente de guerra da época em que este livro foi escrito, a sua estreia em poesia: “Apesar das ruínas e da morte,/Onde sempre acabou cada ilusão,/A força dos meus sonhos é tão forte,/Que de tudo renasce a exaltação/E nunca as minhas mãos ficam vazias.”. A poeta, diante da morte e de sua inevitabilidade, evoca a força dos sonhos, esta força que tudo vence e nos coloca numa dimensão de indestrutibilidade.
O JARDIM E A NOITE: A poeta tenta se unir à noite, no que temos: “Atravessei o jardim solitário e sem lua,/Correndo ao vento pelos caminhos fora,/Para tentar como outrora/Unir a minha alma à tua,/Ó grande noite solitária e sonhadora.”. O peso do mundo, no entanto, atenta contra este seu sonho lírico, no que vem: “Mas sob o peso dos narcisos floridos/Calou-se a terra,/E sob o peso dos frutos ressequidos/Do presente/Calaram-se os meus sonhos perdidos.”. E a operação de linguagem da poeta agora tenta restituir a esta linguagem algo originário, não a dicção literária, mas os encantamentos que soam nas fórmulas de magia, a linguagem original de um mundo totêmico, no que temos: “Entre os canteiros cercados de buxo,/Enquanto subia e caía a água do repuxo,/Murmurei as palavras em que outrora/Para mim sempre existia/O gesto dum impulso./Palavras que eu despi da sua literatura,/Para lhes dar a sua forma primitiva e pura,/De fórmulas de magia.”. E a busca da poeta de saber do segredo da noite se torna impossível, esta harmonia perfeita que a poeta busca lhe escapa em seu desconhecimento desta noite inatingível, no que temos: “Docemente a sonhar entre a folhagem/A noite solitária e pura/Continuou distante e inatingível/Sem me deixar penetrar no seu segredo./E eu senti quebrar-se, cair desfeita,/A minha ânsia carregada de impossível,/Contra a sua harmonia perfeita.”. Ela via o mundo pulsando, vivo, mas esta sua grande experiência de êxtase estava para sempre perdida, no que vem: “Tomei nas minhas mãos a sombra escura/E embalei o silêncio nos meus ombros./Tudo em minha volta estava vivo/Mas nada pôde acordar dos seus escombros/O meu grande êxtase perdido.” (…) “Só o vento passou pesado e quente/E à sua volta todo o jardim cantou/E a água do tanque tremendo/Se maravilhou/Em círculos, longamente.”.
CIDADE: A poeta aqui tematiza a cidade, no que temos: “Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,/Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,/Saber que existe o mar e as praias nuas,/Montanhas sem nome e planícies mais vastas/Que o mais vasto desejo,”. Ela tenta restituir o mundo natural, em que sua alma poderia voltar a seu habitat, esta alma da poeta que anela pela natureza em sua plenitude, mas que é levada e arrastada por um mundo sombrio de paredes, no que temos: “Saber que tomas em ti a minha vida/E que arrastas pela sombra das paredes/A minha alma que fora prometida/Às ondas brancas e às florestas verdes.”.
DE DIA DO MAR:
SEM TÍTULO: A poeta aqui, mais uma vez, evoca o mar, e o poema quebra na areia como uma onda que vira espuma e se esvai na praia: “As ondas quebravam uma a uma/Eu estava só com a areia e com a espuma/Do mar que cantava só para mim.”.
MAR SONORO: O poema tem uma lírica extasiante, e as imagens aqui fundam uma visão poética do mar em toda a sua plena feição de profundidade e homenagem, no que temos: “Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim,/A tua beleza aumenta quando estamos sós/E tão fundo intimamente a tua voz/Segue o mais secreto bailar do meu sonho,/Que momentos há em que eu suponho/Seres um milagre criado só para mim.”. A coda fecha a ideia de uma individualidade da poeta que possui um milagre, o mar lhe pertence exclusivamente.
NAVIO NAUFRAGADO: O poema descreve o navio que naufragou, tenta discernir o que lhe ocorre neste fundo desconhecido de água salgada: “Vinha dum mundo/Sonoro, nítido e denso./E agora o mar o guarda no seu fundo/Silencioso e suspenso.”. Aqui continua a especulação poética, numa descrição que funde natureza e sonho, no que temos: “É um esqueleto branco o capitão,” (…) “Tem algas em vez de veias/E uma medusa em vez de coração.” (…) “E os corpos espalhados nas areias/Tremem à passagem das sereias,/As sereias leves de cabelos roxos/Que têm olhos vagos e ausentes/E verdes como os olhos dos videntes.”. O sonho da vidência das sereias, em que o delírio da poeta vê no mar um portal para este mundo mitológico.
UM DIA: A busca de restituição de um mundo original pela poeta Sophia continua, no que temos: “Um dia, mortos, gastos, voltaremos/A viver livres como os animais/E mesmo tão cansados floriremos/Irmãos vivos do mar e dos pinhais.” (…) “O vento levará os mil cansaços/Dos gestos agitados, irreais,”. E aqui temos a poeta tentando vaticinar este mundo restituído e seu sentido profundo: “Só então poderemos caminhar/Através do mistério que se embala/No verde dos pinhais, na voz do mar,/E em nós germinará a sua fala.”.
DE CORAL:
SONETO À MANEIRA DE CAMÕES: A poeta aqui tenta uma imitação adrede de Camões, se sai bem, e tematiza a lírica amorosa com fluência, no que temos: “Esperança e desespero de alimento/Me servem neste dia em que te espero”. Toda a carga simbólica, histórica, deste Camões, presente aqui, e esta dicção fantasiada de uma poesia camoniana, nos dá um objeto curioso da poesia de Sophia, no que temos: (…) “Daquilo que te peço desespero/Ainda que mo dês – pois o que eu quero/Ninguém o dá senão por um momento.” (…) “Mas como és belo, amor, de não durares,/De ser tão breve e fundo o teu engano,/E de eu te possuir sem tu te dares.” (…) “Amor perfeito dado a um ser humano :/Também morre o florir de mil pomares/E se quebram as ondas no oceano.”. Fecha-se o soneto, como a fazer uma galimatia de uma chave de ouro camoniana que todo sonetista deve saber fazer.
CORAL: O poema, lacônico, faz da pergunta de Sophia esta imagem direta que se conclui como um raio, os nomes das coisas, no que vem: “Ia a vinha/E a cada coisa perguntava/Que nome tinha.”.
PIRATA: A poeta aqui é um pirata e descreve neste seu poema os seus gestos vestida desta personagem, todo o desprezo de um marginal saqueador, no que temos: “Sou o único homem a bordo do meu barco./Os outros são monstros que não falam,/Tigres e ursos que amarrei aos remos,/E o meu desprezo reina sobre o mar.”. Sua alma erra pelos mares, seu desapego fatalista dá ao mundo apenas um sentido utilitário, nada sobra, este pirata mira o efêmero e não detém nada e nem é detido, seu mar é um mar aberto, não lhe importa as paradas e suas memórias, a poeta aqui veste um pirata em sua postura distante de um bandido do mar : “A minha pátria é onde o vento passa,/A minha amada é onde os roseirais dão flor,/O meu desejo é o rastro que ficou das aves,/E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.”.
SEM TÍTULO: A poeta cobra da poesia aqui seu quinhão, no que temos: “Ó Poesia – quanto te pedi!/Terra de ninguém é onde eu vivo/E não sei quem sou – eu que não morri/Quando o rei foi morto e o reino dividido.”. A poeta se sente desprovida de seu ser, não sabe bem o que fazer, neste mundo de um reino que foi dividido.
PENÉLOPE: O tecido de Penélope que se desfaz na espera eterna de Ulisses, o poema homérico aqui numa versão breve que fala da distância e da proximidade, este paradoxo da peripécia amorosa até esta se concluir em júbilo: “Desfaço durante a noite o meu caminho./Tudo quanto teci não é verdade,/Mas tempo, para ocupar o tempo morto,/E cada dia me afasto e cada noite me aproximo.”.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Blog : http://poesiaeconhecimento.blogspot.com
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