domingo, novembro 24, 2024
19.9 C
Vitória
domingo, novembro 24, 2024
domingo, novembro 24, 2024

Leia Também:

Sophia de Mello Breyner e seu livro Dual

A poeta portuguesa Sophia coloca Fernando Pessoa como tema e forma poética

A poesia de Sophia se estende mais ainda, agora, em seu livro Dual, em que ela se lança numa imersão na poesia produzida por Fernando Pessoa, este cânone incontornável da poesia moderna portuguesa.

Com eixos formais já usados e aperfeiçoados por Sophia, aqui com linhas temáticas que persistem em sua obra, a participação da poesia de Fernando Pessoa se dá por meio de um confronto de uma poeta que, em sua essência, ainda é de dicção mais clássica.

Este belo desafio de encontrar um elo entre esta sua poesia e a de Pessoa produziu bons frutos no livro Dual, sobretudo o poema de título Em Hydra, evocando Fernando Pessoa, sendo feito um livro em que a poeta Sophia coloca Pessoa como tema e forma poética, e a amplidão de sua voz ganha o reforço de uma voz que não lhe pertencia, realizando uma experiência poética que lhe engrandeceu.

As temáticas de ausências e sombras ainda estão como eixos da poesia de Sophia. Dual possui, ainda, um certo luto do coração da vida, uma visão de unidade ou fusão natural, e a sua poética da perda, como seu cânon temático, quando não se fala do mar, o centro de tudo em sua poesia.

O título Dual, por sua vez, que dá a cara deste livro, é fruto deste confronto bicéfalo de Sophia, que tem um tipo de dicção, com a poesia canônica de Pessoa, um diálogo que se iniciara no Livro sexto, no poema Fernando Pessoa.

Tal confronto ganha uma força descomunal no poema que falei, que é o potente Em Hydra, evocando Fernando Pessoa, que sempre será citado como o grande confronto realizado por Sophia com este cânon inquebrantável da poesia de Pessoa.

O fato que persiste, ainda, diante deste confronto, é a presença anterior de uma poesia de Sophia que se fundia à natureza, meio que habitando filosoficamente a dita “casa do ser”, um tipo de mundo desconhecido e exterior à poesia de Pessoa.

O poeta dos heterônimos produziu para si um mundo solitário de uma falta de lar ou paradeiro, uma dispersão absoluta que se perdeu no caos dos heterônimos, o melhor sintoma de escritos que se destinaram a ficarem dispersos, colhidos por bibliófilos avidamente até os dias atuais.

DE DUAL 

POEMAS 

EURYDICE: Numa poesia órfica, o lamento é nostálgico, e cheira o sal do mar, num canto mais antigo que os navios, e a fusão tectônica como coda : “O teu rosto era mais antigo do que todos os navios/No gesto branco das tuas mãos de pedra/Ondas erguiam seu quebrar de pulso/Em ti eu celebrei minha união com a terra”.

EM NOME: A poética da perda aqui aparece em Sophia, e sua poesia faz este breve lamento choroso : “Em nome da tua ausência/Construí com loucura uma grande casa branca/E ao longo das paredes te chorei”.

DELPHICA: II : A narrativa fala da queda de Apolo diante de Python, e a justa medida que evoca o deus grego, em sua imagem da harmonia, tem do humano este caráter personificado que dá aos deuses estes embates comuns também ao ser humano, no que temos : “Esse que humano foi como um deus grego/Que harmonia dos cosmos manifesta” (…) “Àquele amor inteiro e nunca cego/Que emergia da praia e da floresta”. A queda de uma arquitetura, de uma ideia, de um projeto, e o poema segue : “Agora jaz sem fonte e sem projeto/Quebrou-se o templo actual antigo e puro/De que ele foi medida e arquitecto” (…) “Python venceu Apolo num frontão obscuro/Quebrada foi desde seu eixo recto/A construção possível do futuro”. Se encerra aqui o primeiro bloco do poema e logo temos o seguinte, no que vem : VI (Antinoos de Delphos) : “Tua face taurina tua testa baixa/Teus cabelos em anel que sacudias como crina”. A descrição enaltece as virtudes do deus, e segue : “Tua pesada beleza/Teu meio-dia nocturno/Tua herança dos deuses que no Nilo afogaste/Tua unidade inteira em teu corpo/Num silêncio de sol obstinado/Agora são de pedra no museu de Delphos/Onde montanhas te rodeiam como incenso/Entre o austero Auriga e a arquitrave quebrada”. Sobra ao mito agora um destino de ruína e antiquário, objeto do museu, em que algo se quebrou, um mito que se tornou longínquo.

HOMENAGEM A RICARDO REIS: I : Novamente Sophia empreende um confronto formal com a poesia de Fernando Pessoa, e este diálogo se torna intenso neste seu livro Dual, no que temos : “Não creias Lídia, que nenhum estio/Por nós perdido possa regressar/Oferecendo a flor/Que adíamos colher.”. E o tema se concentra no tempo, e no seu caráter irrepetível, em que o dardo é lançado somente uma vez, no que temos uma visão de uma temporalidade impiedosa, impassível, no que vem : “Cada dia te é dado uma só vez/E no redondo círculo da noite/Não existe piedade/Para aquele que hesita.” O pecado mortal da hesitação é a maior fatalidade que existe neste tempo contínuo e sem piedade, a marcha que aqui se empreende é cega ao murmúrio do arrependimento ou do alvo que se foi, o não-vivido aqui aparece como a tragédia existencial do tempo perdido, no que temos : “Mais tarde será tarde e já é tarde./O tempo apaga tudo menos esse/Longo indelével rasto/Que o não-vivido deixa.” (…) “Não creias na demora em que te medes./Jamais se detém Kronos cujo passo/Vai sempre mais à frente/Do que o teu próprio passo.”. O tempo em Kronos aqui ultrapassa os passos humanos, que cambaleiam diante dos golpes do destino.

DUAL: A condução aqui é dual, os cavalos se guiam e a poeta entra em fissura, seu espírito, ao fim, se desagrega : “Dois cavalos a par eu conduzia/Não me guiava a mim mas meus cavalos” (…) “E no país de espanto e de tumulto/Em mim se desuniu o que eu unia”.

INICIAL: O poema canta o regresso da poeta à sua senda original, possível destino de sua poesia, e sua alma é lavada, um rito que lhe restitui a praia inicial de sua vida : “O mar azul e branco e as luzidias/Pedras – O arfado espaço/Onde o que está lavado se relava/Para o rito do espanto e do começo/Onde sou a mim mesma devolvida/Em sal espuma e concha regressada/À praia inicial da minha vida”.

EM HYDRA, EVOCANDO FERNANDO PESSOA: A poeta se vê no porto de Hydra, e se debruça diante desta sua visão, um mundo se abre, no que temos : “Quando na manhã de Junho o navio ancorou em Hydra” (…) “Saí da cabine e debrucei-me ávida/Sobre o rosto do real – mais preciso e mais novo do que o imaginado” (…) “Ante a meticulosa limpidez dessa manhã num porto”. E, então, ela invoca o espírito da Odisseia, neste porto ela desperta para Odysseu, no que vem : “Murmurei o teu nome/O teu ambíguo nome” (…) “Porque a tua alma foi visual até aos ossos/Impessoal até aos ossos/Segundo a lei de máscara do teu nome”. Uma persona pode ser um heterônimo, e Odysseu, como o poema e a máscara, empreende uma longa viagem, desafiado até pelo canto das sereias, como em sua cena amarrado ao mastro, no que vem : “Odysseus – Persona/Pois de ilha em ilha todo te percorreste/Desde a praia onde se erguia uma palmeira chamada Nausikaa/Até às rochas negras onde reina o cantar estridente das sereias”. E o cenário de Hydra é descrito no poema, no que temos : “O casario de Hydra vê-se nas águas/A tua ausência emerge de repente a meu lado no deck deste barco” (…) “Imagino que viajasses neste barco/Alheio ao rumor secundário dos turistas/Atento à rápida alegria dos golfinhos”. E o culto da navegação, e todo o seu sentido marítimo, aqui emerge diante de nossa vista, no que vem : “Por entre o desdobrado azul dos arquipélagos/Estendido à popa sob o voo incrível/Das gaivotas de que o sol espalha impetuosas pétalas”. A poesia épica e mitológica de origem grega aqui é sintetizada por versos que homenageiam Fernando Pessoa, no que segue : “Nas ruínas de Epheso na avenida que desce até onde/esteve o mar/Ele estava à esquerda entre colunas imperiais quebradas/Disse-me que tinha conhecido todos os deuses”. A poeta sabe do grande conhecimento sobrenatural destas paragens, mas se reconforta ao seu retorno a um lar humano, sem o dom da imortalidade, no que temos : “Odysseus/Mesmo que me prometas a imortalidade voltarei para casa/Onde estão as coisas que plantei e fiz crescer/Onde estão as paredes que pintei de branco”. Ela deixa a Odysseu esta clarividência espiritual que é cara a este, e que atravessa a essência que torna tudo intensamente presente, este deus que sempre olha aquilo que é, no que temos : “Há na manhã de Hydra uma claridade que é tua/Há nas coisas de Hydra uma concisão visual que é tua/Há nas coisas de Hydra a nitidez que penetra aquilo que é/olhado por um deus/Aquilo que o olhar de um deus tornou impetuosamente presente” (…) “O teu destino deveria ter passado neste porto/Onde tudo se torna impessoal e livre/Onde tudo é divino como convém ao real”. O porto de Hydra, ao fim, retoma à poeta a vida humana, mas o caráter divino aqui se enuncia como o dom da própria realidade.

O MINOTAURO: Aqui a poeta evoca o mito fundante da cultura minoica ou cretense, no que temos : “Em Creta/Onde o Minotauro reina/Banhei-me no mar” (…) “Há uma rápida dança que se dança em frente de um toiro/Na antiquíssima juventude do dia”. A poeta aqui dança como numa festa cretense, enfeitada de flores, no que segue : “De Creta/Enfeitei-me de flores e mastiguei o amargo vivo das ervas/Para inteiramente acordada comungar a terra/De Creta/Beijei o chão como Ulisses/Caminhei na luz nua”. Esta poeta que, diante da ruína de uma civilização perdida, ainda mantém intacta a sua fúria, e segue : “Devastada era eu própria como a cidade em ruína/Que ninguém reconstruiu/Mas no sol dos meus pátios vazios/A fúria reina intacta”. Ela, então, se volta ao mar azul de Creta, e o celebra : “E o mar de Creta por dentro é todo azul/Oferenda incrível de primordial alegria/Onde o sombrio Minotauro navega”. Ali navega o Minotauro, este que habitará o labirinto de Dédalo, no que vem : “Em Creta/Inteiramente acordada atravessei o dia/E caminhei no interior dos palácios veementes e vermelhos” (…) “Caminhei no palácio dual de combate e confronto/Onde o Príncipe dos Lírios ergue os seus gestos matinais”. Aqui se descreve tanto a vida como os objetos e muradas do cotidiano minoico, no que temos : “Em Creta/Os muros de tijolo da cidade minoica/São feitos de barro amassado com algas”. Qual um Teseu, segurando o seu fio de Ariadne, a poeta Sophia consegue atravessar o seu próprio labirinto do Minotauro, e se vê diante de uma saída proporcionada pelo fio de seus versos, no que temos : “Em Creta onde o Minotauro reina atravessei a vaga/De olhos abertos inteiramente acordada/Sem drogas e sem filtro/Só vinho bebido em frente da solenidade das coisas -/Porque pertenço à raça daqueles que percorrem o labirinto/Sem jamais perderem o fio de linho da palavra”.

OS GREGOS: A poeta aqui descreve a cosmovisão dos gregos, no que temos : “Aos deuses supúnhamos uma existência cintilante/Consubstancial ao mar à nuvem ao arvoredo à luz” (…) “O meandro do rio o fogo solene da montanha/E a grande abóbada do ar sonoro e leve e livre/Emergiam em consciência que se vê/Sem que se perdesse o um-boda-e-festa do primeiro dia -/Esta existência desejávamos para nós próprios homens/Por isso repetíamos os gestos rituais que restabelecem/O estar-ser-inteiro inicial das coisas -/Isto nos tornou atentos a todas as formas que a luz do sol conhece/E também à treva interior por que somos habitados/E dentro da qual navega indicível o brilho”. Esta casa do ser habitada por filósofos, antes cintilava numa clarividência sobrenatural habitada por deuses, e o grego sempre diante deste seu olhar que busca a origem, uma arqué.

CATARINA EUFÉMIA: A reflexão grega aqui é reconstituída pela poeta Sophia em seu eixo temático sobre a justiça, no que temos : “O primeiro tema da reflexão grega é a justiça/E eu penso nesse instante em que ficaste exposta” (…) “Segundo o antiquíssimo método oblíquo das mulheres/Nem usaste de manobra ou de calúnia/E não serviste apenas para chorar os mortos”. Esta entidade da justa medida não recua e estabelece o seu reino, no que temos : “Tinha chegado o tempo/Em que era preciso que alguém não recuasse/E a terra bebeu um sangue duas vezes puro” (…) “Porque eras a mulher e não somente a fêmea/Eras a inocência frontal que não recua/Antígona poisou a sua mão sobre o teu ombro no instante/em que morreste/E a busca da justiça continua”. Esta busca da justiça continua, qual a luta de Antígona ou qualquer confronto que ameace este dom grego e de vida humana, a justiça e seu reino.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Blog
: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

Mais Lidas