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Stéphane Mallarmé, a poesia nova de vanguarda (parte III)

Pode-se considerar, de acordo com Augusto de Campos, Un Coup de Dés (Um Lance de Dados) de Mallarmé como “o limiar da nova poesia”. E ainda segue a descrição precisa de Augusto de Campos sobre o acontecimento que foi este poema: “Mallarmé é o inventor de um processo de organização poética cuja significação para a arte da palavra se nos afigura comparável, esteticamente, ao valor musical da série, descoberta por Schoenberg, purificada por Webern, e através da filtração deste, legada aos jovens compositores eletrônicos, a presidir os universos sonoros de um Boulez ou um Stockhausen. Esse processo se poderia exprimir pela palavra estrutura”.
 
Ainda podemos dizer que tal inovação corre junto aos desempenhos e conquistas formais de Ezra Pound e James Joyce, e ainda o radical cummings, concluindo Augusto de Campos, com esta: “as subdivisões prismáticas da Ideia de Mallarmé, o método ideogrâmico de Pound, a simultaneidade joyciana e a mímica verbal de cummings convergem para um novo conceito de composição – uma ciência de arquétipos e estruturas; para um novo conceito de forma – uma ORGANOFORMA – onde noções tradicionais como início, meio, fim, silogismo, tendem a desaparecer diante da ideia poético-gestaltiana, poético-musical, poético-ideogrâmica de ESTRUTURA”.
 
Mallarmé então é um dos primeiros poetas da História a fazer uma denúncia até então incompreensível, de que havia algo a demolir, e por uma razão radical: era o tempo novo da crise do verso e da linguagem. A esta consciência nova é que Mallarmé dá voz, usando em imagem o que o verso silogístico só poderia realizar de maneira prolixa, rompendo então com este nexo lógico para algo circular em forma de mosaico. Então, não é mais possível, a partir de Mallarmé, e sobretudo quando este faz O Lance de Dados, algum poeta que queira o novo não passar por este caminho aberto, como uma cruzada para o desconhecido, navegando para além do cabo da tormenta, nesta esperança renovada que Mallarmé soprou para os que viessem depois dele.
 
E, falando da poesia de língua portuguesa, por exemplo, não há como entender suas novas linhas de expressão de poesia moderna, sem lembrar de Mallarmé, pois sem ele não há como acessar o sentido desta nova poesia. Como diz Augusto de Campos: “Pense-se em Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro (especificamente o Fernando Pessoa dos sonetos de “Passos da Cruz” e o Sá-Carneiro que, em defesa do cubismo, escreve ao primeiro: Entretanto, meu caro, tão estranhos e incompreensíveis são muitos dos sonetos admiráveis de Mallarmé. E nós compreendemo-los.) Pense-se em Pedro Kilkerry, em Drummond (o Drummond de “Áporo”, “Claro Enigma” e “Isso é Aquilo”), no João Cabral de “Anti-Ode” e “Psicologia da Composição””.
 
Em relação ao conflito do poeta com o mundo, Mário Faustino pontua: “A um mundo infame, como ainda é o nosso” (…) “Rimbaud, que o rejeitava, reagiu rejeitando também a própria poesia. Mallarmé, que o rejeita, reage, refugiando-se na poesia. Em todo um século ninguém é mais poeta; ninguém celebra e personifica mais que ele a dignidade, a nobreza, a divindade da Poesia; ninguém faz tanto da poesia um instrumento, um meio e uma justificação de existir” (…) “seus poemas são atos e são coisas”. E cabe mais uma observação de Augusto de Campos: “As experiências tipográficas funcionais, iniciadas por Mallarmé em Un Coup de Dés tiveram continuação muito menos lúcida, alguns anos após, com o Futurismo italiano e Apollinaire, para só se cristalizarem outra vez funcionalmente nas obras de Joyce, Pound e cummings.
 
A revolução tipográfica futurista, por sua vez, não foi marcada, portanto, por uma realização funcional da estrutura mallarmaica, pois era fruto de uma época de vanguardas, em que era comum rupturas retumbantes caracterizadas em demasia pelo excesso e inebriação, como um ímpeto artístico sem muita ciência ou direção. No entanto, coube a Marinetti e ao Movimento Futurista a prioridade, dentre as outras vanguardas, na afirmação decidida por uma nova tipografia. Pois já no seu “Manifesto técnico da poesia futurista (1912)”, Marinetti já se afirmava contra as limitações do diagrama da página, o que levava ele a vislumbrar a poesia contra tais fluxos e refluxos, poemas com cores, com rompantes tais como: “cursivas para as séries de sensações análogas e rápidas, negrito para as onomatopeias violentas”. Ou ainda: “Livre direção das linhas (oblíquas, verticais etc.), substituição da pontuação pelos sinais matemáticos e musicais etc.”
 
Pode-se perceber, contudo, que tais rompantes ainda careciam de algo mais sólido, pois havia muito de ingenuidade em algumas das vanguardas do século XX, ainda que fossem fundamentais para a ruptura com formas tradicionais de arte, tendo então ainda como efeito o fato de que no futurismo havia uma renovação poética que os próprios não realizariam inteiramente, embora fosse uma proposta com maior alcance de suas intenções que, por exemplo, movimentos como o dadaísmo e o surrealismo. Sendo uma realização muito mais eficiente, embora ainda com limitações, os Calligrammes de Apollinaire, o qual reconhecia seu débito com o futurismo, como o primeiro poeta a tentar uma explicação para a nova ordem poética pelo ideograma, mas ainda ingênuo, forçando representações figurativas, ideograma que ganhará foco e luz com Ezra Pound, este sim um poeta de ciência, que daria cabo do problema, pois era um homem mais culto, enérgico, amplamente dotado e informado, estabelecendo em definitivo a noção do método ideogrâmico aplicado à poesia.
 
Pois Pound chega a esta particular forma, assim como Mallarmé, partindo da noção de estrutura, e Pound a liga à música, mas tal noção de estrutura tem ainda mais felicidade com Pound, pois este a realiza com maior objetividade, e isto através do ideograma chinês. E tal junção da poesia com o ideograma é aplicado inventivamente ao gigantesco empreendimento dos Cantos. Nesse poema extraordinário, de fragmentos justapostos, Cantos a Cantos, sem ordem silogística, o poema vem completo, como uma imensa configuração de um fantástico ideograma da cosmovisão histórica poundiana. Um sentido de estrutura semelhante ainda realiza o poeta cummings, com todo o cabedal ideogrâmico e musical poundiano. Mas este usa mais da intuição, sem a consciência histórica totalizante de Pound, levando, cummings, tal estrutura para o lado oposto, o do ideograma e do contraponto à miniatura. Pois cummings prefere o “cromo lírico” aos grandes eventos histórico-culturais de Pound. E acaba fazendo uma obra com dimensões reduzidas, como um microscopista decompondo o léxico e chegando à estrutura básica do ideograma e do contraponto. E cummings ainda padece de um certo figurativismo, mas muito mais sutil do que o de Apollinaire, por exemplo.
 
Por sua vez, finalmente, depois deste passeio histórico-poético, falando do poema Um Lance de Dados, de 1897, “Un Coup de Dés” não é exatamente um poema de fragmentos, embora pareça, pois é um todo coeso de estrutura circular. As relações, como o dado e seus lances, acontecem num horizonte probabilístico, através de formas verbais condicionais e com futuros hipotéticos, numa vértebra epistemológica que ainda contém ablativos absolutos e gerúndios. O texto mallarmaico, portanto, evoca, suscita, incita, numa conformação geral em que o fragmento em si aparece como sentido sutil, forma fluida, de maneira mais topológica do que como uma imposição definida por uma pictografia exterior, tal imposição que ocorre, por exemplo, na maioria dos caligramas de Apollinaire.
 
Augusto de Campos deixa clara a diferença entre o pensamento visual de Mallarmé e a ideia caligrâmica de Apollinaire: “É certo que se pode indagar aqui do valor sugestivo de uma relação fisiognômica entre as palavras e o objeto por elas representado, à qual o próprio Mallarmé não teria sido indiferente. Mas ainda assim, cumpre fazer uma distinção qualitativa. No poema de Mallarmé as miragens gráficas do naufrágio e da constelação se insinuam tênue, naturalmente, com a mesma naturalidade e discrição com que apenas dois traços podem configurar o ideograma chinês para a palavra homem (…) Já em Apollinaire a estrutura é evidentemente imposta ao poema, exterior às palavras, que tomam a forma do recipiente, mas não são alteradas por ele.”
 
Como teoria da composição, uma hermenêutica de Un Coup de Dés (Um Lance de Dados) pode passar pelo sentido de que neste poema não há a abolição do acaso, não há sua elisão, mas a sua incorporação como forma e conteúdo, como o termo ativo do processo criativo. E encerra então Décio Pignatari: “Renunciando à disputa do absoluto, ficamos no campo magnético do relativo perene.” Tal é o roteiro, digamos, em que Mallarmé alcança um racionalismo construtivo, sensível, não científico, no labor sobre os dados da sensibilidade, um poema do acaso e da probabilidade de um simples lance de dados.
 
 
UM LANCE DE DADOS
 
JAMAIS
 
Mesmo quando lançado em circunstâncias
 
Eternas
 
Do fundo de um naufrágio
 
Seja
 
Que
 
O Abismo
 
Branco
 
Estanco
 
Iroso
 
Sob uma inclinação
 
Plane desesperadamente
 
De asa
 
A sua
 
De
 
 
 
Antemão retombada do mal de alçar o voo
 
E cobrindo os escarcéus
 
Cortando cerce os saltos
 
No mais íntimo resuma
 
A sombra infusa no profundo por esta vela alternativa
 
Até adaptar
 
À envergadura
 
Sua hiante profundeza enquanto casco
 
De uma nau
 
Pensa de um ou de outro bordo
 
 
 
O MESTRE
 
Exsurto
 
Inferindo
 
Dessa conflagração
 
Que se
 
Como se ameaça
 
O único Número que não pode
 
 
 
Hesita
 
Cadáver pelo braço
 
Antes
 
De jogar
 
Maníaco encanecido
 
A partida
 
Em nome das ondas
 
Uma
 
Naufrágio esse
 
Fora de antigos cálculos
 
Onde a manobra com a idade olvidada
 
 
 
Outrora ele empunhara o leme
 
A seus pés
 
Do horizonte unânime
 
Prepara
 
Se agita e mescla
 
No punho que o estreitava
 
Um destino e os ventos
 
Ser um outro
 
Espírito
 
Para o arrojar
 
Na tempestade
 
Repregar-lhe a divisão e passar altivo
 
Apartado do segredo que guarda
 
Invade a cabeça
 
Escoa barba submissa
 
Direto do homem
 
Sem nau
 
Não importa
 
Onde vã
 
 
 
Ancestralmente em não abrir a mão
 
Crispada
 
Para além da inútil testa
 
Legado na desaparição
 
A alguém
 
Ambíguo
 
O ulterior demônio imemorial
 
Tendo
 
De regiões nenhumas
 
Induzido
 
O velho versus esta conjunção suprema com a probabilidade
 
Aquele
 
Sua sombra pueril
 
Afagada e polida e devota e lavada
 
Suavizada pela vaga e subtraída
 
Aos duros ossos perdidos entre as pranchas
 
Nato
 
De um embate
 
As águas pelo ancião tentando ou o ancião contra as águas
 
Uma chance ociosa
 
Núpcias
 
Cujo
 
Véu de ilusão ressurto ânsia instante
 
Como o fantasma de um gesto
 
Vacilará
 
Se abaterá
 
Insânia
 
(Poema de Stéphane Mallarmé, tradução de Haroldo de Campos)
 
(obs: pela dimensão do poema, aqui está somente as duas primeiras partes do poema, e também não repliquei as diferentes formatações dos versos e palavras, que muitas vezes aparecem em caixas diversas e dispersos no papel, nos dois casos por razões de concisão, lembrando que sua leitura ideal, isto é, o poema, se dá sobretudo como experiência visual)
 
Gustavo Bastos, filósofo e escritor
Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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