“Eu vivo de fazer versões da vida que não são verdade, mas todo mundo acha que é diário, que é confessional. Quero ver chamar literatura de homem de confessional. Jamais aconteceu, né? Só mulheres têm pecado pra confessar”. (Toureando o Diabo)
A frase acima é de Camila Chirivino, a personagem mais marcante de Clara Averbuck – aquela mesma de Máquina de Pinball (2002) e Vida de Gato (2004), os dois primeiros livros de Clara. A Camila voltou seis anos mais velha, com ainda mais questionamentos e muitas certezas. A Camila de agora está estampada em imagem e texto no livro Toureando o Diabo, lançado há pouco tempo por Clara e em co-autoria com a ilustradora Eva Uviedo.
Em um livro curto e construído de cima abaixo numa mescla entre textos e ilustrações, Eva Uviedo apresenta como vê o conjunto de Toureando o Diabo. “Acho que o resultado é algo entre um livro infantil para adultos e uma história em quadrinhos com balões de texto pouco ortodoxos. É algo um tanto novo, até onde sei”, fala do ponto de vista gráfico. Mas a ilustração não entra na obra como apenas um toque a mais. Ela entra amarrando palavras e desenhos, frases e ilustrações. Ela entra contando juntamente com a narrativa toda a história da protagonista.
E para quem acompanha a Camila desde os primeiros livros de Clara, Toureando não está aqui para dizer o que a personagem faz atualmente, o que aconteceu com ela ou quais foram seus caminhos nos últimos anos. A Camila de 2016 reaparece como um insight, sem a trajetória do que fez, sem história com começo meio e fim. A Camila volta, apresenta reflexões, conta alguns casos, se apresenta com mais maturidade, e vai embora.
Os questionamentos permanecem os mesmos, girando em torno das vivências da personagem enquanto mulher livre e de seus relacionamentos. Contudo, muita coisa mudou acerca de seus pensamentos. “Quem a conhece vai conseguir sacar a evolução e o amadurecimento, mas não precisa conhecer a Camila de 22 anos pra entender a de 28, até porque, no Toureando mesmo, ela resgata essas questões anteriores. Quem leu, entende, quem não leu, também entende”, conta Clara Averbuck.
O discurso de Camila continua forte e contundente, entretanto, a romantização de diversos relacionamentos medíocres que teve ao longo da vida aparecem em Toureando sendo problematizados. Neste livro a personagem percebe e destaca os abusos de suas relações (nem sempre de primeira, o que mostra que qualquer mulher está à mercê de passar por relacionamentos problemáticos) e se mostra com uma faceta um tanto feminista, o que pode ser apenas uma interpretação, como destaca Clara.
“Não tenho intenção de panfletar na literatura. Nada de errado em querer, mas não é minha intenção. O que eu quis foi criar uma personagem com conflitos que eu vejo nas vidas das mulheres ao meu redor, que, neste momento da história, passam por discussões feministas também. Me importa mais a representação da mulher na literatura do que necessariamente colocar um discurso dentro duma obra de ficção”, explicou.
E a Camila de Toureando o Diabo aparece também em forma gráfica, como já citado, com Eva Uviedo lhe retratando e dando outra 'voz' à personagem. Contudo, a faceta escolhida por Eva foi aquela de justamente não definir um rosto, um corpo, uma feição ou características específicas para a Camila, mas apresentando a personagem como um ser mutante. Uma mulher que também é um conjunto de diversas outras mulheres.
“Para mim, é mais importante personificar graficamente os sentimentos envolvidos na história (em forma de texturas, por exemplo), em vez de criar uma mulher com características físicas e de estilo definidas. Ela pode ser do rock, do pop, do samba. Não tem idade. Ela está nua. Acho que é interessante deixar algo para a imaginação. E também porque penso que a gente é um pouco assim, de jeitos diferentes perante cada situação da vida. Sentimentalmente, digo”, explica Eva.
E para que esse processo de dar voz à mesma personagem, a partir de linguagens diferentes, estivesse muito bem afinado entre Clara e Eva, foi preciso muita troca de experiências entre ambas e afinidade – relação já construída ao longo das parcerias realizadas por elas. O desafio maior de Eva, como contou, foi retratar a Camila no contraste entre preto e branco, visto que Eva desenvolve um trabalho delicado com a aquarela, destacando cores com muita suavidade em seus projetos. “O fato de usar só o preto e branco bem contrastado traz para a história a força necessária e que não teria de outro jeito. Como narrativa, a escolha foi feita por tratar visualmente texto e desenho como história em um fluxo contínuo em vez de separar como seria de costume”, conclui ela.
O livro está atualmente em processo de venda e distribuição, uma fase muito recente para se falar em projetos futuros acerca dos próximos destinos de Camila. “Eu gosto bastante da Camila, acho que é uma personagem inesgotável, mas nem parei para pensar ainda no meu próximo passo. Talvez uma continuação do Eu Quero Ser Eu (livro infanto-juvenil lançado em 2013), pois também gosto bastante da personagem Ira e acho que as possibilidades de amadurecer uma menina de 15 anos me interessam mais no momento. Talvez, no futuro, eu escreva sobre uma Camila de 40 anos, mas por enquanto, nem penso nisso”, contou Clara.
Já Eva irá continuar em seus projetos pessoais, como a série Sobre Amor & Outros Peixes entrando numa fase mais autoral. “Quem sabe em formato de livro e, claro, exposição”, acrescenta ela. E tem ainda os planos de iniciar outro projeto intitulado Retratos de família.
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