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Um épico e molhado fim de carnaval

Com chuva começou e com chuva terminou. O Carnaval de Vitória chegou ao fim com as águas de março fechando o verão. Era o primeiro dia do terceiro mês de 2020, domingo pós-carnaval, quando saiu mais uma vez o bloco Prakabá, marcando o encerramentos das festividades.

À frente o estandarte do bloco anfitrião e a bateria, conformada por integrantes dos diversos blocos que animaram o carnaval nos dias anteriores. Depois vinham os estandarte destes outros blocos: Esquerda Festiva, Afro Kizomba, BatuQdellas, Vai que Gama, Puta Bloco, Maluco Beleza, entre outros. Na retaguarda, o povo, passando o último rodo para fechar a festa.

Tudo ia muito bem, descendo desde o Bar da Zilda até a Rua Gama Rosa, até que gotas grossas caíram de repente do céu. Tudo ia muito bem, mas aí melhorou ainda mais. Uma chuva torrencial envolveu os foliões na Rua Treze de Maio, quase chegando na Praça Costa Pereira. 

Lavar a alma não se faz à máquina e torneira, é preciso água da chuva. Talvez nem tanto, mas quem pode discutir com as forças da natureza? Bateria e foliões deixaram-se molhar enquanto subiam a Rua Sete. Nove dias antes, quando o bloco estreante Maluco Beleza chegava ao Messas Bar, na Praça Ubaldo Ramalhete, uma chuva de mesmo tom caiu, abrindo o carnaval, o momento em que o brasileiro costuma se permitir coisas que nem sempre faria no cotidiano. Banho de chuva é só uma delas.

Foto: Márcio Moraes

“Eu perdi o meu medo, meu medo, meu medo da chuva”, nada mais propício para cantar no Maluco Beleza, bloco que homenageava Raul Seixas, autor desses versos. Os versos voltaram a ecoar no Prakabá. “Pois a chuva voltando pra terra traz coisas do ar…”

A chuva voltava em direção à Rua Sete de Setembro, para onde todas as águas parecem convergir. Não à toa, ali passa(va) o Rio Reguinho, nascido na Fonte Grande e descendo até o inundado hoje aterrado onde está a Costa Pereira. Pra terra a água não mais volta, por conta das intransponíveis barreiras do asfalto e do concreto.

Mas se a historiografia me deixava dúvidas se o Reguinho corria pela Sete ou pela vizinha Graciano Neves, a chuva torrencial deixou claro que é pela Rua Sete que desce o maior volume de água, caminho natural do rio, que agora transbordava pelos bueiros. Em alguns momentos a água descia molhando as canelas, mas ninguém estava nem aí. Alguns simulavam surfar no asfalto e um folião chegou a deitar-se e bater os braços feito nadador com as águas que desciam do alto do morro.

“Aprendi o segredo, segredo, segredo da vida”, continua a música de Raul. “Vendo as pedras que choram sozinhas no mesmo lugar”. Bela reflexão para aqueles que deixaram a possível preguiça de um domingo e a ressaca acumulada por tantos dias de farra para ainda curtir um último dia de (pós)carnaval. 

O final apoteótico e molhadíssimo do Prakabá foi na Escadaria da Piedade. Que bom quando o que escorre pelas escadarias e vielas é apenas água e não sangue. A Piedade que virou um triste símbolo da violência é também um grande berço do carnaval capixaba desde as batucadas até a primeira escola de samba, criada ali.

Agora, ali está o milagre da multiplicação de batuqueiros. Novos e velhos blocos vêm formando uma multidão de ritmistas para dar conta do crescimento do Carnaval de Vitória, que está intrinsecamente ligada ao crescimento dos blocos e sua forma de organização popular. A participação feminina é bastante notável.

Primeiro o BatuQdellas, integrado apenas por mulheres, depois o Vai Que Gama e Bloco da Oficina, focados nas oficinas para formar percussionistas, em sua maioria mulheres, ocupando um espaço que muitas vezes lhes foi negado ao longo dos tempos. Com novos ritmistas se constrói a ampliação do carnaval de amanhã, já que ainda parece haver espaço para muitos novos blocos na cidade.

É claro que Carnaval tem um tanto de improviso, ocupação das ruas, espontaneidade. Mas também tem muito de organização, produção, ensaio, dedicação, trabalho comunitário. Por isso a decepção e até o sermão público às autoridades com os problemas nos trios elétricos em blocos como o Regional da Nair e o BatuQdellas, alguns dos maiores do Carnaval de Vitória. Não é um dia de festa, é um ano de trabalho que está em jogo.

Quando finalmente acabou o Prakabá (e a festa naturalmente seguiu para o tradicional Bar da Zilda) ainda não eram 20h e os vizinhos observavam a festa da varanda. Ocupação das ruas, liberdade, diversidade são palavras que têm sido muito caras nos dias de hoje. Não à toa o presidente da República novamente foi vítima de alguns cânticos pouco amistosos, bem ou mal ritmados, por tudo que representa.

Mais que uma data, Carnaval é um estado de espírito. Acaba por decreto ou por cansaço? Há uma consciência arraigada de que toda essa intensidade não pode ser mantida por muito tempo. 

A chuva que ali parecia alegria, logo viu-se sofrimento que vem afetando muitos capixabas por conta do mau planejamento de nossas cidades. Entre políticos errados e políticas equivocadas, águas e calendários seguem seus ciclos.

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