Websérie feita no Espírito Santo aborda as histórias e as receitas ligadas ao cultivo do milho por comunidades tradicionais
Indígenas, quilombolas, pomeranos e outros povos possuem preparos ancestrais de alimentos. O milho, um dos ingredientes que compõem algumas dessas receitas, se tornou protagonista da websérie Olhar Milenar, dirigida por Lígia Sancio, culinarista e produtora audiovisual capixaba, com participação de uma talentosa equipe local e recurso da Lei Aldir Blanc. O conteúdo está disponível em quatro capítulos no YouTube.
O primeiro episódio traz a narrativa dos povos indígenas, pioneiros no reconhecimento, melhoramento e desenvolvimento das tecnologias empregadas no cultivo e preparo do cereal tão popular na alimentação de vários povos. “É através do Mbyta Guarani, a nossa pamonha, que abordo o contato do colonizador europeu com o saber do milho sagrado, o seu avatí eteí. A partir do início do século XVI, o contado do milho com o ocidente nunca mais parou de crescer, sendo o milho hoje o cereal mais cultivado no planeta. E, vale dizer, de modo nada tradicional”, aponta Lígia Sancio.
O contato dos quilombolas com o milho é abordado no segundo episódio. Os povos negros na África desconheciam este cereal, embora tivesse acesso a grão similares na forma de cultivo e preparo. Mas foi no continente americano, depois da violenta diáspora provocada pelo tráfico de pessoas e escravidão que povos negros tiveram contato e uso constante do milho. “Na narrativa construída, o saber ancestral e étnico quilombola devolve o sentido sagrado do milho, visto apenas como ração aos escravizados, com o divino mungunzá, tão popular quanto a pamonha”, conta a diretora.
A partir da migração europeia do final do século 17, também surge por aqui outra receita, o brote, tema do terceiro episódio. Se trata de um tipo de pão preparado pelos pomeranos no Brasil a partir de batata e farinha de milho de origem indígenas, buscando refazer com elementos locais os pães de centro, trigo e cevada europeus.
A websérie finaliza com uma receita que traz memórias infantis. “Milho verde cozido, picolé de milho verde e sorvete de milho ocupam grande parte das melhores lembranças dos verões pelo litoral espírito-santense. No último episódio reforço o protagonismo indígena no saber sobre o milho sagrado em agradecimento à sua presença perene em nosso cotidiano alimentar”, relata.
Lígia conta que a proposta de somar sua atuação na cozinha com a narrativa audiovisual vinha crescendo nos últimos tempos, já que é formada em Comunicação Social e antes de se dedicar profissionalmente à culinária havia trabalhado com imagem, sempre com registro e divulgação autoral.
“Falar do milho, da ancestralidade do alimento, seu sentido sagrado e o nosso distanciamento dos saberes étnicos é uma premissa do meu engajamento político na cozinha, especialmente devido ao meu envolvimento nas questões territoriais e ambientais entre os Povos Originários e Comunidades Tradicionais no Espírito Santo”, diz.
O roteiro parte da premissa de buscar traçar o caminho do percorrido pelo milho ao longo de sua trajetória milenar de contato com o ser humano. “Trazendo o milho como sujeito histórico que engendra mudanças, o fio condutor seriam as entrevistas e imagens capturadas junto às comunidades, onde preparariam os alimentos de acordo com a linguagem desenvolvida por cada uma para dialogar com o milho, junto das imagens de arquivos históricos dos registros feitos sobre o milho”.
Porém, por conta da persistência da gravidade da pandemia de Covid-19, fez-se necessário repensar em parte o roteiro devido ao risco de deslocar uma equipe de gravação até as comunidades, dado os riscos de transmissão do vírus. Então Lígia, que a princípio estaria oculta, entra em cena de forma sutil na cozinha, preparando e ensinando os pratos abordados. “Optei por trazer as receitas de modo incidental, experimental, com um olhar mais atento aos detalhes do que propriamente do passo-a-passo da receita. O protagonismo para falar do milho não é meu”, diz a cozinheira e diretora. Às imagens do fazer culinário, dos arquivos históricos da comunidade e do acervo do cineasta Ricardo Sá, somam-se a linguagem poética e uma trilha sonora autoral sintonizada com a mensagem da websérie.