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Um pouco de Fernando Pessoa II – o heterônimo Alberto Caeiro

Alberto Caeiro é o antimetafísico, morto tuberculoso e jovem, sua praia era a sensação, seu senso de objetividade lhe colocava em contato com a natureza, “há metafísica bastante em não pensar em nada” é seu guia contra a filosofia conceitual, já no mundo natural como sua ideia, ou melhor, o mundo real que contém já gritante todo o seu pulso de sentido, e a saber que para Caeiro não há sentido em fazer grande ideia do que seja tudo, uma vez que estando no mundo, tudo aí já está. O caminho de Caeiro afirma o natural como já dado, e o sentido metafísico como uma veste desnecessária da sensação da vida. Estar vivo é já ter tudo contido na experiência desta fruição ou fluxo ininterrupto de viver, o simples está em não ter a urgência dos tolos, mas a necessária sabedoria do fluir natural em que pensar em nada basta e é bastante coisa.
 
Decadentista, futurista e finalmente intimista, Álvaro de Campos é um dos heterônimos de Fernando Pessoa que apresenta um dos maiores repertórios desta fauna inesgotável do sumo da poesia feita pelo escritor. As três fases de Campos são suas três faces, a linha definidora que transita evolucionariamente em todo do caminho poético e criativo de Fernando Pessoa. Álvaro de Campos e seu Opiário, depois sua aventura com Marinetti e a influência de Walt Whitman, e o cansaço velho e total de seu intimismo que enfrenta um pessimismo abissal e que culmina num dos melhores momentos da poesia de Pessoa que é o poema “Tabacaria.”
 
O poema de Caeiro de “O Guardador de Rebanhos” de número V, com seu libelo anti-metafísico, situa Pessoa no seu contexto de um heterônimo que se coloca em total comunhão com a natureza e os sentidos, sua anti-filosofia nos põe a par da opacidade de nossa inteligência conceitual diante da invasão do nada das coisas que simplesmente são. Álvaro de Campos, por sua vez, faz um dos grandes momentos da poesia de Fernando Pessoa com seu “Poema em Linha Reta”, zombando da simulação de perfeição dos atores sociais, estes que, por sua vez, zombam da imperfeição dos outros no cenário hipócrita dos grandes campeões incapazes de confessar, nem mesmo no íntimo, suas ruínas, infâmias e limitações. A fragilidade e a precariedade da existência denunciam virulentamente, neste poema, este cenário programado e pré-estabelecido da atuação em sociedade de verdadeiros campeões que “nunca levaram porrada.”
 
Alberto Caeiro
DE “O GUARDADOR DE REBANHOS”
(1911-1912)
 
 
Há metafísica bastante em não pensar em nada. 
 
O que penso eu do mundo? 
Sei lá o que penso do mundo! 
Se eu adoecesse pensaria nisso 
 
Que ideia tenho eu das cousas? 
Que opinião tenho sobre Deus e a alma 
E sobre a criação do mundo? 
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos 
E não pensar. É correr as cortinas 
Da minha janela (mas ela não tem cortinas). 
 
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério! 
O único mistério é haver quem pense no mistério. 
Quem está ao sol e fecha os olhos, 
Começa a não saber o que é o sol 
E a pensar muitas cousas cheias de calor. 
Mas abre os olhos e vê o sol, 
E já não pode pensar em nada, 
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos 
De todos os filósofos e de todos os poetas. 
A luz do sol não sabe o que faz 
E por isso não erra e é comum e boa. 
 
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores? 
A de serem verdes e copadas e de terem ramos 
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar, 
A nós, que não sabemos dar por elas. 
Mas que melhor metafísica que a delas, 
Que é a de não saber para que vivem 
Nem saber que o não sabem? 
 
“Constituição íntima das cousas”… 
“Sentido íntimo do universo”… 
tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada. 
É incrível que se possa pensar em cousas dessas. 
É como pensar em razões e fins 
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores 
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão. 
 
Pensar no sentido íntimo das cousas 
É acrescentado, é como pensar na saúde 
Ou levar um copo à água das fontes. 
 
O único sentido íntimo das cousas 
É elas não terem sentido íntimo nenhum. 
 
Não acredito em Deus porque nunca o vi. 
Se ele quisesse que eu acreditasse nele, 
Sem dúvida que viria falar comigo 
E entraria pela minha porta dentro 
Dizendo-me, Aqui estou! 
 
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos 
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas, 
Não compreende quem fala delas 
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.) 
 
Mas se Deus é as flores e as árvores 
E os montes e sol e o luar, 
Então acredito nele, 
Então acredito nele a toda a hora, 
E a minha vida é toda uma oração e uma missa, 
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos. 
Mas se Deus é as árvores e as flores 
E os montes e o luar e o sol, 
Para que lhe chamo eu Deus? 
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar; 
Porque, se ele se fez, para eu o ver, 
Sol e luar e flores e árvores e montes, 
Se ele me aparece como sendo árvores e montes 
E luar e sol e flores, 
É que ele quer que eu o conheça 
Como árvores e montes e flores e luar e sol. 
 
E por isso eu obedeço-lhe, 
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?), 
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente, 
Como quem abre os olhos e vê, 
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes, 
E amo-o sem pensar nele, 
E penso-o vendo e ouvindo, 
E ando com ele a toda a hora.
 
POEMA EM LINHA RETA
 
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
 
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
 
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…
 
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
 
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
 
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
 
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
 
(PESSOA, F. Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática. 1944 (imp. 1993). p. 312.)
 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor

Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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