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Uma viagem pelos caminhos da escrita

Christopher Vogler escreve este livro A Jornada do Escritor como um guia para escritores sob a forma da jornada do herói, numa viagem que mostra, com um olhar esquemático, os caminhos da escrita, e isto num viés arquetípico que coloca personagens que marcam a narrativa com padrões que se fundamentam com o centro todo na imagem do herói, neste livro que tem ideias orientadoras do que seja uma narrativa eficiente para a ficção.
 
O livro de Vogler acaba por ser uma ferramenta útil para todos os estilos e técnicas narrativas, seja: roteiristas, cineastas, videomakers, contadores de histórias, escritores de livros infantis, dramaturgos, romancistas, críticos, professores e estudantes de letras, por exemplo.
 
E Vogler, com sua a Jornada do Escritor, tem seus conceitos sempre associados com os arquétipos de Jung, os estágios da narrativa mítica de Campbell, e as funções dos personagens no conto popular segundo Propp. O livro forma, basicamente, o conjunto de conceitos conhecido como “jornada de herói”, extraídos da psicologia profunda de Carl G.Jung e dos estudos míticos de Joseph Campbell. E aqui Vogler toma por uma de suas bases o livro O herói de mil faces de Campbell.
 
A jornada do herói pode ser tratada universalmente como o fato de que todas as histórias consistem em alguns elementos estruturais comuns, encontrados em mitos, contos de fadas, sonhos e filmes. E o objetivo de Vogler é situar este universal narrativo e seus elementos no seu uso já no contexto da escrita moderna.
 
Um dos primeiros arquétipos que aparecem na jornada do herói é o guardião de limiar, entidade da narrativa que consiste basicamente em forças desconhecidas com as quais os heróis se deparam. Os guardiões surgem do nada, nos vários patamares que servem de entrada para situações novas no decorrer da jornada, nas passagens estreitas e perigosas entre um estágio da vida e outro. Campbell mostrou os diferentes modos com que os heróis lidam com os guardiões de limiar, e que em vez de atacar de frente esses poderes aparentemente hostis, aprende-se a ultrapassá-los com a astúcia.
 
E Vogler descobre então que Campbell já compreendera a universal verdade da jornada do herói, isto é, era um modelo que ocorria em todas as culturas, em seu fundo mítico primordial, e que se estendia, também, por todas as épocas. Criando-se a ligação direta destas ideias de Campbell com os arquétipos junguianos, como personagens ou energias que se repetem constantemente, seja em sonhos ou na mitologia. E em Jung esta fonte comum ganha como imagem conceitual e psicológica a ideia de inconsciente coletivo, e que em Vogler, com base em Campbell, ganha o sentido de histórias que servem como modelos exatos de como funciona a mente humana, verdadeiros mapas da psique.
 
Um dos esquemas levantados por Vogler, ao descrever as etapas que cercam a jornada do herói durante uma narrativa completa, começa com a transição do herói do chamado mundo comum para o chamado à aventura, pois há o contraste do mundo original em que surge o protagonista ou herói e sua passagem para o meio novo em que se desenvolverá a aventura que traz a narrativa para uma ação mais efetiva. Nas palavras de Vogler: “o chamado à aventura estabelece o objetivo do jogo, e deixa claro o objetivo do herói: conquistar o tesouro ou o amor, executar vingança ou obter justiça, realizar um sonho, enfrentar um desafio ou mudar uma vida.”
 
Uma etapa intermediária que pode se interpor entre o mundo comum de que surge o herói e seu chamado à aventura, está na conhecida recusa do chamado, em que o herói está relutante, pois é a hora do medo, o herói hesita antes de partir para a aventura, com o terror do desconhecido. Neste momento, o herói ainda não se lançou de cabeça em sua jornada, e se torna necessário que surja outra influência para que o herói saia do ciclo da relutância e entre na narrativa de sua verdade, normalmente sob o incentivo de um mentor. E aqui é bom lembrar que uma das características mais ricas em valor simbólico da mitologia está nesta relação entre o herói e seu mentor. E a função do mentor é, portanto, a de preparar o herói para enfrentar o desconhecido, com conselhos, orientação ou equipamento mágico, e depois a aventura segue em frente já com o herói independente do auxílio de seu mentor.
 
Depois da relutância começa a nova etapa da travessia do primeiro limiar, isto é, a aventura começa efetivamente, a história decola. Uma vez ultrapassado o primeiro limiar, o herói naturalmente encontra novos desafios, passa por testes, e faz aliados e inimigos, começando a aprender novas regras do mundo novo de sua aventura. E então ocorre a aproximação da chamada caverna oculta, que é quando finalmente o herói chega na fronteira de um lugar perigoso, às vezes subterrâneo e profundo, onde está escondido o objeto de sua busca.
 
Quando o herói entra nesse lugar temível, ele atravessa o segundo grande limiar, e se detém diante do portão para se preparar, planejar e enganar os guardas do vilão, na chamada fase de aproximação, e na mitologia esta caverna oculta pode representar a terra dos mortos. Resumindo: a aproximação compreende todas as etapas para entrar na caverna oculta e enfrentar a morte ou o perigo supremo.
 
Já depois do perigo mortal começa a provação, uma das fases mais críticas da jornada do herói. Aqui se joga a sorte do herói, ele enfrenta novamente a possibilidade da morte e é levado ao extremo numa batalha contra uma força hostil, a provação deixa a dúvida se o herói sairá disso, é o momento do suspense e da tensão máximos, é o momento sinistro em que ninguém sabe se o herói morrerá ou viverá. Este momento é o mais crítico, pois a provação coloca o herói numa experiência de quase morte, de limite extremo, em que há a sequência de um renascimento, e que é uma das principais fontes da magia do mito heroico. A iminência de morte e o renascimento é a provação que vira superação. Nas palavras de Vogler: “Toda história necessita de um momento de vida ou morte, no qual o herói ou seus objetivos estão frente a um perigo mortal.”
 
Após o estágio crítico da provação que se torna superação, começa a fase da recompensa. E neste novo estágio o herói já conquista uma compreensão maior, a visão esclarecida toma, por harmonia temporal, a recompensa com um preparo que não havia antes. E, também, o poder de atração do herói aumenta por este ter passado vivo da provação. E agora, o caminho de volta está aberto, a nova fase coloca o herói, além da reconciliação que a recompensa proporciona, no seu terceiro ato, em que o herói começa a lidar com os efeitos de ter-se confrontado com as forças obscuras da provação. E sempre nesta reconciliação poderá ocorrer, neste caminho de volta, a emersão das forças vingadoras evocadas durante o período de provação.
 
Agora, já na ressurreição, o herói tem um segundo momento de vida ou morte, quase uma repetição da morte e renascimento da provação, pois a morte e a escuridão fazem um último esforço desesperado, antes de serem finalmente derrotadas. E, superado mais este momento, o herói se transforma, graças a esses momentos de morte e renascimento, e assim pode voltar à vida comum como um ser renovado, com um entendimento mais definido que antes.
 
O herói retorna ao mundo comum, mas a jornada não tem sentido se ele não trouxer de volta um elixir, tesouro ou lição do mundo especial pelo qual passou. O elixir é uma poção mágica com o poder de curar, podendo ser também o conhecimento e a sabedoria trazidos do mundo especial, e que é, ainda, o simples fato de ter uma boa história para contar.
 
Uma vez estabelecida as etapas narrativas da jornada do herói, devemos nos concentrar agora nos arquétipos que compõe a história, isto é, os personagens típicos que são símbolos constantes da narrativa heroica. Estes podem ser enumerados como: Herói, Mentor, Guardião de Limiar, Arauto, Camaleão, Sombra e Pícaro.
 
A palavra herói vem do grego, de uma raiz que significa “proteger e servir”, um herói é alguém que está disposto a sacrificar suas próprias necessidades em benefício dos outros. A raiz da ideia de herói está ligada a um sacrifício de si mesmo. Dramaticamente, o herói dá à plateia uma janela para a história ou narrativa. Na história há uma identificação com o herói, pois a plateia se funde com ele e passa a ver o mundo por meio de seus olhos. As histórias nos convidam a investir no herói uma parte de nossa identidade pessoal, enquanto dura a experiência. E os heróis também são possuidores de qualidades admiráveis que produzem este fenômeno da identidade nas histórias e narrativas.
 
No caso do herói, este precisa ser um ser humano único, o que não implica num estereótipo de perfeição, sem máculas. Então, na verdade, na verdadeira obra de arte, o herói precisa ter, ao mesmo tempo, universalidade e originalidade. A verdade é que um personagem que tenha uma combinação única de impulsos contraditórios, como confiança e suspeita, ou esperança e desespero, tem um conteúdo mais realista e humano do que outro que apresente apenas um único traço de caráter. Pois é a combinação especial dessas qualidades que dá à plateia a noção certa de que o herói é único, uma pessoa real, e não um tipo.
 
Os heróis ultrapassam, na história, obstáculos e conquistam metas, pois a jornada do herói na história ou narrativa é sobretudo um caminho de aprendizado, pois é em sua jornada e em certos percalços que produzem uma boa história que o herói consegue conhecimento e sabedoria. E, por sua vez, o herói é que deve realizar a ação decisiva na história, a ação que exige maior risco e responsabilidade.
 
Os heróis são símbolos da alma em transformação e da jornada que cada pessoa percorre na vida. Os estágios dessa progressão, os estágios naturais da vida e do crescimento, formam a jornada do herói.
 
Outro arquétipo que é comumente encontrado em sonhos, mitos e histórias é o mentor, que é, em geral, uma figura positiva que ajuda ou treina o herói. Esse arquétipo se expressa como um personagem que ensina e protege o herói e que pode, também, dar certos dons a este herói. Esta relação, de origem mitológica principalmente, tem nas histórias modernas uma importância fundamental.
 
Na psique humana, os mentores representam o self, o deus dentro de nós, o aspecto da personalidade que está ligado a todas as coisas, pois o self superior é a parte mais sábia, mais parecida com um deus em nós. É na figura do mentor que o processo do herói ganha a sua dinâmica de transformação, pois o conhecimento e a sabedoria do herói começam na experiência original do mentor, e é só a partir daí que a jornada própria do herói tem começo.
 
Por sua vez, os guardiões de limiar não são os principais vilões ou antagonistas nas histórias ou narrativas. Pois na maioria das vezes são capatazes do vilão, correligionários menores ou mercenários contratados para guardar o acesso ao quartel-general do chefe. Estes são colocados no caminho do herói como fonte de provação, testando sua disposição ou capacidade.
 
Esses guardiões podem representar os obstáculos comuns que todos nós temos que enfrentar no mundo que nos cerca, tais como azar, preconceitos, opressão e pessoas hostis. No nível psicológico, os guardiões de limiar podem representar nossos demônios internos, tais como neuroses, cicatrizes emocionais, vícios, dependências e autolimitações que impedem nosso crescimento e progresso.
 
Na hora da mudança, este demônios se erguem, não exatamente para deter-nos, mas para sermos testados mais uma vez na nossa determinação, ao nos colocar na situação definitiva de aceitar finalmente o desafio da mudança. Testar o herói é a função dramática primordial do guardião de limiar, pois é neste momento que o herói é impelido a decifrar um enigma ou passar pela provação. E aprender a lidar com um guardião de limiar é um dos maiores testes por que passa o herói, pois sua superação passa por sua incorporação e não necessariamente por um enfrentamento.
 
No primeiro ato da jornada do herói aparece uma força que traduz um desafio ao herói, que é a energia do arquétipo do arauto. Este lança um desafio e anuncia a vinda de uma mudança significativa. No começo de uma guerra, por exemplo, um arauto podia ser chamado para recitar as causas do conflito, ou seja, para fornecer a motivação da história. O herói, diante do arauto, passa por uma reforma íntima, e deixa uma vida dissipada para uma vida disciplinada.
 
O arauto desempenha a função importante de anunciar a necessidade de mudança, pois na psique algo em nosso íntimo sabe quando estamos prontos para mudar, e nos envia uma mensagem, e o arauto pode ser uma figura de sonho, uma pessoa real ou uma nova ideia que encontramos. O arauto fornece, portanto, um desafio ao herói e desencadeia a ação da história, é o ente principal da motivação, e o caminho da aventura, por sua vez, começa efetivamente com este desafio do arauto em relação ao herói.
 
Com frequência os heróis encontram figuras, muitas vezes do sexo oposto, cuja principal característica é estarem sempre mudando, do ponto de vista do herói, pois é comum que o interesse amoroso do herói, ou sua parceira romântica, manifeste as qualidades de um camaleão, numa relação espantosamente mutante.
 
Um propósito psicológico do arquétipo do camaleão é expressar a energia do animus e da anima, termos junguianos que tem no animus o elemento masculino no inconsciente feminino e a anima como elemento feminino no inconsciente masculino. Duas energias que contribuem com o equilíbrio interno de cada um. Um encontro com o animus ou anima, em sonhos ou fantasia, é considerado um passo importante do crescimento psicológico. E o camaleão, neste contexto, tem a função dramática de trazer dúvida e suspense à história ou narrativa, pois a motivação do arauto é complementada por esta intriga positiva, na maioria das vezes, da função do camaleão.
 
O arquétipo conhecido como sombra, por sua vez, representa a energia do lado obscuro, os aspectos não expressos, irrealizados ou rejeitados de alguma coisa. São, numa imagem psicológica, os monstros reprimidos do nosso mundo interior. A face negativa da sombra, na história ou narrativa, projeta-se nos personagens chamados de vilões, antagonistas ou inimigos, que se dedicam à morte, destruição e derrota do herói.
 
O conflito se dá, para além da motivação do arauto e da dúvida camaleônica, na trama fundamental entre protagonista e antagonista, a guia inicial do mentor e a jornada independente do herói que tem uma provação com o guardião de limiar mas que terá seu principal conflito e motivo de toda a jornada no seu confronto com o inimigo, a sombra.
 
O arquétipo do pícaro, por sua vez, incorpora as energias da vontade de pregar peças e refletem, também, o desejo de mudança. Todos os personagens de uma história ou narrativa que são principalmente palhaços ou manifestações cômicas expressam este arquétipo. A forma especializada denominada do herói picaresco é a figura dominante em mitos e popular no folclore e contos de fadas. O pícaro subverte a trama no sentido de demonstrar certas hipocrisias e vínculos artificiais que ocultam o verdadeiro caráter das coisas. O pícaro denuncia, sobretudo, o absurdo e desequilíbrio de certas situações psicológicas estagnadas. O pícaro é o inimigo natural do status quo.
 
Neste livro de Christopher Vogler temos o título A Jornada do Escritor, mas que pode muito bem ser entendida como a jornada do herói, pois sua centralidade fica evidente neste trabalho de Vogler, e sua base dupla de conteúdo herdado de Joseph Campbell e estrutura conceitual herdada de Jung, por sua vez, nos coloca diante de um guia para roteiristas, escritores e afins, com o fito de não encerrar ou esgotar as possibilidades de uma história ou narrativa, mas de criar um método útil para muitos casos em que o trabalho de criação de uma história é feita, isto é, Vogler bebe da fonte de Campbell e Jung e forma um duplo novo como guia para o empreendimento narrativo de contar uma boa história.
 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor

 
     

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