À beira de completar 80 anos, Bernadette Lyra traz o frescor da menina que começou a ler aos cinco anos. A mesma que se apaixonou pela estante localizada no fundo da quitanda de secos e molhados de seu avô na Conceição da Barra dos anos 40. “Era uma estante de madeira antiga fechada com porta de vidro, cheia de livros em francês, espanhol, clássicos em português. Eça de Queiroz, Machado de Assis, tava tudo lá”, conta entre amigos, numa sofisticada mesa de bar antes do pré-lançamento da nova edição do livro Ruínas da Ilha de Creta, que há 20 anos lhe gerou uma indicação para o Prêmio Jabuti, galardão mais importante da literatura brasileira.
Foto: Leonardo Sá
Mas voltando aos princípios: os olhos da pequena menina ruiva brilhavam do outro lado do vidro contemplando seu “tesouro de olhar”, os livros, enquanto as outras crianças corriam e jogavam bola. “Eu era tida como uma menina estranha, esquisita. Sofria bullying na escola, isso me retraía e eu me voltava mais para os livros”, lembra a escritora. “Assim que eu consegui ler e entrei pra escola, meu avô abriu as prateleiras dele pra mim. Foi toda uma experiência mística a minha relação com a literatura na infância e juventude.”.
Sentada no chão da quitanda, a Bernadette-menina lia poemas em outras línguas mesmo sem entender, gostava das letras, sons, combinações. “Eu tenho a impressão que hoje sou uma escritora de ritmo. Me considero uma escritora de ritmo, não de contar histórias. Trabalho até pegar o tuc-tuc, a música da língua portuguesa, que acho linda. Meu fôlego é curto. Eu tenho romances publicados, mas se você olhar bem, meus romances são pequenos contos reunidos”.
Ela diz que não preza por ser uma grande escritora, se vê mais como uma escritora menor no sentido que Deleuze e Guattari atribuem a Kafka: uma escritora que trabalha sua língua adaptada ao seu modo de vida e sua ambiência. “E qual a minha ambiência?”, pergunta retoricamente. “É o Espírito Santo, é Conceição da Barra. A música do mar, o gosto da areia salgada na boca, a água salobra da Cacimba do Borges que eu bebia”, detalha.
São lembranças de infância da menina que aos 12 anos veio morar e estudar em Vitória, essa cidade repleta de minotauros, figuras míticas gregas com corpo humano e cabeça de touro. Talvez o leitor tenha começado a ler este texto buscando entender quem são e onde estão esses tais minotauros em Vitória. “É só descer a escadaria Maria Ortiz. Temos muitos de todas as espécies, basta você andar por aí que você vê”, diz sem explicar a autora do livro Memória das Ruínas de Creta, editado e reeditado pela editora A Lápis, contando com belíssimas ilustrações de Nelma Guimarães.
A história é longa. Para Bernadette, toda obra começa com uma partícula preciosa, alguma coisa que pressiona a mente do escritor. Pode ser qualquer coisa. Nesse caso, uma nota um tanto triste de sua vida, que foi a morte de seu filho Álvaro, aos 32 anos, num acidente. Escrever foi a única maneira que encontrou de exorcizar sua dor.
O fio de ligação é que a poderosa Ilha de Creta recebia tributo de outras cidades que tinham perdido a guerra para ela. E o tributo era o envio de sete jovens para alimentar o minotauro que habitava os labirintos da cidade. “Imagina o desespero das mães desses jovens. Agora imagina o meu desespero”, pede a escritora, com notável emoção. “Esse é o começo do livro, daí em diante eu embarquei. Porque Vitória é uma ilha, Creta é uma ilha. Vitória está cheia de minotauros. Então fui ligando essas coisas todas que me ocorriam e vi que Vitória é uma ilha tão mítica e disposta a um espaço de sacrifício quanto Creta. Daí nasceu o livro”, explica Bernadette Lyra.
Foto: Leonardo Sá
A obra é um tributo à Capital num comparativo com a cidade grega, trazendo diversos elementos e personagens da mitologia clássica como Minotauro, Ícaro, Ariadna, Teseu, que compartilham a mesma obra com as paneleiras de Goiabeiras, o congo do Amores da Lua, o Morro do Moreno que escolta a entrada na cidade capixaba pelas águas.
Há muito de memória, um incrível esmero na linguagem e um bocado de imaginação, como no surrealismo da imagem da cúpula do edifício Glória (hoje Sesc), que se derrete vertendo num rio prateado. Perguntada sobre a memória capixaba, Bernadette Lyra ilustra sua respostas com um outro livro que escreveu, A Capitoa, sobre Luiza Grinaldi (ou Grinalda, ou Grimaldi, nem se sabe ao certo seu sobrenome!), que liderou nessas terras a vitória contra a invasão do temido corsário inglês Thomas Cavendish.
Tive uma extrema dificuldade de encontrar material sobre ela no lastro histórico do meu romance”, revela. “Esse é um exemplo. Você não encontra a memória do Estado, da Capitania, a nossa memória. Foi toda perdida e não sei como. Há um descaso”. No final das contas, acabou encontrando mais informações em Portugal, onde é professora visitante da Universidade do Algarve. “Não é um romance histórico, é uma brincadeira com a história do Espírito Santo. É mais a vida de uma mulher que eu quero contar, não é a figura histórica que me interessa ali”.
As personagens femininas são uma marca constante na obra de Bernadette Lyra como escritora. “Eu escrevo na verdade somente sobre o que eu conheço. O que eu conheço já é uma coisa muito misteriosa para mim. E eu conheço as mulheres bem melhor do que os homens. Os homens pra mim são o outro lado da lua. Homem tem um mistério”. Se considera mais uma escritora feminina do que feminista, mas reconhece o feminismo de alguma maneira porque “vem de uma geração que queimava sutiãs” e porque “toma partido” em suas obras.
O novo livro que a escritora capixaba prepara, que já está “no prelo”, com possível lançamento em novembro, também tem como centro personagens femininas. O nome da obra será “Ulpiana”, em referência ao cemitério grego, uma necrópole, cujas ruínas persistem numa cidade localizada onde hoje é Kosovo. “É impressionante o ar que você sente de morte naquele espaço. Sua sensibilidade fica abalada por saber que ali houve uma grande batalha que resultou num massacre”.
A trama fala sobre o suicídio de uma senhora de 70 anos que saltou do 10º andar, a partir do relato de uma narradora [“supostamente sobrinha dela, porque nem eu posso afirmar que seja”], que como única parente precisa voltar de Kosovo para tomar as providências sobre o corpo frio que espera por ela. “É morte. É suicídio. Mas é vida também, depois. É uma espécie de potência de vida que existe no tentar narrar uma coisa inenarrável que é a morte. É isso que é o livro na verdade”
Para Bernadette, é uma tarefa impossível: quem escreve quer expressar alguma coisa mas nunca consegue dar conta de provar a fraqueza da realidade. Tarefa que começou com nove anos escrevendo uma peça de teatro em que todas personagens começavam com Z. “Não me pergunte porque nem eu sei a razão. Por sorte os cupins comeram, pois hoje em dia poderia cair nas mãos de um pesquisador”, brinca, imaginando o que diriam sobre este produto tão cru de sua trajetória.
Aliás, uma trajetória um tanto respeitável de uma pós-doutora pela universidade Paris V, professora da Universidade Federal do Estado (Ufes) e da Universidade de São Paulo (USP) e autora também de livros e artigos sobre cinema e audiovisual, tema que ela abordaria na mesma noite em que fazia o pré-lançamento do livro. Os amigos e colegas não param de chegar, o prazo de validade de nossa entrevista vai vencendo, pois já fica difícil sustentá-la entre tantos cumprimentos.
Foto: Leonardo Sá
Residindo em São Paulo desde a virada dos anos 80 para os 90, Bernadette Lyra nunca deixou de lado os afetos capixabas. Brinca que é uma exilada. Penso que exílio é uma palavra demasiado forte para se brincar, mas prefiro não contrariar a menina de quase 80 anos que ao longo das décadas se especializou justamente em brincar com palavras.
Assim traduz esse exílio voluntário: “Tô' sempre com o coração preso aqui. No avião eu sempre fico na janela, de propósito, para ver o Rio Itabapoana. Porque quando você vê o Rio Itabapoana, está entrando no Espírito Santo, vindo de São Paulo. Eu já sei o desenho do rio direitinho. É uma sensação de volta, de poder estar num lugar que é seu, impressionante isso”.