Grupo Lacarta Circo Teatro completa 7 anos de existência longe das ruas, seu palco de origem
É dentro de casa, também sede do grupo Lacarta, que começa o trabalho de Carlitos Cachoeira e Amora Gasparini, a palhaça Chabeli. Fazer maquiagem, vestir o figurino, preparar adereços cênicos fazem parte da rotina antes de partir para o grande palco da humanidade: a rua.
“A gente vive exclusivamente do circo teatro, ele faz parte da nossa vida o tempo inteiro. Em casa criamos, ensaiamos, refletimos sobre nosso ofício e levamos pra rua o resultado. E como a rua é diferente e tem suas interferências, ali é lapidado esse resultado”, diz Amora. Boa parte do sustento dos artistas é tirado “passando o chapéu”.
O Lacarta Circo Teatro acaba de completar sete anos de existência. A história começa num evento anarcopunk no 1º de maio de 2013, Dia do Trabalhador, no Parque Moscoso. Foi lá o primeiro encontro dos dois artistas como casal e a ideia de criar um grupo para trabalhar juntos.
Circense autodidata, Carlitos nasceu no estado do Rio de Janeiro mas cresceu em Vila Velha e se formou em teatro pela Federação Capixaba de Teatro (Fecate). Amora é capixaba e se formou em teatro na Escola Técnica Municipal de Teatro, Dança e Música (Fafi) e em Artes Plásticas na Universidade Federal do Estado (Ufes). Ambos também passaram pela Escola Livre de Palhaços (Eslipa), no Rio de Janeiro, que tem contribuído para a formação de uma nova geração de artistas circenses. Embora Carlitos tenha trabalhado em circo tradicional com a Família Malta, os integrantes do Lacarta não vêm de família circense, buscando o aperfeiçoamento de sua formação em outros estados.
“Não existe escola ou cursos para palhaços, por isso buscamos o conhecimento fora, mas aplicamos todo conteúdo aprendido aqui no Estado em forma de espetáculos e também damos cursos e oficinas para os artistas locais, para propagar tudo que aprendemos”, conta Amora, idealizadora de projetos como o Encontro Internacional de Palhaças da Ilha do Mel, que já teve duas edições em Vitória, buscando visibilizar o trabalho das mulheres nessa área.
Carlitos Cachoeira explica que o palhaço com que a maioria da população está habituada é aquele do circo de lona, que usa maquiagem mais exagerada até por conta da dimensão do palco e do público, com maior distância da plateia.
“O palhaço contemporâneo atrela a sua dramaturgia a questões mais sociais e políticas, herança deixada pelos bufões, jograis, arlequins e outras figuras consideradas ancestrais ao palhaço”, complementa, mencionando que os palhaços de circo, que também migraram para a TV, geralmente estão mais ligados ao entretenimento, limitando a presença da crítica social. “Costumamos dizer que assim ele se tornou dócil, mas na nossa verdade, é que o palhaço é doce, e para isso, não precisa ser dócil, mas sim, mais incisivo no contexto social, mesmo que para isso utilize da ludicidade”.
Os artistas do Lacarta consideram que o palhaço é a teatralização de si mesmo. São suas próprias fragilidades e características que são expostas ao público, obviamente de forma exagerada. Assim, seu palhaços internos aparecem também no cotidiano, em situações cômicas em momentos inesperados ou até inadequados, que podem depois virar cenas para o repertório.
Assim foi num dia em que o casal voltava pra casa em bicicleta na chuva. “Colocamos capas de chuva e a Amora colocou a sua capa ao contrário! Rimos e percebemos que acabamos de criar um cena. Isso demonstra a palhaça dela, Chabeli, dando o ar de sua graça num momento inusitado”, diverte-se Carlitos.
O Lacarta possui atualmente um repertório de cinco espetáculos, apresentados nas ruas, praças, feiras, parques, praias, semáforos, mas também nos palcos de teatro e em hospitais e instituições que trabalham em zonas de vulnerabilidade social. O carro-chefe é a peça Dose Dupla, cuja estreia em 2017 em Rio das Ostras (RJ) foi memorável: “Nessa ocasião o público foi tão receptivo que o chapéu que passamos foi bem recheado e tinha até nota de cem!”, conta Amora Gasparini lembrando da nota do peixinho azul, espécie mais rara de encontrar no chapéu de artistas de rua.
Trabalhar nas ruas tem suas dificuldades, como as adversidades do tempo ou as constantes tentativas de proibição por parte do Estado. Mas permite sentir o público de maneira muito próxima, dizem. No início do trabalho no Espírito Santo sentiram que o público não estava muito habituado a esse tipo de intervenção, mas aos poucos artistas e plateias foram se entendendo melhor, e o Lacarta moldando sua forma de se apresentar. “Na verdade cada lugar é diferente do outro, e essa é a graça de estar nas ruas. O improviso e o domínio que temos de saber o que fazer e como fazer, os presentes que encontramos, as experiências, as dificuldades, tudo faz parte, tudo é importante”, relata Amora.
Ela acrescenta que a tradição de passar o chapéu como principal forma de remunerar o trabalho ajuda a democratizar o acesso à arte, sendo uma tradição milenar, que remonta aos tempos da Grécia Antiga. Com a criação das bilheterias, foi sendo deixado de lado. “Contudo, o chapéu é a contribuição generosa e afetiva do público que, além de colaborar, incentivar e investir na arte de rua, demonstra que gostou. Uma contribuição democrática onde paga quem quer e quanto quiser e puder, se distanciando das práticas de cobrança de ingresso onde só assiste quem pode pagar”, explica a palhaça.
Nesse momento, o leitor que teve fôlego para chegar até aqui já deve ter se perguntado: mas como deve estar o trabalho deles com essa crise da Covid-19, em que a recomendação é evitar ao máximo de sair às ruas?
Para o Lacarta foram muitos impactos. Recentemente o grupo havia mudado de casa e sede do grupo no Centro de Vitória, com intuito de realizar ali atividades culturais e formativas. A inauguração foi com uma oficina de palhaçaria voltada para ambiente hospitalar, que aconteceu em 15 de março. No dia seguinte começaram os anúncios de confinamento social, e o local vai seguir sem atividades até que a situação se normalize. O Lacarta também participaria do 1° Festival de Teatro do Brasil entre 22 e 27 de março, realizando oficinas e espetáculos de rua em Vitória, além de outras eventos, viagens e festivais que foram adiados.
“Enfim, com isso vamos tentando nos reinventar. Focando em trabalhos virtuais, dando aulas por vídeo, participando de vídeo conferências. Mas com o futuro incerto, pois a maior parte do nosso trabalho se realiza na rua, em contato direto com a plateia. E vamos combinar, não é a mesma coisa”, avalia Carlitos. Palhaços também ficam tristes e é isso que a dupla sente diante do cenário de incerteza por conta da pandemia e da situação política do país, que agrava ainda mais toda situação.
Mas mesmo em isolamento, os palhaços continuam trabalhando. “É o tempo todo criando. Assiste um filme, vê uma cena e se inspira. Escuta uma música e lá vem mais uma cena…não sabemos como não conseguimos enjoar”, diz Amora, a palhaça Chabeli, que logo desconstrói a própria fala: “Aliás, sabemos sim (risos). É o que a gente mais ama fazer!”
A comemoração do aniversário não vai passar batida. A tradição era comemorar com um cortejo de rua e apresentações, com direito a tortada na cara coletiva. Diante da impossibilidade atual, durante esta semana o grupo vai publicar um vídeo por dia em seu Instagram, abordando conteúdos teóricos sobre palhaçaria, cenas do repertório e músicas e poesias que os inspiraram.