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‘A gente tem direito de gozar da melhor saúde, mas isso não é garantido’

Maior letalidade por Covid-19 entre PCDs reforça necessidade de políticas públicas específicas, indica estudo

“A gente tem direito de gozar da melhor saúde, até mesmo porque nós temos questões de saúde diferenciadas. Mas esse direito não é garantido”. A afirmação é da cadeirante Elaine Moreira de Oliveira e reflete os dados apresentados em dois estudos recentes sobre os impactos da pandemia de Covid-19 sobre as pessoas com deficiência (PCDs) no Espírito Santo, que mostram a maior letalidade pela doença neste público e a maior dificuldade de acesso a outros direitos fundamentais.  

Arquivo pessoal

Inserida no Benefício de Prestação Continuada (BPC) da Lei Orgânica de Assistência Social (BPC Loas) e moradora de Santa Rita, em Vila Velha, Elaine perdeu a filha, também cadeirante, em fevereiro de 2021. Nenhuma das duas foi infectada pelo SARS-CoV-2, mas ela percebe que ambas foram afetadas diretamente pela pandemia de forma muito negativa. 

“A minha filha faleceu esperando um exame pelo SUS [Sistema Único de Saúde]. Cintilografia renal. Ela estava há dois anos esperando. Naquele período de pandemia, era só mesmo assim: ‘a pessoa vai morrer, então faz o exame, a cirurgia’. As outras pessoas ficavam esperando. A gente teve menos acesso à saúde. A gente precisava de pessoas nos ajudando, mas como, com isolamento social? O acesso à saúde foi quase zero para a gente”. 

Além da morte da filha, ela contabiliza outros vazios durante esse período. “A pandemia acabou comigo. Tive essa perda e não pude ser acolhida, abraçar os amigos, não podia nem ver o mar, para tentar me sentir melhor, mais forte. Foram quase dois anos assim. Teve momentos que nem meu filho podia chegar perto da gente, quando nos visitava. Só não enlouqueci porque tenho a Deus e amigos”. 

Portadora de diabetes e de outros problemas crônicos de saúde decorrentes do diabetes e colesterol alto, como nefropatia, retinopatia, polineuropatia diabética (fraqueza nos nervos principalmente pernas e braços, dificuldade de tocar a cadeira), Elaine tem muita dificuldade de locomoção, mesmo na cadeira de rodas motorizada, pois as mãos, atrofiadas, não suportam muito tempo conduzindo o equipamento. Mas vê-se obrigada a cuidar de si sozinha. Além do BPC, somente tinha um complemento das vendas do bazar e brechó, mas que foram inviabilizadas durante o isolamento social, e caíram muito este ano, em função da crise econômica. 

“Eu venha de uma vida que eu sempre tive que correr atrás para tudo, então procuro primeiro as políticas públicas que eu tenho direito, se não consigo, tenho que comprar, porque ação judicial sempre demora muito. Eu uso fralda, tenho que comprar. Tenho amigos que judicializaram o pedido para receber as fraldas e aguardam há mais de um ano”, relata. 

Como exemplo dos obstáculos enfrentados em atividades corriqueiras, conta sobre a falta de acessibilidade no comércio. “Tenho dificuldade no meu bairro. Um supermercado aqui diz que fez acessibilidade, mas o que tem é um ‘murundum’, que se eu tentar passar, caio para trás. Isso aconteceu comigo na Glória, e eu estava de vestido, virei com a cadeira de rodas, fiquei de bunda para cima, mostrando minha calcinha. Olha a humilhação! Porque nós não temos uma cidade acessível. Ainda mais em Vila Velha que, quando chove, a maior parte inunda tudo, então as lojas têm calçadas altas, degraus, para não perder tudo com as enchentes”. 

Do alto dos mais de vinte anos como PCD – a filha faleceu aos 19 anos e ela própria é cadeirante há quatro –, Elaine reconhece que as leis voltadas às pessoas com deficiência estão no início de uma escalada de garantia de implementação. “Ao mesmo tempo em que critico a falta de acesso, digo que todas essas leis são muito novas, a LBI [Lei Brasileira de Inclusão, nº 13.146/2015], os tratados da ONU [Organização das Nações Unidas]…anos atrás não tinha direito a nada, a pessoa com deficiência não estudava, se tinha deficiência intelectual, era apenas uma criança louca. Não andava, não tinha acesso à escola, a nada. A PCD se acostumou a ter o que der, não sabia correr atrás dos direitos”.

Reconhecimento, no entanto, que ela não vê como justificativa para desistir da luta. “As pessoas, às vezes, têm medo de exigir seus direitos, acham que se reivindicar vai perder o pouco que tem. Eu falo: ‘é seu direito, pode exigir sim!'”.

‘Menos valia’

A descrição de Elaine, do passado recente da realidade das PCDs no Brasil, também é citado no estudo “Pessoas Com Deficiência e Covid-19 no Espírito Santo: entre a invisibilidade e a falta de Políticas Públicas”. Publicado em dezembro de 2021, o artigo é assinado pelos professores da Universidade Federal do Espírito Santo Ethel Maciel, Douglas Ferrari, Etereldes Goncalves Junior e Eliana Zandonade, além dos pesquisadores Pablo Jabour, Jéssica Delcarro e Igor Robaina. 

“A situação de pobres, escravos e deficientes no Brasil, até a primeira metade do Século XX, era de invisibilidade. Desde aquela época, os ‘corpos desviantes’, aqueles que não serviam, eram deixados à margem. No Império, surgiram as primeiras instituições ‘especializadas’, para ‘cuidar’ dos que eram considerados fardo social. A partir da Revolução Industrial, foi preciso começar a considerar a produtividade dos que representavam a ‘menos valia’, e diferenciar os ‘treináveis’ dos ‘não treináveis’. Em todos os casos, esses corpos eram apagados e silenciados”. 

O estudo utilizou dados disponibilizados pelo Painel Covid-19 do governo do Estado, relativos à letalidade por Covid-19, comparando os números de pessoas com e sem deficiência, no período entre 17 de fevereiro e dois de setembro de 2020. O resultado foi de uma letalidade de 4,9% no grupo das PCDs e de 3% no grupo sem deficiência. “A pandemia enfatiza a necessidade de criar mecanismos legais de cuidados específicos e políticas públicas focalizadas para essa população”, salientaram os autores em suas conclusões.

Outro dado que chamou atenção foi o de que “mais de 75 % dos pacientes com deficiência com Covid-19 que evoluíram a óbito não possuem o ensino médio completo”, o que levou à recomendação expressa para que “os governos elaborem políticas públicas que garantam, por exemplo, construção de protocolos, planos e manuais acessíveis e abordando das especificidades das deficiências, viabilização de condições sanitárias seguras e o pagamento de um valor emergencial às famílias de baixa renda que têm como membro uma pessoa com deficiência. Ainda, se possível, a garantia do trabalho Home Oficce das pessoas com deficiência. (…) A pandemia enfatiza a necessidade de criar mecanismos legais de cuidados específicos para as pessoas com deficiência”.

Invisibilidade continua

Um ano e meio depois do artigo, um dos autores, o professor do Centro de Educação da Ufes (CE/Ufes) e PCD Douglas Ferrari publicou, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (Fapes), o e-book gratuito “Pessoas com deficiência, saúde e educação em tempos de Covid-19: catálogo de fontes”, disponível na plataforma PCDES.org

“Trata-se de um catálogo de fontes com uma parte considerável do levantamento da pesquisa realizada durante os dois primeiros anos de pandemia: são manifestos, orientações, trabalhos acadêmicos, livros, guias, manuais de orientação e documentos legais”, explica o pesquisador. “Nele também constam materiais de audiovisual, que trazem um pouco da história por meio das reportagens e lives sobre a pandemia e a pessoa com deficiência na educação especial, além de linhas do tempo – internacional, nacional e estadual – com os principais fatos que marcaram a pandemia até agora”.

Em síntese, Douglas avalia que “o que mais ficou evidente nesses dois primeiros anos da pandemia, foi a invisibilidade das pessoas com deficiência em relação às políticas públicas, seja no processo educacional, no acesso à saúde e à assistência social”. 

Algum avanço ele considera que houve no mundo virtual. “O que pode ser considerado um avanço é o debate sobre acessibilidade e interface de Libras [Língua Brasileira de Sinais], por causa das lives e palestras. Aumentou o entendimento sobre acessibilidade e tecnologias voltadas para a Educação”. 

A invisibilidade e a continuada negação de direitos que ele aborda nas duas publicações foi recentemente ilustrada por um fato real em sua vida acadêmica, que foi a punição sofrida no final de julho último. A falta de acessibilidade nos editais de pesquisa o levou a não conseguir enxergar direito o formulário para submissão de um subprojeto de pesquisa

Com apenas 30% da visão do olho esquerdo e 5% do olho direito, Douglas perdeu o prazo para envio da proposta, ficando sem os recursos necessários para pagamento dos estudantes contratados. Mesmo após recurso, o Comitê Geral de Iniciação Científica da Ufes manteve a punição, por oito votos a um.

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