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‘Atendimento casado’ continua nas Apaes, denunciam mães e educador

Famílias relatam que mantêm filhos no CAEE da Apae, no contraturno, para não perder atendimento em saúde

Reprodução/Apae

Uma prática já denunciada há alguns anos por coletivos de profissionais, gestores e pesquisadores da Educação Especial continua ocorrendo, em diversas unidades da rede de Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apaes) do Espírito Santo: uma espécie de “atendimento casado”, em que as famílias das crianças e adolescentes com deficiência só podem ter acesso aos serviços de saúde oferecidos pela Apae se mantiverem os filhos matriculados no Centro de Atendimento Educacional Especializado (CAEE) da instituição.

Em relato feito a Século Diário, duas mães, que pediram anonimato com medo de represálias por parte das instituições, confirmaram a continuidade da prática. Uma delas, aqui identificada pelo codinome Rebeca, diz que a filha faz o CAEE em uma unidade da Apae na Grande Vitória no contraturno da escola regular onde ela está matriculada, na rede pública. Porém, na instituição, ela não tem reforço de alfabetização, que é sua principal dificuldade. Mesmo sabendo que esse trabalho é oferecido na escola regular, Rebeca diz que mantém a filha na Apae para não perder os serviços clínicos de psiquiatria, fonoaudiologia e psicologia.

“A Apae diz que não tem obrigação de fazer alfabetização, a gente já entra lá sabendo disso, que não vai ter isso. Eu gostaria que a minha filha tivesse parte pedagógica no que ela tem necessidade e isso a escola dela oferece. Mas se ela sair do CAEE, ela perde a parte clínica. Eles falam que não perde, mas na prática perde, sim. Eu já vi isso acontecer aqui”.

Rebeca lamenta que a oferta dos serviços que a filha precise seja insuficiente na rede pública. “Desde que fechou o Dório Silva e ela foi para o Himaba, está essa confusão. A partir de 2018 começou a ter falta de médico no Himaba e ela tem que ter acompanhamento de três em três meses. E eu tenho que ter graças a Deus que pelo menos na instituição eu tenho esse acompanhamento. Tem gente que não consegue nem assim”.

Outro relato vem de uma mãe que aqui chamaremos de Teresa. “Quando me desliguei do CAEE da Apae, falaram comigo que eu não poderia continuar com o acompanhamento da neuropediatra. Mas eu tive uma experiência muito ruim no CAEE de lá, tive que tirar. Agora, graças a Deus meu marido está com um emprego melhor e a gente está pagando a parte clínica pelo plano de saúde. E o AEE meu filho faz na escola da prefeitura. A estrutura não é tão luxuosa, mas o trabalho dos profissionais atende melhor as necessidades”.

Teresa conta que as famílias que não podem acessar um serviço privado de saúde se prendem às instituições filantrópicas ou amargam as filas e destratamentos do serviço público abarrotado. “O SUS [Sistema Único de Saúde] te joga para as instituições”, lamenta. E pondera: “o dinheiro público que vai para as instituições poderia ir para a escola pública, para melhorar o AEE das escolas públicas”.

Fato persiste

Esse atendimento casado e a transferência apontada como inapropriada de dinheiro público para instituições privadas foi denunciada em 2018 pela “Conferência livre. Direito à Educação CAQI/CAQ, PNE, SNE e Novo Fundeb: os impactos das políticas educacionais atuais – Educação Especial”, e, em 2019, pelo Fórum de Gestores de Educação Especial, por meio de uma carta enviada diretamente à Secretaria de Estado da Educação (Sedu).

No primeiro documento, a Conferência aborda como se estruturou o atendimento de Educação Especial para crianças com deficiência, no tocante ao que se convencionou chamar de primeira, segunda e terceira matrículas. A primeira é a da rede regular de ensino, seja pública ou privada. A segunda é nas instituições privadas e filantrópicas especializadas, como as Apaes. Uma terceira matrícula, que seria para o caso de famílias que mantêm os filhos nas instituições, para garantir o serviço clínico, mas que gostariam de ter também o AEE da escola regular. Essa terceira matrícula, no entanto, é proibida.

A Conferência lembra que a segunda matrícula ficou prevista pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) a partir de 2011, o que permitiu um aumento do aporte de recursos públicos para a Educação Especial. “Entretanto, não podemos afirmar que esses recursos tenham sido destinados aos sistemas educacionais públicos, considerando que essas verbas públicas podem ser destinadas às entidades privadas de educação especial, para oferecimento de serviços a essa população, refletindo as correlações de forças em torno dos recursos públicos no âmbito do Estado”.

No Espírito Santo, especificamente, relata a Conferência, foi promovida, em 2014, “uma mudança na forma de financiamento do Atendimento Educacional Especializado (AEE) e sua relação com as instituições especializadas”, por meio da Portaria nº 92-R, “que cria, na prática, a ‘terceira matrícula'”.

Assinado pelo Fórum Capixaba de Educação Inclusiva, Fórum Permanente de Educação Infantil ES e pelo Fórum Nacional Popular de Educação do ES, o documento afirma que “é possível observar que o governo do Estado do Espírito Santo tem assumido posições contraditórias nas políticas educacionais”.

Os editais que organizam o credenciamento dessas instituições especializadas, ressalta, reconhecem que “a rede governamental de ensino encontra dificuldades para ampliação do atendimento, assim recorre às instituições privadas/filantrópicas”. Desse modo, prossegue, “o governo do Espírito Santo resolve apostar nas instituições privadas de educação especial para atendimento ao público-alvo da educação especial, ou seja, priorizar a terceirização sob uma lógica gerencialista que administra as demandas com a lógica do menor custo, enquanto assistimos à precariedade dos serviços públicos”, critica.

A Conferência repudia essa organização, bem como “o movimento de coerção que tem sido realizado pelas instituições privadas/filantrópicas do estado do Espírito Santo em relação às famílias dos estudantes com deficiência que recebem algum tipo de atendimento nessas instituições”. Essas famílias, sublinha, “têm sido ‘orientadas’ a optar pelo atendimento educacional especializado oferecido por essas instituições, sob o risco de não poderem mais receber o atendimento clínico. Entretanto, esse movimento coercitivo tem como finalidade principal garantir os recursos públicos oriundos da segunda matrícula do Fundeb, voltada para o atendimento educacional especializado”.

O documento cita ainda a meta 20 do Plano Nacional de Educação (Lei nº 13.005/2014), que “determina a ampliação dos gastos públicos no ensino público de forma a atingir 7% do PIB em 2017 e 10% do PIB em 2024”. Meta que está ficando cada vez mais distante de ser cumprida a partir da aplicação do dinheiro público em instituições não públicas.

Um ano depois, o Fórum de Gestores de Educação Especial, formado por gestores municipais, enviou uma carta à Sedu com conteúdo semelhante, destacando “as instituições especializadas vêm desenvolvendo ações de ‘aliciação’ ou até ‘coação’ com as famílias para levarem seus filhos para o AEE ofertado nas instituições, com a alegação que não receberão o atendimento clínico de especialistas”.

Nessa condição, prossegue, “e considerando as dificuldades de encontrarem os profissionais especializados na rede pública, as famílias, mesmo contra a vontade e longe de suas residências, assinaram um termo de compromisso, abrindo mão do AEE da escola pública. É importante lembrar que as instituições especializadas também recebem recursos de órgãos públicos da saúde e assistência social”.

O que mudou desde então? Segundo o professor do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (CE/Ufes) Douglas Ferrari, que tem deficiência visual e é pesquisador e militante em Educação Especial, a prática continua. Apenas foram incluídas, no edital de credenciamento de instituições feito em 2020, algumas “travas pedagógicas”, com a existência de um setor pedagógico que faz avaliação das atividades desenvolvidas. Mas o atendimento casado continua, conforme ele observa em diversas denúncias vindas de famílias de várias partes da região metropolitana.

“As instituições não fazem um trabalho pedagógico que complemente e se articule com o turno na escola regular e chantageiam as mães para não tirarem os filhos do CAEE. A gente sabe da dificuldade de conseguir saúde pelo Estado, e elas usam dessa fragilidade das famílias para prendê-las no CAEE”.

Douglas destaca ainda uma carga que, segundo sua avaliação, recai sobre os municípios. “A Sedu incentiva os municípios a abrirem mão da segunda matrícula em favor das instituições, mas eles que devem arcar com os custos do transporte dos alunos”.

O acadêmico roga por uma mudança na forma como o dinheiro público para a Educação Especial tem sido empregado no Brasil e, especialmente, no Espírito Santo. “Por que a educação especial na rede pública não é melhor? Porque o dinheiro está indo para as instituições”. E isso, acrescenta, sem a devida fiscalização pelos espaços criados para este fim, conforme ficou evidenciado em 2021, durante a eleição das instituições que poderiam concorrer às duas vagas reservadas à sociedade civil no Conselho de Acompanhamento e Controle social do Fundeb (CACS-Fundeb).

Na ocasião, as entidades eleitas foram justamente a Federação das Associações Pestalozzi do Estado e a Federação das Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais do Espírito Santo (Feapaes), que haviam sido contempladas, em junho de 2020, com R$ 64 milhões em contratos com a Sedu válidos por 24 meses, prorrogáveis por igual período. “Ilegal não é, mas é imoral”, avalia Douglas.

Canal de denúncia

Questionado sobre a existência do atendimento casado em unidades da Apae, o presidente da Feapaes, Vanderson Gaburro, enviou nota oficial da entidade, afirmando que a prática não tem respaldo da Federação e informa um canal para que as famílias denunciem as coações.

Segue nota na íntegra:

“O Movimento Apaea no Estado do Espírito Santo é composto por 40 Apaes e duas coirmãs (Vitória Down e a Amaes), atendendo a quase 10 mil pessoas com deficiência intelectual, múltipla e autismo e suas famílias. Como movimento social formado por pais, amigos e pessoas com deficiência, ao longo dos 57 anos de atuação no Estado se firmou como referência na defesa e garantia de direitos e na luta por políticas públicas efetivas para essa parcela da população.

Além da luta por direitos, as Apaes ofertam uma gama ampla de serviços e ações especializadas às pessoas com deficiência intelectual, nas áreas de saúde, assistência social e educação, cobrindo um vazio assistencial. Essas atividades são fruto de parcerias com o Poder Público ou custeadas com iniciativas privadas. Assim, cada Instituição tem autonomia administrativa para organizar seus serviços, dentro das especificidades locais, da demanda e das exigências de meta e prestação de contas constantes em seus termos de parcerias.

Diante desse panorama e em face dos fatos narrados por Vossa Senhoria sobre denúncia de suposta prática de atendimentos vinculados e obrigatoriedade de frequência nos CAEE como condição para os demais atendimentos, a Federação das Apaes esclarece que não há qualquer orientação nesse sentido. Pelo contrário, muito embora cada Instituição tenha sua autonomia, toda a admissão e desligamento de usuários das Apaes deve ser feito amparado em parecer técnico elaborado pela equipe multidisciplinar, sempre com ciência da família. Além disso, a frequência em qualquer dos serviços ofertados pela Instituição deve ser uma opção da família.

Orientamos as famílias que por ventura se deparem com tal situação mencionada na denúncia, a formalizar tal fato à Federação para averiguação, através da nossa Ouvidoria no site www.apaees.org.br

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