Está previsto para o final de maio o começo das aulas de alfabetização da comunidade cigana de Cariacica. As chamadas Barracas de EJA [Educação de Jovens e Adultos] serão montadas nos acampamentos dos bairros Moxuara e Bubu. Neste último, serão atendidos também os ciganos do acampamento de Campo Verde, que fica próximo. Ao todo, serão 27 alunos. A proposta é de que todos eles estejam alfabetizados no prazo de seis meses.
O grande índice de analfabetismo entre os ciganos foi identificado por meio do “Mapeamento dos Povos e Comunidades Tradicionais do Município de Cariacica”, realizado pela Gerência de Igualdade Racial da prefeitura, um trabalho colaborativo que envolveu pesquisadores do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Espírito Santo (Neab-Ufes), representantes de movimentos sociais e lideranças do município.
A Secretaria de Educação de Cariacica (Seme) vai fornecer material didático e disponibilizar um profissional, que irá fazer um levantamento sobre as principais dificuldades dos estudantes e o estágio de aprendizado de cada um. O gerente de Igualdade Racial, Sandro Cabral, explica que esse levantamento é necessário porque alguns ciganos não são alfabetizados, mas outros têm um conhecimento maior, como assinar o próprio nome.
A ideia é que as aulas sejam ministradas três vezes por semana, nos horários acordados com os alunos. Sandro afirma que a iniciativa foi bem recebida pela comunidade cigana. “Eles gostaram da ideia. Vai ser um facilitador. Quem não sabe ler, fica dependente do outro” aponta, destacando que uma das queixas dos ciganos é a impossibilidade de auxiliar os filhos nas tarefas escolares por não saberem ler nem escrever.
O gerente de Igualdade Racial relata que os ciganos costumam ir para a escola por volta dos 14 anos, já as ciganas, antes, mas interrompem os estudos ao se casarem. Entretanto, essa tradição vem mudando. Nos acampamentos de Cariacica, por exemplo, as crianças estão matriculadas na escola. “Mas o preconceito é motivo de evasão escolar. Uma vez conversei com um rapaz que não abria mão de ir para a escola vestido de cigano e, por isso, tinha dificuldade de interação com os colegas”, narra.
A proposta é que as turmas de alfabetização sejam implementadas também entre os marisqueiros e pescadores, como os das comunidades de Flexal I, Flexal II e Porto Novo. Em meio a esse público, conforme aponta o Mapeamento, também há um grande índice de analfabetismo.
Mapeamento
O “Mapeamento dos Povos e Comunidades Tradicionais do Município de Cariacica” foi realizado entre 23 de janeiro de 2020 a 26 de março de 2021, dividido em duas partes. Primeiro, os pesquisadores se propuseram a localizar os povos tradicionais do município, identificando como estão distribuídos no território e conhecendo a trajetória de vida das lideranças, suas narrativas e o seu quantitativo.
Em seguida, foi feito um levantamento socioeconômico dessas comunidades, analisando aspectos como Moradia; Trabalho, Emprego e Renda; e Política Assistencial Pública e Saúde. Segundo o pesquisador da Ufes e mestre em Ciências Políticas, Iljorvanio Silva Ribeiro, os resultados encontrados, a partir de entrevistas feitas com 290 pessoas, impactam diretamente na condição de sobrevivência desses povos e de sua reprodução cultural. É o caso dos povos ciganos identificados no município.
“Foram identificadas condições de abandono e de invisibilidade com que essas famílias sobrevivem, há décadas, em relação ao poder público como inacessibilidades aos direitos básicos como o de saúde, alimentação e de cidadania. A escassez de alimentos nas barracas é uma realidade cotidiana para muitos deles e se acentuou durante o período da pandemia do coronavírus”, destaca.
Já entre os povos de matriz africana, o que se identifica é o aumento da violência sofrida tanto dentro quanto fora das comunidades e territórios. As violações relatadas também incluem situações de discriminação e intolerância religiosa.
“Essa mesma violência pode ser traduzida em inúmeros casos narrados pelos entrevistados no que tange aos muitos ‘não acessos’ sofridos cotidianamente por esses povos: não acesso às políticas de incentivo cultural, não acesso aos recursos naturais do território que ocupam e do qual dependem para sua reprodução cultural (como cachoeiras, rios, praças e matas), não acesso ao direito de registrar os seus centros ou terreiros, e outros tantos ‘não acessos”, declara.
A falta de acesso também se estende às demais comunidades mapeadas. Os relatos dos 89 pescadores e marisqueiros do município que participaram das entrevistas revelaram um contexto de marginalização dessas comunidades, privadas de serviços de infraestrutura básicos como rede elétrica residencial, água encanada, pavimentação de ruas, rede coletora de esgoto, iluminação pública de qualidade e serviço de coleta de lixo eficaz.
Iljorvanio enfatiza que o descaso com a natureza também tem um impacto direto na vida desses grupos que dependem dela para sobreviver. “A transformação dos rios em canais receptores de esgoto doméstico, a poluição das marés e as frequentes invasões imobiliárias nas áreas de manguezais constituem-se como ameaças diárias ao exercício cultural dessas comunidades”.
Além desses três grupos registrados e entrevistados, o mapeamento identificou uma comunidade com 150 famílias de pomeranos, concentrados próximos aos bairros Itapemirim e Santa Cecília, e duas famílias remanescentes de quilombos, na região de Roda D’água, área rural de Cariacica.