Rubinho Gomes
Especial para Século Diário
Fotos: Gustavo Louzada/Ag.Porã
Ao presidir desde a manhã dessa quarta-feira (14) até o início da noite de hoje (15) a audiência pública da Comissão Nacional da Verdade (CNV) realizada no salão de eventos do hotel Golden Tulip, na Enseada do Suá, em Vitória, a jornalista Rosa Cardoso (foto), atual coordenadora da CNV, revelou que – além do caso do ex-deputado Rubens Paiva, cuja morte nas dependências do DOI-Codi do Exército do Rio de Janeiro foi comprovada através de documentos oficiais que desmentem a versão oficial da ditadura militar – a comissão constituída pela presidente Dilma Rousseff para apurar crimes e violações dos direitos humanos ocorridos durante a ditadura militar de 1964 a 1985 acaba de confirmar que o ex-dirigente comunista Mario Alves também foi assassinado no DOI-Codi do Rio de forma cruel (inclusive com a introdução de um cassetete com pregos no ânus) adiantando que a CVN irá lutar agora pela condenação coercitiva dos acusados do crime.
Durante a audiência, na parte da manhã, foi ouvido o padre Waldir de Almeida, que foi secretário do então arcebispo D. João Batista da Motta e Albuquerque durante 26 anos, preso pelo Exército acusado de ser “comunista” onde relatou tem tido apoio do professor Rubens Gomes – que também se encontrava preso no quartel. Padre Waldir relatou que teve que deixar o Espírito Santo, retornando para estudar Medicina na Emescam entre os anos 70/75. “Se mostrar as causas da pobreza é ser comunista, podem me chamar de comunista”, disse o padre em seus depoimentos, de acordo com seu relato.
Dentista perde filho na prisão
Ainda na manhã de ontem, a dentista Laura Coutinho revelou que pela primeira vez após 42 anos revelava publicamente que perdeu um filho quando esteve presa no Espírito Santo e depois foi mandada com um grupo para a Operação Bandeirante, em São Paulo, juntamente com outros capixabas, inclusive seu então companheiro -, o escritor João Amorim Coutinho. Antes de relatar sua prisão, ela prestou uma homenagem ao advogado Ewerton Montenegro Guimarães, “perseguido pelo Esquadrão da Morte do José Dias Lopes, pela ditadura e jamais negou fogo até morrer pouco depois de atuar como advogado da família do padre Gabriel Maire e da Arquidiocese de Vitória depois que este último foi assassinado”.
Laura Coutinho (foto) relatou que em 1969, pouco depois de entrar na Faculdade de Odontologia conheceu muitos militantes que lutavam contra a ditadura, e que seu então companheiro, João Amorim Coutinho, era da ala vermelha do PCdoB. “No dia 22 de março de 1971 foi presa com o companheiro e outros militantes no bairro Vila Batista, em Vila Velha, onde morava. O que seria apenas um simples chamado para depoimento se transformou em um pesadelo. Ficamos uma semana presos no Exército, em Vila Velha, e fomos levados em avião da Força Aérea Brasileira (FAB) para São Paulo, onde passamos pelo DOI-Codi da Rua Tutoia, e depois fomos para uma casa onde se constatou que ela estava grávida, o que foi confirmado através de um exame”, relatou Laura Coutinho.
“Achei que estaria livre de torturas, mas quando voltei para a prisão depois do exame confirmar a gravidez, elas se intensificaram até por este fato. À meia-noite, fui retirada da cela para acareação com meu companheiro João Amorim. Mandaram que nos despíssemos para aumentar o constrangimento mútuo, tomei palmatória, fui para o pau-de-arara, tomei choques na vagina, na língua e outras partes do corpo. Em cinco minutos desmaiei e eles manaram eu sair da sala e desci do segundo para o primeiro andar meio grogue, engatinhando. Abordei no vaso do banheiro da cela-quarto na Oban.
Minha companheira de cela queria que eu atirasse o feto na casa deles, mas pensei: Nem depois de morto vou deixar meu filho nas mãos deles – acrescentou a dentista que posteriormente teve três filhas.
De acordo com o relato de Laura Coutinho para a CNV, o informante dos militares, Edgar de Almeida Martins foi responsável pela sua prisão e de mais nove pessoas. “Era uma época de agentes do SNI, DOI-Codi, Cenimar, Dops etc, infiltrados por todos os lados, principalmente nas faculdades, movimentos estudantis, passeatas, onde havia qualquer enfrentamento da ditadura”, completou a dentista. Antes de ser liberada após três meses e meio na prisão, Laura Coutinho relatou que ainda teve que ouvir uma preleção do temido major Tibiriçá antes da soltura. “Ele me advertiu que caso voltasse presa para lá, não escaparia da morte”, lembrou.
Veto de Hartung a projeto de Vereza
A dentista Laura Coutinho considerou uma “jogada de mestre” a fórmula encontrada pelo ex-governador Paulo Hartung de vetar o projeto do deputado Claudio Vereza aprovado pela Assembleia para indenizar as vítimas da ditadura no Espírito Santo. Para não arcar com o desgaste do veto, Hartung viajou para o exterior, seu vice também, e o então presidente do Tribunal de Justiça, o ex-desembargador Jorge Goes, arcou com o ônus de vetar o projeto.
“Que país é este onde não se faz um resgate histórico decente?”, questionou a dentista, acrescentando que até hoje usam artifícios para deixar de indenizar as vítimas de um processo que expõe publicamente as sequelas das suas vítimas. “O ex-governador mostrou que suas práticas não se coadunavam com suas pregações quando líder estudantil”, completou.
Tarde de muitos depoimentos
Na parte da tarde, a CNV ouviu diversos outros depoimentos de vítimas ditadura militar. O desembargador Samuel Meira Brasil, responsável pela Comissão da Verdade da Escola de Magistratura do ES, disse que “dói muito sentir quando a memória não é recuperada para as novas gerações mas estamos empenhados em levantar o maior número possível de casos de violações dos direitos humanos”.
Também o promotor Josemar Moreira, coordenador da Comissão da Verdade do Ministério Público do ES, garantiu que “é prioridade hoje de todas as instituições é dar sua contribuição para reescrever a história do Espírito Santo e do Brasil”.
O coordenador do Fórum Direito à Memória e à Verdade do Espírito Santo, Francisco Celso Calmon, relatou sua militância política desde o movimento estudantil no Colégio Estadual em 1964 até as prisões e torturas que sofreu quando se transferiu para o Rio de Janeiro e acabou preso em várias ocasiões.
Perly Cipriano destaca livro de Claudio Guerra
O subsecretário estadual de Direitos Humanos, Perly Cipriano (foto), fez um relato de sua militância política iniciada antes do golpe militar de 1964, de sua passagem pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), viagem à União Soviética (quando o secretário de Segurança da época José Dias Lopes chegou a ir a Barra de São Francisco interrogar seus parentes, inclusive seu avô), e relacionou nominalmente as pessoas que o torturaram quando foi preso em Pernambuco em 1970.
Ele relatou que apoiou a publicação pelo ex-delegado Claudio Guerra do livro “Memórias de Uma Guerra Suja”, com depoimentos prestados aos jornalistas Rogério Medeiros e Marcelo Netto, sobretudo pela confirmação das denúncias feitas pelo ex-policial, que revelou os assassinatos que cometeu a mando da comunidade de informações do regime militar.
Perly concluiu afirmando que “precisamos normatizar o funcionamento dos serviços de inteligência que ainda atuam da mesma forma que temos que relatar esses fatos de nossa história para que eles não se repitam. “A sociedade civil tem muito o que contribuir para buscar um futuro melhor para todos os brasileiros, já que pela primeira vez o Brasil começa a olhar para ele mesmo”, completou o subsecretário.
Jussara Martins, presa em Ibiúna, relata torturas
Líder estudantil capixaba, presa no Congressa da UNE em Ibiúna (SP) em 1968, a professora de Pedagogia da Ufes, Jussara Martins, recorda que herdou do pai professor de Direito Adhemar Martins uma consciência política que a levou a lutar contra o regime militar desde o primeiro momento.
Ela relatou sua militância na Juventude Estudantil Católica (JEC) até a Ação Popular (AP), quando já era vice-presidente da União Estadual dos Estudantes (UEE). “Passeis por sessões de afogamento, fui colocada no pau de arara, tomei muitos choques elétricos, mas consegui não entregar nenhum ponto, pois tinha consciência de que se entregasse um só ponto ou aparelho, seria ainda mais torturada para entregar o resto. Adotei estratégias psicológicas que deram certo. Apanhei muito mas ninguém caiu por minha causa”, garantiu.
O ex-deputado estadual Juca Alves relatou que seu pai Washington Alves, sua mãe Letta de Souza Alves, mais três tios e outros familiares foram perseguidos, presos e a família teve que se exiliar no Chile até que houve o golpe que derrubou Salvador Allende. “Fiquei 60 dias sendo torturado dentro do Estádio Nacional de Santiago, que recebeu milhares de presos políticos logo após o golpe do Pinochet”, recordou Juca.
A filha do reverendo Jaime Wright – que celebrou o culto após a morte de Vladimir Herzog em 1978, com o cardeal dom Paulo Evaristo Arns na Catedral da Sé, em São Paulo, e depois coordenou o projeto do livro “Tortura Nunca Mais” — Anita Wright, disse: “Meu pai era pastor e ele sempre falava da teoria das brechas sempre aproveitando todas as oportunidades para a defesa dos direitos humanos”.