Com documento, Córrego da Angélica pretende garantir direitos e inspirar outros locais
Depois de um processo que durou quase um ano, a comunidade quilombola de Córrego da Angélica, em Conceição da Barra, norte do Estado, agora tem um protocolo de consulta para empreendimentos que possam impactar o território e a vida dos moradores. Por meio deste documento, os moradores pretendem que se faça valer de fato a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil, que garante direito às comunidades tradicionais à consulta prévia, livre e informada a ser realizada pelo Estado brasileiro em relação a medidas que tragam danos.
O fato é que a Convenção muitas vezes é atropelada, e empresas, o Estado ou outras organizações não consultam ou fazem as consultas como bem entendem. De posse do documento – e do acúmulo político de sua construção -, a comunidade pretende ter respeitada sua autonomia e exercer inclusive o direito de dizer não a qualquer medida que possa impactar negativamente seus territórios e modos de vida.
“Espera-se que ele seja respeitado, pois contém parte da nossa história, cultura, lutas, trajetórias e regras sobre as consultas que porventura precisem ser feitas a nós em nosso território, nossa organização e governança”, diz o documento.
“A criação do protocolo teve início formal ano passado, mas foi construído a partir da oralidade das pessoas desde muito antes”, diz Janaína de Mattos Faria, assessora técnica de povos e comunidades tradicionais da Associação de Desenvolvimento Agrícola Interestadual (Adai), que contribuiu com a comunidade para a elaboração do documento por meio da facilitação de oficinas comunitárias e outros processo de assessoria. “Todas as regras que estão ali no documento foram fruto de um processo coletivo, de muitas discussões”.

“O protocolo não é um documento fechado, é aberto. Se daqui a algum tempo quisermos incrementar, acrescentar alguma outra questão, a gente consegue. Ele é infindo, não termina”, enfatiza Michelle Maciel do Santos, moradora da comunidade e tesoureira da Associação de Remanescentes dos Quilombolas, de Produtores Rurais, da Agricultura Familiar e Pesqueira da Comunidade Córrego de Angélica (ARQCA).
“Nem eu nem o presidente da associação ou qualquer membro sozinho não pode tomar a iniciativa de atender ou resolver sozinho alguma questão como essa. A comunidade precisa ser comunicada verbalmente com antecedência”, explica.
O que diz o protocolo
O documento traz um histórico do impacto de empreendimentos na região desde os tempos coloniais, até o impacto da monocultivo de eucalipto e, mais recentemente, o rompimento da barragem de rejeitos da Samarco/Vale-BHP que atingiu o litoral capixaba. Também aponta para um novo fantasma do capitalismo que ronda a região: “Além disso, a maior jazida de sal-gema da América Latina é localizada no Espírito Santo, a maior parte sobreposta ao nosso território do Sapê do Norte. É nesse cenário que a extração de sal-gema, descoberto em 1970 junto com o petróleo, se torna mais um perigo de grande impacto socioambiental. São diversas áreas de sal-gema espalhadas pela região norte do Espírito Santo, com aproximadamente 12 bilhões de toneladas, o que corresponde a 70% da reserva nacional”.
Uma das fontes importantes na construção do protocolo é Getúlio Santos, de 73 anos, que ajudou a fazer um resgate histórico da comunidade, relembrando aspectos como cultivos e artesanatos tradicionais e festejos da região, muitos deles ainda presentes. Conta também do impacto da expropriação de terras para implantação do monocultivo de eucalipto, levando muitas famílias a migrarem para zonas urbanas, enquanto uma parte dos moradores permaneceu em condições que se tornavam cada vez mais difíceis, com pouca terra, rios e córregos secando e impacto de agrotóxicos por empresas papeleiras, principalmente a Suzano (ex-Aracruz Celulose e ex-Fibria).
Hoje restam seis famílias e cerca de 40 adultos vivem na comunidade, além das crianças. Apesar de já ter solicitado, Córrego da Angélica ainda não teve reconhecimento da Fundação Cultural Palmares, necessário para avançar no processo de titulação das terras como comunidade quilombola pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), algo que caminha a passos muito lentos para várias comunidades da região, que já foram reconhecidas mas não possuem título das terras, o que abre brecha para vários problemas.

Sem as devidas garantias jurídicas sobre seu território tradicional, tanto Córrego da Angélica como outras comunidades quilombolas do Sapê do Norte convivem com invasores, que seguem compram e vendendo terras dentro do território e co-habitando locais que deveriam ser usados para produção e reprodução da economia, da cultura e da forma de vida comunitária. Com esses invasores, chega também o tráfico de drogas, perigosa ameaça para a população local.
Como consultar?
O protocolo prevê que o Estado brasileiro, responsável por garantir o cumprimento do Convênio 169, faça contato com a comunidade com 30 dias de antecedência da primeira reunião de preparação das atividades, informando sobre qual será o tema da mesma. Considerando as tradições locais, as atividades de consulta devem ser realizadas nas manhãs do segundo sábado de cada mês, quando os moradores se reúnem regularmente por meio da associação, ou em outras datas e horários acordados com a comunidade.
Depois da primeira reunião, prevê-se um prazo de 60 dias para realização da primeira atividade de apresentação e explicação da proposta à comunidade. A partir daí, outras atividades de consulta precisam ser realizadas dentro da comunidade Córrego da Angélica em reunião com antecedência mínima de 15 dias.
“A gente vai deliberar como a empresa deve vir, se é com o Ministério Público, sozinha, se vamos fazer uma reunião. Estamos discutindo a lei da comunidade para fora. Não é a lei que o branco vai fazer e mandar pra gente, não”, relatou Josélio da Conceição Pires, atual presidente da ARQCA, durante o processo de construção do documento.
Outro aspecto trazido é que a consulta deve usar linguagem objetiva e compreensíveis para a comunidade, com informações verdadeiras, transparentes e de boa-fé. Quem já compareceu a alguma audiência pública ou consulta com empreendimentos de impacto, saberá como o tecnicismo, a linguagem rebuscada e informações que desconsideram certos impactos são usados por empresas para tentar ludibriar as comunidades.
Além disso, Córrego da Angélica exige explicações de forma detalhadas sobre todos impactos que possam afetar as comunidades por meio de uma Assessoria Técnica Independente escolhida pela própria comunidade para atuar no processo de consulta, a ser contratada pelo Estado.
O protocolo ainda traz outras exigências, que podem ser lidas no documento completo, disponível abaixo.
Além da exploração do sal-gema, outros empreendimentos preocupam as comunidades. “O que não vai acontecer é que as coisas continuem a serem feitas como são. Tem o pessoal do corte de madeira da Suzano, a empresa foi convidada, não compareceu à apresentação do protocolo, mas o documento chegou lá na base deles. Se vão cortar plantio na beira da comunidade, por exemplo, precisam ver conosco qual o melhor horário, isso precisa ser acordado. Se tem veículos que vão passar pela comunidade, precisam ter o mínimo de decência ao atravessar, porque sobe poeira, tem crianças e animais que circulam por ali. Se a gente tá sabendo que vai acontecer esse corte, essas movimentações, tudo pode ser realizado da melhor forma. Agora temos um documento que nos garante e vamos chamar as autoridades se for necessário”, afirma Michelle Maciel dos Santos.
O asfaltamento de estradas na região é outra questão que entendem que precisa ser consultada. “Pode ser bom e atender a comunidade, mas não podem fazer de qualquer jeito, como querem”, ressalta a moradora. Nesse caso, outras comunidades quilombolas do entorno também serão impactadas como Morro da Onça e Córrego do Alexandre. “Vamos incentivar que outras comunidades também construam seus protocolos. Com várias comunidades juntas falando a mesma linguagem, será mais fácil vencer certas questões”.
Para além do Córrego da Angélica, Janaína de Mattos destaca que a Adai, que presta assessoria técnica aos atingidos pelo crime socioambiental da Samarco/Vale-BHP devido ao rompimento da barragem de rejeitos em Mariana (MG) em 2015, apoia a construção de protocolos de consulta em outras duas comunidades: Barra Nova Sul, em São Mateus, formada por pescadores, marisqueiros e ribeirinhos, que em breve deve ter uma assembleia para aprovação do documento final; e Barreiras, também comunidade pesqueira e ribeirinha, em Conceição da Barra, que está na terceira de quatro etapas da construção do protocolo.