O Ministério Público Federal (MPF) defendeu que é imprescritível o direito indenizatório de filhos que foram separados de pais com hanseníase em razão da política de segregação compulsória adotada pelo Estado brasileiro entre as décadas de 1920 e 1980. O entendimento é uma resposta à Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1.060/DF, proposta pelo Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan).
A ADPF defende que a prescrição de cinco anos, prevista no art. 1º do Decreto 20.910/1932 para propor ações contra a Fazenda Pública, não incide sobre o direito à reparação civil assegurado aos atingidos pela política pública.
O posicionamento do MPF, caso seja acatado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), irá causar uma grande procura por processos individuais em busca de indenizações, acredita o defensor dos direitos das pessoas afligidas pela hanseníase e presidente do Educandário Elzira Bley, Heraldo José Pereira. Ele informa que, no Rio Grande do Sul, dois filhos separados dos pais entraram com processo individual e foi garantido a eles o direito à indenização de R$ 50 mil. O advogado que defendeu a causa foi para outros Estados fazer o mesmo, inclusive ao Espírito Santo, onde entrou com ação para 12 pessoas, mas em nenhuma dessas unidades federativas houve êxito, pois o STF não reconheceu a imprescritibilidade.
No Espírito Santo, existem 650 filhos separados dos pais com hanseníase, todas eles ex-internos do Educandário Alzira Bley, em Padre Matias, Cariacica. As crianças, caso fossem saudáveis, eram levadas para lá, enquanto os pais ficavam internados compulsoriamente no Hospital Pedro Fontes, na mesma região.
Na manifestação enviada ao STF nessa terça-feira (4), o procurador-geral da República, Augusto Aras, explica que o Morhan não tem legitimidade para propor esse tipo de ação, por não ser considerada entidade de classe. “Contudo, os fundamentos trazidos na petição inicial apresentada pelo Morhan ajustam-se ao posicionamento da Procuradoria-Geral da República, que entende como imprescritível a pretensão relacionada ao direito à reparação de filhos sadios separados de genitores com hanseníase”.
Aras aponta que, diante da submissão de pessoas a condições sub-humanas, “o prazo quinquenal do Decreto 20.910/1932 mostra-se incompatível com normas internacionais dotadas de jus cogens, como se passa a analisar”, Diz ainda que “as agruras de todos os indivíduos que, direta ou indiretamente, sofreram com a hanseníase e/ou com a política pública adotada não passaram desapercebidas tanto pelos Poderes Executivo e Legislativo quanto pelo Ministério Público brasileiro”, destacando como prova disso a aprovação da Lei 11.520/2007, que garantiu às pessoas atingidas pela hanseníase e submetidas à segregação compulsória direito a “pensão especial, mensal, vitalícia e intransferível”.
Portanto, os filhos separados dos pais não foram contemplados com nenhum tipo de indenização, o que, conforme recorda o documento, levou alguns estados a iniciar debates nas assembleias legislativas para implementação da pensão para esse grupo. “Os estados de Minas Gerais e do Rio de Janeiro já garantem pensionamento especial aos filhos separados em razão da política sanitária de contenção e prevenção da doença”, destaca o documento.
Também é lembrada na decisão de Aras a tramitação do PL 3023/2022. “Independentemente da data do fim da segregação ou do início da vigência da Lei 11.520/2007, a grave violação da dignidade das pessoas e dos direitos humanos dos filhos separados dos genitores com hanseníase lança luzes à necessidade do reconhecimento da imprescritibilidade como mecanismo que viabiliza a busca concreta por reconhecimento da responsabilidade estatal pela violência perpetrada, acompanhada de sofrimento e estigma”, concluiu o documento.
Para justificar seu posicionamento, o MPF se baseia na legislação brasileira, como a Constituição Federal, e em tratados dos quais o Brasil é signatário, a exemplo do Pacto de São José da Costa Rica (Decreto 678/1992) e do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas (PIDCP, Decreto 592/1992). “Ambas são normas internacionais cogentes que trazem a garantia de que ninguém será submetido a tortura, nem a pena ou a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”, lembra.