Normativa recente do judiciário capixaba reforça o direito à entrega legal e sigilosa para a adoção
A entrega voluntária de recém-nascidos para adoção é um direito garantido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). No Espírito Santo, um ato normativo publicado este ano pelo Tribunal de Justiça (TJES) reforça o direito das gestantes ao procedimento de forma respeitosa e sigilosa, mas essa informação nem sempre chega a quem mais precisa.
“Entrega voluntária de recém-nascidos é prevista em lei, direito das pessoas que gestam (…) Entrega voluntária não é abandono”, ressalta a assistente social Emily Marques, integrante da Frente Pela Legalização do Aborto no Espírito Santo (Flaes).
A mais recente normativa do Tribunal de Justiça sobre o assunto foi publicada em abril deste ano, no Diário da Justiça. O ato Nº 009/2022 reforça o direito das gestantes à entrega voluntária sem passar por nenhum tipo de constrangimento, além da garantia de ser acompanhada por profissionais da saúde.
“A gestante que manifestar, em qualquer um dos serviços da rede de atenção e cuidado materno-infantil do território, interesse em entregar espontaneamente seu filho recém-nascido, deve ser atendida e orientada por profissional, preferencialmente, assistente social e/ou psicólogo (…) O profissional da rede de atenção e cuidado materno-infantil deve encaminhar obrigatoriamente a gestante à Vara com competência em matéria da Infância e da Juventude da comarca de sua residência”, ressalta a normativa.
O documento se baseia no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que estabelece a obrigatoriedade de encaminhamento dessas gestantes à Justiça da Infância e da Juventude. O ato normativo também leva em conta o dispositivo do estatuto que diz que cabe ao poder público proporcionar assistência psicológica à genitora que manifeste esse interesse.
A gestante pode informar o desejo da entrega voluntária na maternidade, na unidade de saúde onde faz o pré-natal, no Centro de Referência em Assistência Social (CRAS), ou no Conselho Tutelar. Após ser ouvida por uma equipe de múltiplos profissionais, participa de uma audiência onde confirma ao juiz e ao promotor público se realmente quer fazer o procedimento. “Se o desejo for confirmado, o Judiciário se encarregará de realizar todos os encaminhamentos para incluir a criança em uma nova família”, informou o TJES também em abril deste ano.
O intuito do ato publicado pelo Tribunal de Justiça era atualizar a normativa vigente sobre o assunto e regulamentar esse procedimento de encaminhamento dos casos à Justiça da Infância e da Juventude, definindo as atribuições de cada profissional. Um dos pontos principais do documento é o investimento na promoção da autonomia da mulher e no respeito à sua decisão, inclusive no processo de amamentação.
“Deve ser respeitada a integridade física e psicológica da parturiente e a sua decisão de não amamentar ou manter contato com a criança, providenciando acomodação em separado para ambos, evitando-se qualquer tipo de constrangimento e discriminação”, diz um outro trecho da normativa.
O documento ressalta ainda que, durante o acompanhamento em juízo, deve ser respeitado o desejo da mulher de manter sigilo sobre a sua gestação e a entrega voluntária da criança.
Falta de informação e a criminalização do debate
Apesar de se tratar de um direito previsto em lei, muitas meninas, mulheres e pessoas que gestam não têm acesso a essa informação. E, em uma sociedade extremamente conservadora, tirar o acesso à informação é também controlar os corpos dessas pessoas, lembra Emily Marques. “O direito à informação é um direito humano. Sabemos que a desinformação visa tolher a autonomia, limitar as trajetórias de vida das mulheres, reforçar, naturalizar um único destino para todas nós”.
Para a assistente social, a divulgação de informações sobre os direitos sexuais e reprodutivos, bem como a denúncia da violação desses direitos é fundamental. “Precisamos ampliá-los, estamos falando de políticas públicas necessárias (…) precisamos avançar na divulgação de todos os nossos direitos, não aceitar nenhum retrocesso”, defende.
Direitos esses que, mesmo garantidos em lei, ainda são questionados pelo senso comum. Emily cita o caso recente da atriz Klara Castanho (21 anos), que, após ser exposta publicamente, divulgou uma carta relatando que foi estuprada, ficou grávida, e optou pela entrega voluntária do bebê. O caso foi divulgado na mesma semana em que uma criança de 11 anos foi atacada por decidir interromper a gestação – que também foi fruto de um estupro – em Santa Catarina.
“O conservadorismo fomenta ataques tanto a uma menina de 11 anos por acessar o aborto legal quanto a uma jovem mulher por ter acessado a entrega voluntária. Ou seja, querem cercear nossas escolhas e direitos”, ressalta a ativista, lembrando que o direito à entrega voluntária não substitui a luta por outros direitos, como a legalização do aborto.
Para Emily, essa criminalização dificulta os debates e o acolhimento dessas pessoas, além de trazer medo e clandestinidade ao tema. “O diálogo com a sociedade precisa ser feito sempre, por isso defendemos o debate sobre direitos sexuais e reprodutivos nas escolas, nas unidades básicas de saúde, é um tema que afeta a vida de todas nós”, destaca.